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08 junho 2017

A SIMPLICIDADE NA COMPAIXÃO


Imagem adaptadas da internet, 2017.
Eymard Mourão Vasconcelos

O trabalho em saúde está sempre nos colocando a frente de pessoas em sofrimento. Isso é pesado, mas também uma oportunidade. Oportunidade de experimentar profundamente a compaixão.
Viver a experiência da compaixão. De repente, o outro que sofre, na nossa frente, não é mais um coitado. Ou uma pessoa separada de nós. Passamos a percebê-la como parte de nós mesmos. Choramos com ela. Sofremos juntos. E envolvemos em sua ansiedade de busca por saídas. É quebrado nosso temor de perda de espaço e conquistas pessoais pela entrega ao que flui desse encontro, desapegando-se de outras preocupações.
Na compaixão não competimos e não julgamos. Aceitamos e reverenciamos o que vem do encontro, dialogando com o que somos.  E o que passamos a ser, a partir da experiência da compaixão, nos surpreende.
A compaixão unifica a complexidade das relações de cuidado. As várias teorias e demandas profissionais se integram na força da dinâmica emocionada da compaixão. Experimentamos uma simplicidade. O que verdadeiramente importa, naquele momento, fica claro. Outras necessidades e outras perspectivas de compreensão serão depois demandadas a partir do vínculo que começa nessa experiência.
O encontro com quem sofre inicialmente nos comove. Mas também nos encanta, pois encontramos garra de superação, carinho, modos surpreendentes de levar a vida, solidariedade e criatividade. Entramos em contato com a capacidade de transcender presente em pessoas aparentemente tão limitadas. Conhecemos potência presente no ser humano.
Assim, o trabalho em saúde cria fortes oportunidades de uma experiência que pode alastrar para o restante de nossa vida. A experiência do amor. Ele pode ser espaço de treinamento do manter-se no amor mesmo nas dificuldades, que são tão grandes nas instituições de saúde e nos tumultos de nossa mente.  
O amor aprendido com desconhecidos, que se fizeram próximos apenas por nosso trabalho profissional, reverte para a relação com nossos romances, amigos, familiares e companheiros de militância, que muitas vezes são utilitárias e superficiais. Ou marcadas por cobranças e propostas teóricas contraditórias. O amor por quem não temos o dever de amar, nos faz conhecer o amor.
A força da experiência da simplicidade trazida pelo amor, superando a complexidade das relações humanas, cria uma referência fundamental para a reorganização de nosso viver. Aprendemos que o amor é a dinâmica essencial de todo relacionamento que se quer verdadeiro. O resto é secundário.  No relacionamento mais casual ao mais íntimo, no mais antagônico ao mais simpático e no bem presencial ao totalmente virtual, podemos estar inteiros e unificados. Precisamos de estudos críticos, pesquisas científicas, interdisciplinaridade e trabalhos em grupo, mas regidos, antes de tudo, por amor.

Texto elaborado por Eymard Vasconcelos a partir de reflexão de Laurence Freeman, da Comunidade Mundial de Meditação Cristã (fonte: http://www.wccm.org.br/leitura-laurence-freeman-osb/608-perdao-e-compaixao-170604 ), com a finalidade de torná-la mais adequada à sua própria jornada de aprendizagem e aos desafios de seu campo profissional.

[Eymard Mourão Vasconcelos publica no Rua Balsa das 10 às 5tas-feiras]

09 setembro 2013

O amor no trabalho em saúde. Eymard Vasconcelos.



Para muitos profissionais de saúde, o trabalho com os pobres, oprimidos e marginalizados não se orienta só pelo dever profissional, pela cobrança das instituições onde estão empregados, pelos lucros financeiros que obtêm ou por uma obrigação moral aprendida em sua formação. Orienta-se principalmente pelo vínculo afetivo e pelo compromisso fundado neste vínculo. A partir deste vínculo afetivo, aproximam das pessoas e comunidades com um olhar e uma escuta sensíveis, atentas para dimensões sutis da realidade. Orientam seu agir principalmente pela percepção das suas consequências no olhar, nos corpos e nas palavras das pessoas que cuidam.

