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06 janeiro 2016

Natal


Primeiro Natal no hospital, decidi comprar enfeites de Natal de madeira pintadinhos - anjos, papais-noéis no trenó, estrelinhas e sinos - para dar junto com um abraço de Feliz Natal para os pacientes internados. Atéo hospital parece entrar em clima de natal, quando você escuta alguém assobiando "bate o sino" no corredor distante. 

As dores, o telefone, as queixas entram em clima natalino. E por alguns instantes as paredes do hospital ficam menos brancas com os enfeites colados perto do elevador. Decidi vistar cada um dos meus pacientes. Dar um abraço, fazer uma visita que não quer saber quantas vezes o paciente foi ao banheiro, se está sentindo dor ou realizar um exame físico. Fui até os quartos de toca de natal e com uma caixinha com os enfeites. 

Alguns queriam pegar mais de um enfeite, outros tinham vergonha de escolher. Abracei a paciente que toda a equipe reclamava conhecida como "pouco colaborativa", "chata" e outros adjetivos - ela chorou e me abraçou. Um abraço desses demorados. Eu disse: "Dessa vez não quero pedir nada, só quero desejar um Feliz Natal". A mãe pediu um enfeite para o filho que não pode passar o natal com ela. O senhor que não tinha acompanhante fechou na palma da mão com força o enfeite de natal e com os olhos cheios de água disse: "essa médica é humana". Complementou dizendo que iria pendurar o enfeite no caminhão dele: "vai viajar comigo". Um senhor colocou os óculos e disse: "quero este Papai Noel de trenó". Outra escolheu os cavalos para lembrar da "campanha". O paciente com falta de ar escolheu um anjo para poder fazer ele voar. Outro paciente que não pode falar, "falou" gesticulando e com os olhos cheios de água que eu dei o único abraço de natal dele neste ano. Olhos cheios de água, natais menos solitários, abraços. 

Os meus olhos eram fios que me ligavam a aquelas histórias. Um familiar me disse: "hoje você foi nossa família" e também me abraçou.  O silêncio da escadaria me deu uma brecha para respirar enquanto lembrava da paciente que pendurou os enfeites de natal no suporte de soro: "está é minha árvore de natal". 

Voam abraços,
Mayara

25 março 2014

Lá...


Lá onde a luz brilha,
Lá onde o amor vai
nós achamos a trilha
de uma estrela que cai.
— A Turma do Balão Mágico

    Um dia nos planejamos para o batizado, o aniversário, a primeira comunhão, a formatura, o noivado, o casamento, o chá de panela, a despedida de solteiro, o primeiro dia de aula, o último dia do ano, o velório, a missa... Planos de tempos esperados, desejados, festejados ou sofridos, temidos... Histórias que nossos pais e os pais de nossos pais escreveram e registraram em fotos que enfeitam as paredes, os álbuns, os baús de memórias de família.

    De todos os planos, todos os encontros, a nossa necessidade ancestral do rito. Algo que marque nossa passagem, tal qual um portal que nos atravessa para um outro mundo: o mundo dos adultos, dos formados, dos casados e dos órfãos... Em uma série de atos que, geralmente têm uma ordem estabelecida, uma sequência lógica, nós nos despedimos de um momento e inauguramos outro.

    Mas de toda essa vida de esperas e planos, há o real da vida vivida sem estreias com data marcada. Sim, em um dia não riscado com um círculo vermelho em volta, damos um passo a mais, um sorriso a menos, uma palavra nova ou antiga dita de outro jeito, um desejo que não contemos e pronto, nos tornamos alguém que não éramos antes. Nem sempre percebemos. Não há ritual claro, não há aviso, não há vestido novo, nem valsa especial, não há hino ou hastear de bandeira, nem cortar de fitas ou troca de alianças... Simplesmente vamos, somos, nos tornamos e seguimos vida afora, sonhando com um dia novo.