Este vínculo se inicia com o encantamento com a criatividade da população, a gratidão e valorização como são acolhidos nas comunidades, os instigantes desafios teóricos trazidos pelas complexas situações em que são chamados a lidar e seus consequentes aprendizados, além do clima de amizade e de alegria que surge neste tipo de trabalho. Trata-se inicialmente de um vínculo reforçado pelos encontros e acontecimentos do momento. Mas este vínculo vai se aprofundando. Situações de dificuldade, ingratidão, tensão, conflito e frustração surgem, criando períodos sem estes reforços. São tempos áridos que desanimam alguns, mas fazem outros profissionais descobrirem estar vinculados para além das emoções presentes. Trata-se de um vínculo mais visceral e mais atávico que os aproxima de um compromisso não apenas com os usuários mais próximos dos serviços, mas com a população em geral, principalmente os mais necessitados. Vai criando uma maior capacidade de indignação com outras situações de injustiça e opressão presentes na sociedade. Envolve-os, aos poucos, nas lutas políticas pela ampliação dos direitos sociais e pela superação das causas estruturais da desigualdade. Este vínculo mais profundo, que vai ficando sem medo das dificuldades, enfrentamentos e perseguições decorrentes, é mais bem expresso pelo conceito de amor.

O amor é um sentimento simples de ser entendido por ser uma realidade existencial universal, mas, ao mesmo tempo, é um conceito confuso e de significado teórico pouco preciso por assumir formas muito diferentes no cotidiano da vida humana. Há o amor de mãe, dos casais, dos religiosos, dos políticos populistas, do comércio preocupado com a venda de presentes, dos prostíbulos, dos poetas, etc. Há ainda o amor ao dinheiro, ao poder, a Deus e àquele prato favorito. A grande valorização do amor romântico, entre os casais na cultura contemporânea, tem criado uma referência muito forte para sua compreensão, que tende a tornar o conceito de amor em algo muito idealizado, com as qualidades mais belas possíveis, o que cria ilusões por esconder as suas contradições e seus condicionamentos sociais. No mundo acadêmico e profissional, onde impera uma ideologia de valorização da objetividade racional e lógica desvestida de qualquer emoção, passou a ser um conceito extremamente evitado. Mas na vida privada destes profissionais e acadêmicos, fora dos seus ambientes de trabalho e pesquisa científica, tem sido um dos temas que mais gera interesse. Na última década, no entanto, vem sendo tema de crescente debate nas ciências humanas.

Amor é um vinculo afetivo intenso e profundo entre seres que reorienta a relação entre eles, a partir do momento em que se estabelece. Diferencia-se do outros vínculos afetivos pela intensidade. Nele, dinâmicas inconscientes tornam-se fortes, superando o controle da vontade consciente. Gera um enlevo afetivo que toma simultaneamente a consciência e o agir dos seres envolvidos. Desencadeia um tipo especial de acolhimento, compreensão mútua e aceitação de diferenças não bem compreendidas. Cria uma relação de reciprocidade com um forte sentimento de união de interesses, propósitos, necessidades e emoções. A partir daí, estabelecem-se compromissos que se baseiam mais na emoção do que na vontade e no dever racionalmente construído. Neste vínculo, passa-se a sofrer e alegrar intensamente com o sofrimento e a alegria do outro. A partir do momento em que se estabelece na vida das pessoas, passa a ser elemento estruturante importante do sentido e da motivação que dão ao seu existir. É uma experiência, ao mesmo tempo, espontânea como também intencionalmente cultivada. A abertura e o investimento da vontade consciente criam condições para que a sua dinâmica de envolvimento emocional se aprofunde.

Amor é, portanto, regido principalmente pelo sentimento e não pela vontade. Não se ama por obrigação. Ele não pode ser ordenado. Não é um dever moral. Quando existe amor, o dever moral é supérfluo. Mas como ele não está presente na maioria das relações humanas, a moral é necessária. Para muitos filósofos (Sponville, 2011), o agir regido pela moralidade é um agir como se houvesse amor, com aparência de amorosidade, para o bem do convívio humano em sociedade. A moral, sim, é regida pela vontade e pelo dever.

A valorização dos sentimentos, das emoções e das intuições significa uma abertura para dimensões e forças que estão fora do controle da vontade e da elaboração consciente e lógica. É uma abertura para elementos vindos do inconsciente, onde não existe apenas o amor: ali estão também rancores, instintos confusos, medos intensos, agressividades, ímpetos contraditórios e a agitação de nossas neuroses. Para dar espaço à amorosidade é preciso também acolher e elaborar nossas dimensões sombrias, que tendem a se manifestar juntas. Não basta querer amar. O amor vem. E vem misturado com o que não é amor. Amar é um processo exigente de elaboração. Ao fazê-lo, potências subjetivas ligadas à sensibilidade e à intuição são desenvolvidas, levando a superação do viver restrito ao que é racional, medível e claramente explicável.
A valorização do amor no trabalho em saúde significa a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas. O vínculo afetivo cria novos canais de compreensão. Leva a mente colocar-se no lugar do outro, para perceber o significado dos acontecimentos a partir de sua perspectiva. Alguns chegam a afirmar que só se compreende bem aquilo que se ama. Assim, o amor permite que o afeto se torne elemento estruturante dos diálogos, acordos e motivações do processo de construção de uma vida com mais saúde. O amor aciona um processo subjetivo de elaboração, não totalmente consciente, que traz importantes percepções, motivações e intuições sobre a realidade para o processo de produção da saúde. Assim, são incorporados ao trabalho aspectos mais sutis da realidade subjetiva e material da população. O amor é, portanto, uma dimensão importante na superação de práticas desumanizantes e na criação de novos sentidos e novas motivações para o trabalho em saúde.
O vínculo afetivo, nesta perspectiva, se diferencia das situações de submissão presentes nas relações de dependência emocional, não podendo ser confundida com sentimentalismo ou infantilização das relações de cuidado. Em nome do amor, muitas cobranças opressivas são feitas. Ao contrário, o amor fortalece o compromisso com a superação de situações de sofrimento e injustiça. Enquanto referencia para a ação política, pedagógica e de cuidado, o amor amplia o respeito à autonomia de pessoas e de grupos sociais em situação de iniquidade, por criar laços de ternura, acolhimento e compromisso que antecedem às explicações e argumentações. 

Há inicialmente uma surpresa ao perceber a potência terapêutica e de transformação social do agir regado pela emoção amorosa. Vai se percebendo, no entanto, que a expressão desta emoção precisa ser modulada para que seja eficaz e ética. Não é qualquer emoção, pois ela também pode ser expressão de rancores, preconceitos e neuroses. É preciso aprender a lidar com as emoções no trabalho profissional. É um processo de aprendizado demorado que acontece por meio de vivências, em que erros e acertos são cometidos e refletidos. A relação continuada e franca com os pacientes, possibilitada pelo vínculo, permite que estas situações possam ser revistas. Vai se desenvolvendo o que vem sendo chamado de inteligência emocional (Goleman, ). E a vida afetiva do profissional, inclusive sua vida privada, vai sendo enriquecida.
Em uma sociedade onde grande parte dos profissionais tem um trabalho alienado, sem vínculo com o que se produz, ter um trabalho criativo e integrado com seus principais propósitos de vida é um grande privilégio. A qualidade deste trabalho, carregado de motivação e sentido, acaba sendo reconhecido, gerando gratificações, inclusive financeiras. Portas institucionais se abrem, mesmo sem iniciativa intencional para isto.
A valorização do trabalho profissional por amor é algo bastante propalado em discursos de gestores, empresários e políticos para cobrar um maior empenho do trabalhador, muitas vezes, sem condições institucionais mínimas. Por isto, há uma desconfiança generalizada contra o uso desta palavra no ambiente institucional. Mas o que realmente dá força e legitimidade para o trabalho por e com amor é a vivência de experiências significativas em que ele aconteceu, transformou e encantou. Depois de experiências como esta, discursos, ideologias e mensagens adocicadas têm pouco valor. Quem passou por esta vivência, evita falar muito sobre ela, pois as palavras são pequenas para expressá-la bem. Só conversam com quem percebem entender destes caminhos sutis da subjetividade humana. Trata-se de uma experiência que leva a uma paz e a uma sensação de sentido pleno que dão uma certeza e uma assertividade para seguir o caminho tomado. Assenta-se em rocha firme e se sente bem apoiado. As ventanias e confusões do trabalho não mais abalam significativamente. Depois desta experiência, firme na rocha, se tem força para enfrentar gestores, empresários e políticos com discursos hipócritas. O desafio passa a ser manter–se assentado nesta rocha, nesta vivência do amor, pois rancores, cansaços, medos e seduções individualistas de consumo e poder podem crescer e afastar da rocha. E o trabalho em saúde é cheio destes perigos. Mantê-lo nas trilhas do amor exige sabedoria, estudo e reflexão.

A experiência da centralidade do amor na existência humana transforma os objetivos do trabalho em saúde. A amorosidade e a ternura passam a ser não apenas uma metodologia de aprofundamento do diálogo e do cuidado, para se tornar também seu objetivo. Não se busca apenas uma sociedade justa, igualitária, participativa, sem marginalizados e com direito assegurado à assistência, mas também uma sociedade amorosa, pois só assim o ser humano se realiza plenamente. A amorosidade é pois instrumento e finalidade do trabalho de promoção da saúde.