    É verdade que todos os dias, em todos os encontros e desencontros, em todas as palavras e silêncios, há a chance de inaugurarmos e estrearmos, mas falo de coisas mais profundas, dessas que deixam marcas, dessas que deixam cores, cheiros, que deixam raízes onde nos sustentamos e nos alimentamos. Coisas que nos refazem, que ressignificam nossa história e que, de alguma forma até, acredito, mudam a rotação do mundo, a translação, a lua, as estações do ano e as marés. Coisas encantadas.

    Tenho prestado atenção nessas estreias sem aviso. Nessas passagens sem festa. E ainda, afirmo que, mesmo sem perceber, de forma tênue, mas muito especial e concreta, esses momentos têm sim, uma espécie de ritual mágico, escondido, tímido, quase uma névoa, uma neblina no dia claro. Tipo aquelas gotinhas de nada que se escondem no nevoeiro da primeira hora da manhã. Pois está lá, bem lá... E mais! Pode ser mais importante, mais revolucionária, mais significativa que qualquer corte de fita, qualquer assinatura de certidão, qualquer marcha nupcial ou soco no ar ao segurar o diploma. Porque o momento não é percebido no durante como todos esses outros. Ele é percebido depois. E nessa percepção é que nos dizemos em silêncio: “foi lá...”

    Que nem a musiquinha do Balão Mágico que fez parte da minha infância: “lá onde a luz brilha”. Sim, lá onde uma luz brilhou e, nem sempre percebemos. Lá achamos a trilha pra estrela que caiu, o sol que nasceu, para a chuva repentina, para o dia que mudou, para nós mesmos que nos tornamos outros, renascemos, descobrimos...

    15 anos faço de formada em julho. Desde o primeiro semestre a turma se preparava para a formatura. Festas, bingos, planos, reuniões, estratégias de conseguir dinheiro. Depois, empresas, fotos, convites, clube, baile, cerimonial, discursos, oradores, homenageados, músicas, entrada triunfal, togas, diplomas. Tudo sonhado em 6 anos e durou menos que 6 horas. Mas vale e valeu muito: lágrimas, orgulho, gratidão, alegria, sensação de alívio, liberdade e dever cumprido. Mas tenho certeza de que o momento em que a luz brilhou, o momento da minha festa de formatura foi antes, bem antes...

    Era o ano de 1998 e fui para Anguera, sertão baiano, pelo Programa Universidade Solidária. Algo semelhante ao antigo Projeto Rondon: estudantes de diversas áreas atuando em regiões vulneráveis, trocando, aprendendo e ensinando. Meu grupo passou um mês vivendo na pequena cidade. Dias intensos de descobertas, momentos de muita angústia e muita esperança, muita indignação e muita luta. Os dias e noites, todas, passaram tão rápido e tão densos que chegamos ao fim com a surpresa e o cansaço dos que correm, correm, correm e nem sabem para onde. E nem sabíamos mesmo que caminhávamos para uma maturidade e uma experiência que valia por semestres e semestres de salas de aula, laboratórios e provas finais...

    Em Anguera, fizemos um grupo de gestantes e nos mobilizamos, junto com a comunidade, para garantir a assistência pré-natal. Foi uma briga boa. Fiz muitos atendimentos, muitas visitas, muitos grupos de educação em saúde nos lugares mais diversos e até, debaixo de uma mangueira. Um dia, chegamos em uma escola para fazer um grupo e, juntos, nosso grupo e moradores, varremos a sala e limpamos as cadeiras. Descobri uma outra medicina e, naquelas tardes quentes do sertão, naquelas noites enluaradas de festas nas ruas, com as crianças e adolescentes, entendi que seguiria pelo caminho da medicina preventiva e social.

    Na última noite em que passamos em Anguera, a comunidade liderada pelas meninas da Pastoral da Criança organizaram uma serenata de despedida. Na madrugada fomos todos acordados por canções de adeus e agradecimento. Todos fomos chamados pelos nomes e recebemos rosas. O sol foi nascendo e a manhã do dia seguinte, o dia da nossa partida, foi chegando devagarinho, enquanto o forró tocava na calçada, na rua e a gente dançava, todos, tudo junto e misturado... Era fim e era começo...

    Foi lá...

    Lá onde a luz brilha, brilhou... Onde comecei a me tornar a médica que sou hoje. Onde achei a trilha de muitas estrelas que passaram e passam na minha vida. A minha foto junto com as meninas da pastoral, as meninas que me acompanharam em grupos e lutas, festas e orações é a foto da minha formatura. A serenata feita por elas foi a minha música de entrada. A rosa que me deram, foi meu diploma. Mais de um ano antes de me formar oficialmente, dancei a minha valsa de formatura: forró, com o sol nascendo e a alma e o coração recém aprendendo a juntar estrelas. Saindo da meninice da universidade e virando médica, de pés descalços na rua amanhecida e encantada de Anguera.



[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 3as-feiras]

09 setembro 2013

O amor no trabalho em saúde. Eymard Vasconcelos.



Para muitos profissionais de saúde, o trabalho com os pobres, oprimidos e marginalizados não se orienta só pelo dever profissional, pela cobrança das instituições onde estão empregados, pelos lucros financeiros que obtêm ou por uma obrigação moral aprendida em sua formação. Orienta-se principalmente pelo vínculo afetivo e pelo compromisso fundado neste vínculo. A partir deste vínculo afetivo, aproximam das pessoas e comunidades com um olhar e uma escuta sensíveis, atentas para dimensões sutis da realidade. Orientam seu agir principalmente pela percepção das suas consequências no olhar, nos corpos e nas palavras das pessoas que cuidam.

Este vínculo se inicia com o encantamento com a criatividade da população, a gratidão e valorização como são acolhidos nas comunidades, os instigantes desafios teóricos trazidos pelas complexas situações em que são chamados a lidar e seus consequentes aprendizados, além do clima de amizade e de alegria que surge neste tipo de trabalho. Trata-se inicialmente de um vínculo reforçado pelos encontros e acontecimentos do momento. Mas este vínculo vai se aprofundando. Situações de dificuldade, ingratidão, tensão, conflito e frustração surgem, criando períodos sem estes reforços. São tempos áridos que desanimam alguns, mas fazem outros profissionais descobrirem estar vinculados para além das emoções presentes. Trata-se de um vínculo mais visceral e mais atávico que os aproxima de um compromisso não apenas com os usuários mais próximos dos serviços, mas com a população em geral, principalmente os mais necessitados. Vai criando uma maior capacidade de indignação com outras situações de injustiça e opressão presentes na sociedade. Envolve-os, aos poucos, nas lutas políticas pela ampliação dos direitos sociais e pela superação das causas estruturais da desigualdade. Este vínculo mais profundo, que vai ficando sem medo das dificuldades, enfrentamentos e perseguições decorrentes, é mais bem expresso pelo conceito de amor.

O amor é um sentimento simples de ser entendido por ser uma realidade existencial universal, mas, ao mesmo tempo, é um conceito confuso e de significado teórico pouco preciso por assumir formas muito diferentes no cotidiano da vida humana. Há o amor de mãe, dos casais, dos religiosos, dos políticos populistas, do comércio preocupado com a venda de presentes, dos prostíbulos, dos poetas, etc. Há ainda o amor ao dinheiro, ao poder, a Deus e àquele prato favorito. A grande valorização do amor romântico, entre os casais na cultura contemporânea, tem criado uma referência muito forte para sua compreensão, que tende a tornar o conceito de amor em algo muito idealizado, com as qualidades mais belas possíveis, o que cria ilusões por esconder as suas contradições e seus condicionamentos sociais. No mundo acadêmico e profissional, onde impera uma ideologia de valorização da objetividade racional e lógica desvestida de qualquer emoção, passou a ser um conceito extremamente evitado. Mas na vida privada destes profissionais e acadêmicos, fora dos seus ambientes de trabalho e pesquisa científica, tem sido um dos temas que mais gera interesse. Na última década, no entanto, vem sendo tema de crescente debate nas ciências humanas.