As dimensões da emancipação ligadas à justiça, democracia e equidade das políticas sociais têm passos e metas mais palpáveis e delimitadas. São necessárias mudanças das leis, do sistema de representação política, da distribuição dos recursos públicos, da organização da produção econômica, do fortalecimento de organizações sociais, etc. São metas e passos muito difíceis, mas palpáveis dentro de uma lógica racional. Já a ampliação da amorosidade na sociedade é uma dimensão da emancipação menos palpável e menos controlada pela ação consciente. Depende do acolhimento e difusão de dinâmicas que, como o vento, a vontade não consegue governar; apenas cria-se espaço, elabora-se e espera. Isto é extremamente incômodo para as mentes regidas pelo cálculo e pelas estratégias racionalmente definidas.

Eymard Mourão Vasconcelos, setembro de 2013

Este texto e os outros textos meus estão sendo debatidos na lista de discussão 

http://br.groups.yahoo.com/group/dialogando_/

27 agosto 2013

A MINHA PARTE COM OS POBRES E OPRIMIDOS

Ernande Valentin do Prado


Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis 
Mas confesso abestalhado 
Que eu estou decepcionado
                           Raul Seixas

A questão que Eymard propôs no grupo [dialogando_] (Meu envolvimento inicial com o mundo popular) deixou-me intrigado e com dúvidas. Quando foi que comecei a dedicar-me a trabalhar com os pobres e oprimidos? Não consegui encontrar realmente a origem, o dia e lugar onde tudo começou, por isso vou divagar um pouco (se me permitem).
Lembro-me que entre os 12 e 15 anos (fazendo o ensino ginasial – como se chamava na época), o meu maior sonho, lá em Apucarana, norte do Paraná, era libertar a América, refazer os passos de Tchê Guevara (não lembro exatamente como conheci essa história, mas acho que tem a ver com um professor de língua portuguesa que contava como foi preso e torturado no Congresso da UNE pela ditadura). Eu sabia que a gente vivia oprimido, sendo roubado em nossa dignidade, que alguns ganhavam muito, outros passavam fome. Meus amigos sonhavam em comprar uma moto para ganhar as meninas e isso não era fácil como hoje (vivemos uma epidemia de motos e acidentes de motos – acho que deve ser pior do que o crack, mas é uma indústria legalizada, então não chama tanta atenção).
O meu sentimento é que não trabalho para pobres e oprimidos e nem com eles, mais que sou um deles (apesar de que neste momento estou em um hotel em Brasília pago pelo Ministério da Saúde e o café da manhã foi farto – como não tem em casa todo dia). Defino-me melhor como militante do Sistema Único de Saúde (SUS), mas não de qualquer SUS e sim esse que é encarnado. Existe efetivamente mais de um SUS, assim como existe mais de um "deus". Sinto que cada igreja criou seu "deus" particular e ministros, políticos, secretários e até grande parte de trabalhadores criam o seu SUS, que lhes beneficiam com horários flexíveis, favores políticos, venda de facilidades, subfinanciamento para algumas áreas, opulências e favorecimento para outras. Não defendo esse SUS, mas um mais humano, onde as pessoas podem se encontrar, conhecer-se, criar laços e vínculos de verdade e vivenciar a equidade.
Mas vamos retroceder um pouco mais para entender de onde vem esse sentimento: meu pai tem alma de pescador e hoje, depois dos 60 anos, mora em frente a um grande rio, onde pode pescar (sua casa foi inundada esses dias pela cheia do rio que acontece todo ano, e ele me ligou animado com isso, pode?). Mas o orçamento não fecha com os vencimentos da aposentadoria (direito que adquiriu por trabalhar desde os seis anos de idade), por isso também trabalha como pedreiro. Já trabalhou com muita coisa (só não foi ladrão e imitador do Ney Mato Grosso em boates especializadas – como diz um amigo de infância): agricultor, tratorista, motorista, inventor, marceneiro, eletricista, encanador, pedreiro e pescador. Lê muito pouco, escreve menos ainda, mas, junto com minha irmã mais velha, são os maiores gênios da família e os maiores que conheço, não há nada que não saibam fazer, não há problema que não deem jeito, só não sabem ganhar dinheiro (defeito comum na família).
Não nasci com o talento de meu pai, que minhas irmãs herdaram. Sou mais parecido com minha mãe, mais pé no chão, sem grandes saltos, sem coragem de largar tudo e encarar o mundo de peito aberto. Quando moleque fui vendedor de frutas de porta em porta, engraxei sapatos na rodoviária de Campinha da Lagoa (uma das coisas que mais lembro de ter gostado de fazer), fui entregador de supermercado (naquele tempo que a gente usava bicicletas), atendente de balcão em mercearia e lanchonete, garçom e vendedor de sapato em loja chique (uma das coisas que mais detestei. Só não foi pior do que trabalhar em UTI). Também fui metalúrgico e tentei ser pedreiro. Quando vi que estava fabricando carros que nunca chegaria a comprar  e não via o sol (entrava na fábrica no escuro e saía no escuro), mas ser pedreiro, embora muitos ache uma coisa sem “saber”, exige um conhecimento especializado e um fazer refinado (quem já precisou fazer uma obra ou reforma, por menor que seja, já deve ter percebido isso). Não consegui dominar esse saber/fazer bem e não gosto de fazer sem conseguir fazer bem feito (aprendi com minha mãe).