Amor é um vinculo afetivo intenso e profundo entre seres que reorienta a relação entre eles, a partir do momento em que se estabelece. Diferencia-se do outros vínculos afetivos pela intensidade. Nele, dinâmicas inconscientes tornam-se fortes, superando o controle da vontade consciente. Gera um enlevo afetivo que toma simultaneamente a consciência e o agir dos seres envolvidos. Desencadeia um tipo especial de acolhimento, compreensão mútua e aceitação de diferenças não bem compreendidas. Cria uma relação de reciprocidade com um forte sentimento de união de interesses, propósitos, necessidades e emoções. A partir daí, estabelecem-se compromissos que se baseiam mais na emoção do que na vontade e no dever racionalmente construído. Neste vínculo, passa-se a sofrer e alegrar intensamente com o sofrimento e a alegria do outro. A partir do momento em que se estabelece na vida das pessoas, passa a ser elemento estruturante importante do sentido e da motivação que dão ao seu existir. É uma experiência, ao mesmo tempo, espontânea como também intencionalmente cultivada. A abertura e o investimento da vontade consciente criam condições para que a sua dinâmica de envolvimento emocional se aprofunde.

Amor é, portanto, regido principalmente pelo sentimento e não pela vontade. Não se ama por obrigação. Ele não pode ser ordenado. Não é um dever moral. Quando existe amor, o dever moral é supérfluo. Mas como ele não está presente na maioria das relações humanas, a moral é necessária. Para muitos filósofos (Sponville, 2011), o agir regido pela moralidade é um agir como se houvesse amor, com aparência de amorosidade, para o bem do convívio humano em sociedade. A moral, sim, é regida pela vontade e pelo dever.

A valorização dos sentimentos, das emoções e das intuições significa uma abertura para dimensões e forças que estão fora do controle da vontade e da elaboração consciente e lógica. É uma abertura para elementos vindos do inconsciente, onde não existe apenas o amor: ali estão também rancores, instintos confusos, medos intensos, agressividades, ímpetos contraditórios e a agitação de nossas neuroses. Para dar espaço à amorosidade é preciso também acolher e elaborar nossas dimensões sombrias, que tendem a se manifestar juntas. Não basta querer amar. O amor vem. E vem misturado com o que não é amor. Amar é um processo exigente de elaboração. Ao fazê-lo, potências subjetivas ligadas à sensibilidade e à intuição são desenvolvidas, levando a superação do viver restrito ao que é racional, medível e claramente explicável.
A valorização do amor no trabalho em saúde significa a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas. O vínculo afetivo cria novos canais de compreensão. Leva a mente colocar-se no lugar do outro, para perceber o significado dos acontecimentos a partir de sua perspectiva. Alguns chegam a afirmar que só se compreende bem aquilo que se ama. Assim, o amor permite que o afeto se torne elemento estruturante dos diálogos, acordos e motivações do processo de construção de uma vida com mais saúde. O amor aciona um processo subjetivo de elaboração, não totalmente consciente, que traz importantes percepções, motivações e intuições sobre a realidade para o processo de produção da saúde. Assim, são incorporados ao trabalho aspectos mais sutis da realidade subjetiva e material da população. O amor é, portanto, uma dimensão importante na superação de práticas desumanizantes e na criação de novos sentidos e novas motivações para o trabalho em saúde.
O vínculo afetivo, nesta perspectiva, se diferencia das situações de submissão presentes nas relações de dependência emocional, não podendo ser confundida com sentimentalismo ou infantilização das relações de cuidado. Em nome do amor, muitas cobranças opressivas são feitas. Ao contrário, o amor fortalece o compromisso com a superação de situações de sofrimento e injustiça. Enquanto referencia para a ação política, pedagógica e de cuidado, o amor amplia o respeito à autonomia de pessoas e de grupos sociais em situação de iniquidade, por criar laços de ternura, acolhimento e compromisso que antecedem às explicações e argumentações. 

Há inicialmente uma surpresa ao perceber a potência terapêutica e de transformação social do agir regado pela emoção amorosa. Vai se percebendo, no entanto, que a expressão desta emoção precisa ser modulada para que seja eficaz e ética. Não é qualquer emoção, pois ela também pode ser expressão de rancores, preconceitos e neuroses. É preciso aprender a lidar com as emoções no trabalho profissional. É um processo de aprendizado demorado que acontece por meio de vivências, em que erros e acertos são cometidos e refletidos. A relação continuada e franca com os pacientes, possibilitada pelo vínculo, permite que estas situações possam ser revistas. Vai se desenvolvendo o que vem sendo chamado de inteligência emocional (Goleman, ). E a vida afetiva do profissional, inclusive sua vida privada, vai sendo enriquecida.
Em uma sociedade onde grande parte dos profissionais tem um trabalho alienado, sem vínculo com o que se produz, ter um trabalho criativo e integrado com seus principais propósitos de vida é um grande privilégio. A qualidade deste trabalho, carregado de motivação e sentido, acaba sendo reconhecido, gerando gratificações, inclusive financeiras. Portas institucionais se abrem, mesmo sem iniciativa intencional para isto.
A valorização do trabalho profissional por amor é algo bastante propalado em discursos de gestores, empresários e políticos para cobrar um maior empenho do trabalhador, muitas vezes, sem condições institucionais mínimas. Por isto, há uma desconfiança generalizada contra o uso desta palavra no ambiente institucional. Mas o que realmente dá força e legitimidade para o trabalho por e com amor é a vivência de experiências significativas em que ele aconteceu, transformou e encantou. Depois de experiências como esta, discursos, ideologias e mensagens adocicadas têm pouco valor. Quem passou por esta vivência, evita falar muito sobre ela, pois as palavras são pequenas para expressá-la bem. Só conversam com quem percebem entender destes caminhos sutis da subjetividade humana. Trata-se de uma experiência que leva a uma paz e a uma sensação de sentido pleno que dão uma certeza e uma assertividade para seguir o caminho tomado. Assenta-se em rocha firme e se sente bem apoiado. As ventanias e confusões do trabalho não mais abalam significativamente. Depois desta experiência, firme na rocha, se tem força para enfrentar gestores, empresários e políticos com discursos hipócritas. O desafio passa a ser manter–se assentado nesta rocha, nesta vivência do amor, pois rancores, cansaços, medos e seduções individualistas de consumo e poder podem crescer e afastar da rocha. E o trabalho em saúde é cheio destes perigos. Mantê-lo nas trilhas do amor exige sabedoria, estudo e reflexão.

A experiência da centralidade do amor na existência humana transforma os objetivos do trabalho em saúde. A amorosidade e a ternura passam a ser não apenas uma metodologia de aprofundamento do diálogo e do cuidado, para se tornar também seu objetivo. Não se busca apenas uma sociedade justa, igualitária, participativa, sem marginalizados e com direito assegurado à assistência, mas também uma sociedade amorosa, pois só assim o ser humano se realiza plenamente. A amorosidade é pois instrumento e finalidade do trabalho de promoção da saúde.

As dimensões da emancipação ligadas à justiça, democracia e equidade das políticas sociais têm passos e metas mais palpáveis e delimitadas. São necessárias mudanças das leis, do sistema de representação política, da distribuição dos recursos públicos, da organização da produção econômica, do fortalecimento de organizações sociais, etc. São metas e passos muito difíceis, mas palpáveis dentro de uma lógica racional. Já a ampliação da amorosidade na sociedade é uma dimensão da emancipação menos palpável e menos controlada pela ação consciente. Depende do acolhimento e difusão de dinâmicas que, como o vento, a vontade não consegue governar; apenas cria-se espaço, elabora-se e espera. Isto é extremamente incômodo para as mentes regidas pelo cálculo e pelas estratégias racionalmente definidas.