Um belo dia, um amigo, meu sócio num trabalho de "pedreragem" mal sucedida (é um dos caras mais inteligentes e mais entendidos de literatura que conheci na vida)  chegou com a ideia de fazermos um curso de Auxiliar de Enfermagem. Segundo ele, o curso durava um ano e três meses e seria financiado pela prefeitura. O aluno receberia uma bolsa de um salário mínimo mensal (R$ 100,00 na época, mas não lembro se já era real e mais vale transporte). Achei uma péssima ideia (pensava em sangue, em curativo, em pessoas com diarreia, fralda suja, sofrimento sem fim, hospital com cheiro de remédio, gente morrendo), mas vendo o risco das paredes que havíamos acabado de levantar cairem, achei que era melhor  tentar (até hoje a casa esta em pé). Acabamos ficando com as duas últimas vagas do curso (a colega que nos avisou não passou na seleção e tornou-se uma excelente professora algum tempo depois).
O curso foi oferecido pela prefeitura para suprir a falta de mão de obra no setor. Faltavam auxiliares e enfermeiros. Havia empregos em todo lugar e o salário, embora não fosse bom, não era tão ruim quanto hoje, quando há uma escola de enfermagem em cada esquina e emprego, quase sempre quando se compromete em ser cabo eleitoral .
Mais ou menos um ano e meio depois, fui fazer a graduação por “pirraça”, por desentendimento com uma enfermeira (minha chefe). Trabalhava no hospital mais mal afamado da cidade, por opção, pois achei que lá estariam as pessoas que pagaram para eu estudar. O hospital era administrado por uma Universidade e eles ofereciam bolsa de estudo generosa (75% de desconto na mensalidade). No meio do curso fui demitido e perdi a bolsa, mas o serviço de assistência social chamou-me no fim do semestre e disseram que eu não teria como pagar aquele curso, que estavam preocupados comigo, mas como eu tinha boas notas e não faltava, estavam  oferecendo-me uma bolsa de 50%,que eu não teria que reembolsar no fim do curso. Isso desde que me comprometesse a não faltar, continuar tendo boas notas e não contar para ninguém que esta bolsa existia. Claro que aceitei, mas contei para uma colega que também não tinha como pagar o curso e ela reivindicou e conseguiu a mesma bolsa.
Sabia que não se tratava de bondade, mas de um olhar atento do serviço social (que agradeço todos os dias até hoje, sem eles minha vida teria sido muito mais dura). A instituição era beneficente e tinha uma cota de bolsa a preencher para justificar a isenção fiscal. Por isso, assim como no curso de Auxiliar de Enfermagem que havia feito antes, sabia que no final das contas quem pagava para que eu pudesse estudar era a população. Prometi para mim mesmo, assim como fiz no curso de Auxiliar, que depois de formado iria trabalhar onde a população precisasse, fosse onde fosse.
Ninguém me pediu para fazer (o que acho um erro, todos que têm o beneficio de estudar com bolsa ou em instituições pública, deveriam ter o dever de devolver um pouco do que receberam). Sinto que tenho a obrigação de devolver um pouco do que recebi. Sou enfermeiro graças ao investimento do Estado, da população que pagou com impostos minha bolsa. Fiz minha parte, aproveitando o curso, levando a sério, investindo horas e recurso, sendo o primeiro a chegar à biblioteca para não ter que comprar fotocópias ou os livros, mas mesmo assim sempre tive o sentimento de que deveria fazer mais, ir aonde não quisessem ir, fazer tudo que estivesse ao meu alcance para que o SUS fosse como deveria ser.
Por conta desse sentimento abandonei o concurso na UFPR (Hospital de Clínicas de Curitiba – o melhor hospital onde já trabalhei), Secretaria Estadual de Saúde do Paraná (que não cheguei a assumir, pois era para trabalhar em hospital e minha vida estava direcionada à Estratégia Saúde da Família), Prefeitura Municipal de Curitiba (que não cheguei assumir o concurso, pois não acredito no modelo de saúde que se praticava nesta época, onde o Enfermeiro ficava longe das pessoas e envolto em burocracias sem sentido) e Campo Largo (onde não suportei a desorganização e a intencionalidade de só fazer política eleitoral e não de saúde). Trabalhei no Espirito Santo, Mato Grosso do Sul, Bahia, Sergipe. Fui, voltei, prometi não voltar mais e voltei. Hoje estou trabalhando como Apoiador Institucional na Bahia e como Apoio Pedagógico na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no curso de Especialização em Saúde da Família em convênio com a Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS/UFPel).
O meu sentimento é que continuo fazendo tudo que posso para que o SUS venha a ser cada vez mais como sonhou os militante da Reforma Sanitária nos anos de 1970, e cada vez menos o SUS real dos gabinetes chiques com ar condicionado e charutos cubanos.