Eymard Mourão Vasconcelos, setembro de 2013

Este texto e os outros textos meus estão sendo debatidos na lista de discussão 

http://br.groups.yahoo.com/group/dialogando_/

12 agosto 2013

Meu envolvimento inicial com o mundo popular - Eymard Vasconcelos


Era o ano de 1974. Eu estava em crise. No terceiro ano de medicina, pensava em abandonar o curso. Escolhi medicina pensando ser o curso mais apropriado para me tornar um pesquisador. Era fascinado com a complexidade da vida. Imaginava-me em um laboratório procurando desvendar mistérios do corpo e encontrando soluções de impacto. A figura do professor Pardal, das histórias em quadrinho do Pato Donald, com suas descobertas mirabolantes, era uma referência não claramente assumida. Mas o estágio que havia feito no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais, um centro de pesquisa bastante reconhecido nacionalmente naquela época, me decepcionara. Descobrira como a pesquisa científica em laboratório era demorada, dependente de longa rotina de repetição de testes. Era um ambiente sem o dinamismo que imaginara. Mas o que fazer então? Imaginava também o trabalho clínico em consultórios particulares e ambulatórios públicos como algo rotineiro e chato. Cheguei a procurar uma psicóloga da Universidade para me orientar.

Nesta época, o Centro Acadêmico do Curso de Medicina organizou a I Semana de Saúde Comunitária - SESAC. Eram férias e eu tinha alguns amigos na sua organização. Resolvi participar sem saber bem o que encontraria. Estudantes de cursos de medicina de outros estados vieram, trazendo relatos e reflexões de experiências de trabalho comunitário em saúde que começavam a se organizar no Brasil, em geral ligados a universidades. Era impressionante o entusiasmo de alguns deles. Animei-me, então, a participar de um estágio de duas semanas em postos de saúde recém-criados na Região do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, para os participantes da SESAC. Fui parar, com mais dois estudantes, no povoado de Engenheiro Schinnor, no município da Araçuaí, depois de uma desconfortável viagem de ônibus por toda uma noite. Até hoje não compreendo bem o que me animou a arriscar nesta aventura.

Era um povoado pobre e em decadência pela desativação da Estrada de Ferro Vitória-Minas, que lá passava. Fomos muito bem acolhidos pela comunidade. Cada refeição era feita na casa de um morador diferente. Estávamos bastante desajeitados e inseguros, apesar de apoiados por uma estudante de Brasília mais adiantada e já com alguma experiência em saúde comunitária. Apesar de estudantes, a população da redondeza, carente de assistência, afluía em grande número trazendo seus problemas que procurávamos resolver com os medicamentos da Secretaria Estadual de Saúde e muita conversa entre nós. Já iniciados em alguns princípios da pedagogia libertadora de Paulo Freire, procurávamos criar espaços para ir discutindo, de forma mais ampla, as raízes e soluções dos problemas mais importantes do lugarejo. Tentávamos identificar lideranças que nos ajudassem no trabalho de mobilização.

A carência da população, que ao tornar valiosos os nossos poucos conhecimentos, os levava a expor intensamente os seus problemas, e as orientações de Paulo Freire, que nos levavam a não assumir a atitude de doutor sabe-tudo, mas de encontrar formas para discuti-los coletivamente, fizeram uma mágica. Aquele povoado pacato e decadente se revelou lugar de uma dinâmica fascinante. Problemas aparentemente banais iam mostrando estar ligados a histórias complexas, carregadas de sofrimento, garra, opressão e paixão. Eu, filho de uma família de classe média tradicional da capital mineira e com uma vida bem regradinha, tive acesso a mistérios que nem imaginava. Assustei-me e encantei-me. Além do mais, sentia que éramos significativos na busca de soluções. Pouco entendíamos de política, sociologia, psicologia ou economia, mas nosso precário saber técnico nos dava autoridade para propor encontros e, seguindo os princípios da Educação Popular, colocar problemas em discussão. Nossa insegurança até ajudava, na medida em que nos dificultava tentar responder sozinhos às dúvidas. Estávamos perplexos demais com o que deparávamos para conseguirmos transmitir segurança. Era impressionante como uma simples orientação metodológica salvava e abria caminhos: “diante de um problema significativo, procure discutir com as pessoas envolvidas, buscando construir coletivamente as soluções”. Nas discussões com as famílias e nos grupos formados, fios da complexa meada da vida iam se revelando, mostrando dimensões inusitadas da luta pela sobrevivência e felicidade. Soluções eram costuradas com palpites de muitos, já os envolvendo no encaminhamento. Ficávamos encantados com os resultados esboçados no processo que ajudávamos a construir. 