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Revisão – Cecília Mano.
Este e todos os outros textos publicados por mim neste blog foram revisados de forma fundamental por Dona Cecília Mano. Um trabalho inestimável que já fez também no livro: Vivências de Educação Popular em Atenção Primária à Saúde: a realidade e a utopia.
Dona Cecília: meus sinceros agradecimentos.




12 agosto 2013

Meu envolvimento inicial com o mundo popular - Eymard Vasconcelos


Era o ano de 1974. Eu estava em crise. No terceiro ano de medicina, pensava em abandonar o curso. Escolhi medicina pensando ser o curso mais apropriado para me tornar um pesquisador. Era fascinado com a complexidade da vida. Imaginava-me em um laboratório procurando desvendar mistérios do corpo e encontrando soluções de impacto. A figura do professor Pardal, das histórias em quadrinho do Pato Donald, com suas descobertas mirabolantes, era uma referência não claramente assumida. Mas o estágio que havia feito no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais, um centro de pesquisa bastante reconhecido nacionalmente naquela época, me decepcionara. Descobrira como a pesquisa científica em laboratório era demorada, dependente de longa rotina de repetição de testes. Era um ambiente sem o dinamismo que imaginara. Mas o que fazer então? Imaginava também o trabalho clínico em consultórios particulares e ambulatórios públicos como algo rotineiro e chato. Cheguei a procurar uma psicóloga da Universidade para me orientar.

Nesta época, o Centro Acadêmico do Curso de Medicina organizou a I Semana de Saúde Comunitária - SESAC. Eram férias e eu tinha alguns amigos na sua organização. Resolvi participar sem saber bem o que encontraria. Estudantes de cursos de medicina de outros estados vieram, trazendo relatos e reflexões de experiências de trabalho comunitário em saúde que começavam a se organizar no Brasil, em geral ligados a universidades. Era impressionante o entusiasmo de alguns deles. Animei-me, então, a participar de um estágio de duas semanas em postos de saúde recém-criados na Região do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, para os participantes da SESAC. Fui parar, com mais dois estudantes, no povoado de Engenheiro Schinnor, no município da Araçuaí, depois de uma desconfortável viagem de ônibus por toda uma noite. Até hoje não compreendo bem o que me animou a arriscar nesta aventura.

Era um povoado pobre e em decadência pela desativação da Estrada de Ferro Vitória-Minas, que lá passava. Fomos muito bem acolhidos pela comunidade. Cada refeição era feita na casa de um morador diferente. Estávamos bastante desajeitados e inseguros, apesar de apoiados por uma estudante de Brasília mais adiantada e já com alguma experiência em saúde comunitária. Apesar de estudantes, a população da redondeza, carente de assistência, afluía em grande número trazendo seus problemas que procurávamos resolver com os medicamentos da Secretaria Estadual de Saúde e muita conversa entre nós. Já iniciados em alguns princípios da pedagogia libertadora de Paulo Freire, procurávamos criar espaços para ir discutindo, de forma mais ampla, as raízes e soluções dos problemas mais importantes do lugarejo. Tentávamos identificar lideranças que nos ajudassem no trabalho de mobilização.