Participávamos da obra de recriação coletiva da vida e isto era fascinante. Esta metodologia pedagógica nos aproximava afetivamente deles e nos permitia desfrutar de seus carinhos e alegrias que expressavam de forma intensa.

Não me lembro mais dos rostos daquelas pessoas, nem da maioria de suas histórias. Mas ficou marcado em minha alma um sentimento tão forte que tem me acompanhado em toda minha existência. Nunca vivera nada tão intenso. Foi algo, tão tremendo, que relativizou todas as minhas dúvidas. Não entendia bem o que acontecera, mas, a partir daí, fiquei sabendo que era isto que queria para a minha vida.

Desde então, em cada período de férias, buscava organizar um estágio em alguma comunidade. Precisava experimentar aquilo novamente; queria viver outros desdobramentos do amor que se iniciara; necessitava conhecer mais esta realidade que me fascinava. Vieram, então, ainda como estudante, Veredinha, Padre Paraíso, Calciolândia e a favela da Avenida Raja Cabáglia de Belo Horizonte. Os rostos e lugares mudavam e o vínculo aumentava. Classes populares e movimentos sociais foram conceitos que descobri e me ajudaram a dar uma identidade a este outro que tanto me atraía para um encontro de criação conjunta, mobilizando meus sonhos e minha paixão. As classes populares eram um novo e fascinante outro que encontrei em minha vida; um outro desvestido de pompas e sem pudor de escancarar sua intimidade desarrumada na crise da doença, deixando mostrar uma criatividade e vibração capazes de construir uma inesperada alegria e amorosidade em situações aparentemente insustentáveis.

Meu curso de medicina ficou colorido. Nas diversas disciplinas, os assuntos técnicos ganharam vida, pois me ajudavam a entender os problemas das pessoas com quem criara vínculos. Passei a ter, então, uma referência para selecionar o que estudar mais, ganhando uma autonomia diante da cobrança dos professores. Formei, fui trabalhar na Paraíba com saúde comunitária. Desde então, tive fortes encontros em Pilõezinhos, Guarabira e nas favelas de João Pessoa e Belo Horizonte. Descobri que outros profissionais também tinham paixões semelhantes e estavam cheios de inquietações. Fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado buscando a melhor compreensão de nossas dúvidas. Vieram livros e a Rede de Educação Popular e Saúde, que aglutina hoje centenas de profissionais com buscas parecidas.

Hoje, com 60 anos, já tive vários amores. Tive namoradas, casei, tive dois filhos que não mais vivem comigo, separei, casei novamente e, agora, tive um novo filho. Olhando para trás, vejo que o encontro, com o mundo dos pobres, oprimidos e marginalizados, iniciado em Engenheiro Schinnor, no espaço do trabalho em saúde e da luta pela justiça social, funcionou em mim como um grande encontro amoroso. Destes que criam um vínculo de tal monta que reorientam todo o viver. Que despertam energias e motivações que nos dão garra para enfrentar a aventura da vida. Entre desencontros, desencantos, momentos de intensa alegria e conquistas, raivas e frustrações, este amor perdurou central. Gerou filhos: alunos e leitores espalhados pelo Brasil, movimentos sociais, sistematizações teóricas. Criou redes de parentesco. É um amor cheio de precariedades e contradições como todos outros, mas o que mais desencadeou mudanças em minha vida.
A partir do conhecimento da realidade propiciado por este comprometimento com a pobreza, opressão e marginalidade, fui também definindo meu modo de encarar minha vida afetiva, meu lazer, minhas amizades, minha vida religiosa e minha profissão.