A carência da população, que ao tornar valiosos os nossos poucos conhecimentos, os levava a expor intensamente os seus problemas, e as orientações de Paulo Freire, que nos levavam a não assumir a atitude de doutor sabe-tudo, mas de encontrar formas para discuti-los coletivamente, fizeram uma mágica. Aquele povoado pacato e decadente se revelou lugar de uma dinâmica fascinante. Problemas aparentemente banais iam mostrando estar ligados a histórias complexas, carregadas de sofrimento, garra, opressão e paixão. Eu, filho de uma família de classe média tradicional da capital mineira e com uma vida bem regradinha, tive acesso a mistérios que nem imaginava. Assustei-me e encantei-me. Além do mais, sentia que éramos significativos na busca de soluções. Pouco entendíamos de política, sociologia, psicologia ou economia, mas nosso precário saber técnico nos dava autoridade para propor encontros e, seguindo os princípios da Educação Popular, colocar problemas em discussão. Nossa insegurança até ajudava, na medida em que nos dificultava tentar responder sozinhos às dúvidas. Estávamos perplexos demais com o que deparávamos para conseguirmos transmitir segurança. Era impressionante como uma simples orientação metodológica salvava e abria caminhos: “diante de um problema significativo, procure discutir com as pessoas envolvidas, buscando construir coletivamente as soluções”. Nas discussões com as famílias e nos grupos formados, fios da complexa meada da vida iam se revelando, mostrando dimensões inusitadas da luta pela sobrevivência e felicidade. Soluções eram costuradas com palpites de muitos, já os envolvendo no encaminhamento. Ficávamos encantados com os resultados esboçados no processo que ajudávamos a construir. 

Participávamos da obra de recriação coletiva da vida e isto era fascinante. Esta metodologia pedagógica nos aproximava afetivamente deles e nos permitia desfrutar de seus carinhos e alegrias que expressavam de forma intensa.

Não me lembro mais dos rostos daquelas pessoas, nem da maioria de suas histórias. Mas ficou marcado em minha alma um sentimento tão forte que tem me acompanhado em toda minha existência. Nunca vivera nada tão intenso. Foi algo, tão tremendo, que relativizou todas as minhas dúvidas. Não entendia bem o que acontecera, mas, a partir daí, fiquei sabendo que era isto que queria para a minha vida.

Desde então, em cada período de férias, buscava organizar um estágio em alguma comunidade. Precisava experimentar aquilo novamente; queria viver outros desdobramentos do amor que se iniciara; necessitava conhecer mais esta realidade que me fascinava. Vieram, então, ainda como estudante, Veredinha, Padre Paraíso, Calciolândia e a favela da Avenida Raja Cabáglia de Belo Horizonte. Os rostos e lugares mudavam e o vínculo aumentava. Classes populares e movimentos sociais foram conceitos que descobri e me ajudaram a dar uma identidade a este outro que tanto me atraía para um encontro de criação conjunta, mobilizando meus sonhos e minha paixão. As classes populares eram um novo e fascinante outro que encontrei em minha vida; um outro desvestido de pompas e sem pudor de escancarar sua intimidade desarrumada na crise da doença, deixando mostrar uma criatividade e vibração capazes de construir uma inesperada alegria e amorosidade em situações aparentemente insustentáveis.

Meu curso de medicina ficou colorido. Nas diversas disciplinas, os assuntos técnicos ganharam vida, pois me ajudavam a entender os problemas das pessoas com quem criara vínculos. Passei a ter, então, uma referência para selecionar o que estudar mais, ganhando uma autonomia diante da cobrança dos professores. Formei, fui trabalhar na Paraíba com saúde comunitária. Desde então, tive fortes encontros em Pilõezinhos, Guarabira e nas favelas de João Pessoa e Belo Horizonte. Descobri que outros profissionais também tinham paixões semelhantes e estavam cheios de inquietações. Fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado buscando a melhor compreensão de nossas dúvidas. Vieram livros e a Rede de Educação Popular e Saúde, que aglutina hoje centenas de profissionais com buscas parecidas.

Hoje, com 60 anos, já tive vários amores. Tive namoradas, casei, tive dois filhos que não mais vivem comigo, separei, casei novamente e, agora, tive um novo filho. Olhando para trás, vejo que o encontro, com o mundo dos pobres, oprimidos e marginalizados, iniciado em Engenheiro Schinnor, no espaço do trabalho em saúde e da luta pela justiça social, funcionou em mim como um grande encontro amoroso. Destes que criam um vínculo de tal monta que reorientam todo o viver. Que despertam energias e motivações que nos dão garra para enfrentar a aventura da vida. Entre desencontros, desencantos, momentos de intensa alegria e conquistas, raivas e frustrações, este amor perdurou central. Gerou filhos: alunos e leitores espalhados pelo Brasil, movimentos sociais, sistematizações teóricas. Criou redes de parentesco. É um amor cheio de precariedades e contradições como todos outros, mas o que mais desencadeou mudanças em minha vida.
A partir do conhecimento da realidade propiciado por este comprometimento com a pobreza, opressão e marginalidade, fui também definindo meu modo de encarar minha vida afetiva, meu lazer, minhas amizades, minha vida religiosa e minha profissão.

A força deste comprometimento estruturante da minha vida foi confirmada na década de 1990, cerca de 20 anos depois da experiência de Engenheiro Schinnor. Nesta época, passei por um intenso processo de revisão de valores. Afastei-me do cristianismo, pela crescente tomada de consciência das feridas deixadas pela formação cristã tradicional (a desvalorização dos desejos, a cobrança contínua de perfeição e a ênfase na culpa pessoal) e pelo cansaço com as contradições da igreja. E terminei o casamento de 19 anos.
Como não cristão, fui fazer meu doutorado em Medicina Tropical na UFMG, procurando estudar o novo papel da educação popular a partir da conquista do Sistema Único de Saúde, quando suas práticas passaram a valorizar mais o espaço de atuação dentro das instituições. Escolhi fazer a pesquisa em um serviço de atenção primária à saúde bem estruturado, inserido em uma grande favela de Belo Horizonte. Esta experiência está descrita no livro Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família (Hucitec, 2010, 4ª edição). Nesta pesquisa, quando percebi, estava totalmente dedicado à educação popular junto às famílias mais pobres e rejeitadas da favela: a maioria dos moradores e lideranças comunitárias tinha raiva delas pelos tumultos e sujeiras que causavam. Quando percebi isto, vi que tinha em mim um vínculo muito profundo, até mesmo inconsciente, com os pobres, oprimidos e marginalizados que dinamizava minha criatividade e trazia realização. Fui tomando consciência que um cristianismo não teórico fazia parte da minha estrutura pessoal, mesmo tendo muitas discordâncias com sua doutrina antes aprendida. Um cristianismo que não era mais essencialmente um sistema de saberes para conduzir a vida, mas um caminho de desvelamento e elaboração de uma estrutura amorosa que nos constitui (o Cristo que habita em nós, desde a criação da humanidade). A partir desta percepção, as palavras do Evangelho ganharam novo sentido. Passei, então, a ouvir e valorizar mais as vozes interiores profundas, abrindo perspectivas de ver e relacionar com a realidade, de forma menos regida pelo dever e pelo pensamento considerado correto. Retornei ao mesmo lugar, vendo, no entanto, nova paisagem. Novamente, minha vida pessoal e profissional se modificou a partir de um insight originado, em grande parte, no contato com os pobres. Por isto, tenho uma grande identidade com a história de São Francisco, narrada em texto anterior.

Este foi o caminho inicial de meu envolvimento pessoal com a luta pela saúde dos pobres, oprimidos e marginalizados. Vivi uma experiência que fundou um novo modo de ser. Percebo que vários profissionais, com envolvimento semelhante, tiveram também experiências fundantes, mas falam pouco sobre elas. É importante reconhecer a força destas experiências numinosas, isto é, experiências tão tremendas e fascinantes que passam a reorientar o viver. Trazem-lhe um novo sentido e motivação, bem profundos. Grandes aprendizados ocorrem por meio de experiências das quais pouco conversamos, pois nossas palavras não dão conta de expressá-las inteiramente. Aí, calamos.  Mas como educadores, precisamos tentar conversar mais sobre elas, criando espaços educativos protegidos em que possamos explicitar estes pensamentos e sentimentos ainda embaçados e inseguros para se expressarem com firmeza. É importante trazer para a pedagogia estes processos subjetivos, que ficam abaixo da linha d’água da consciência clara e lógica e que têm imenso poder orientador dos maiores sentidos e motivações do existir. Em outras palavras, valorizar a dimensão espiritual no fazer educativo.





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