A força deste comprometimento estruturante da minha vida foi confirmada na década de 1990, cerca de 20 anos depois da experiência de Engenheiro Schinnor. Nesta época, passei por um intenso processo de revisão de valores. Afastei-me do cristianismo, pela crescente tomada de consciência das feridas deixadas pela formação cristã tradicional (a desvalorização dos desejos, a cobrança contínua de perfeição e a ênfase na culpa pessoal) e pelo cansaço com as contradições da igreja. E terminei o casamento de 19 anos.
Como não cristão, fui fazer meu doutorado em Medicina Tropical na UFMG, procurando estudar o novo papel da educação popular a partir da conquista do Sistema Único de Saúde, quando suas práticas passaram a valorizar mais o espaço de atuação dentro das instituições. Escolhi fazer a pesquisa em um serviço de atenção primária à saúde bem estruturado, inserido em uma grande favela de Belo Horizonte. Esta experiência está descrita no livro Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família (Hucitec, 2010, 4ª edição). Nesta pesquisa, quando percebi, estava totalmente dedicado à educação popular junto às famílias mais pobres e rejeitadas da favela: a maioria dos moradores e lideranças comunitárias tinha raiva delas pelos tumultos e sujeiras que causavam. Quando percebi isto, vi que tinha em mim um vínculo muito profundo, até mesmo inconsciente, com os pobres, oprimidos e marginalizados que dinamizava minha criatividade e trazia realização. Fui tomando consciência que um cristianismo não teórico fazia parte da minha estrutura pessoal, mesmo tendo muitas discordâncias com sua doutrina antes aprendida. Um cristianismo que não era mais essencialmente um sistema de saberes para conduzir a vida, mas um caminho de desvelamento e elaboração de uma estrutura amorosa que nos constitui (o Cristo que habita em nós, desde a criação da humanidade). A partir desta percepção, as palavras do Evangelho ganharam novo sentido. Passei, então, a ouvir e valorizar mais as vozes interiores profundas, abrindo perspectivas de ver e relacionar com a realidade, de forma menos regida pelo dever e pelo pensamento considerado correto. Retornei ao mesmo lugar, vendo, no entanto, nova paisagem. Novamente, minha vida pessoal e profissional se modificou a partir de um insight originado, em grande parte, no contato com os pobres. Por isto, tenho uma grande identidade com a história de São Francisco, narrada em texto anterior.

Este foi o caminho inicial de meu envolvimento pessoal com a luta pela saúde dos pobres, oprimidos e marginalizados. Vivi uma experiência que fundou um novo modo de ser. Percebo que vários profissionais, com envolvimento semelhante, tiveram também experiências fundantes, mas falam pouco sobre elas. É importante reconhecer a força destas experiências numinosas, isto é, experiências tão tremendas e fascinantes que passam a reorientar o viver. Trazem-lhe um novo sentido e motivação, bem profundos. Grandes aprendizados ocorrem por meio de experiências das quais pouco conversamos, pois nossas palavras não dão conta de expressá-las inteiramente. Aí, calamos.  Mas como educadores, precisamos tentar conversar mais sobre elas, criando espaços educativos protegidos em que possamos explicitar estes pensamentos e sentimentos ainda embaçados e inseguros para se expressarem com firmeza. É importante trazer para a pedagogia estes processos subjetivos, que ficam abaixo da linha d’água da consciência clara e lógica e que têm imenso poder orientador dos maiores sentidos e motivações do existir. Em outras palavras, valorizar a dimensão espiritual no fazer educativo.





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