
Tenho acompanhado muitos projetos de saúde comunitária desenvolvidos como atividade de extensão universitária nos últimos 35 anos, como professor da UFPB. Foi participando desses projetos que descobri o sentido de minha vida como professor universitário. Ao observar o contínuo surgimento de novos profissionais de saúde entusiasmados com o trabalho popular, com tão grande capacidade de iniciativa política e tão marcados por forte sensibilidade no entendimento das relações humanas, eu me pergunto: por onde passa este aprendizado?
A experiência vivenciada por meu filho Marcos me ajudou a entender mais esta questão. Ele se formou em medicina em 2007. Para minha alegria, ele, hoje, é um grande companheiro também na militância. E dos bons. Mas, tudo começou com uma experiência na extensão universitária, trabalhando com saúde comunitária.
Marcos foi criado em uma família de trabalhadores sociais. Quando nasceu, eu e sua mãe, Nelsina, estávamos extremamente envolvidos numa experiência de trabalho comunitário em saúde, no interior da Paraíba. Por sinal, fomos trabalhar lá, em Guarabira, porque a Igreja Católica local tinha uma ação pastoral orientada pela teologia da libertação e a educação popular e nós queríamos atuar onde houvesse companheiros com mais experiência no trabalho social. Com um mês de vida, Marcos já ia para nossas reuniões e, lá, era amamentado com tranquilidade. Fazíamos um programa de rádio semanal sobre saúde e, algumas vezes, ele entrava no estúdio. Seu choramingo fazia parte da programação. Os ouvintes acompanhavam seus passos, que eram discutidos e problematizados, afinal nós estávamos vivendo, pela primeira vez, com ele, muitos dilemas do cuidado de saúde com um recém-nascido. Depois, quando a repressão política nos obrigou a sair da região, fomos fazer um mestrado em educação em Minas, reconhecido, na época, pela valorização do trabalho social junto a mundo popular.
Marcos e seu irmão mais novo, Fernando, sempre conviveram com muitos educadores comunitários em casa. Voltando para a Paraíba, como professores universitários e militantes dos movimentos sociais, eu e Nelsina estávamos sempre conversando sobre questões ligadas ao trabalho social, mas eu notava que estas conversas não entusiasmavam o Marcos. Assim, quando ele decidiu fazer o curso de medicina, não correlacionava sua escolha com o tipo de trabalho médico que eu fazia.
Marcos tem muita semelhança física comigo. Quando entrou na UFPB, foi logo chamado de Eymarcos (no final do curso, tornou-se muito mais conhecido que eu e passei a ser chamado de “o pai do Marcos”). Buscando sua identidade própria, buscava se diferenciar, usando barba e criando espaços próprios de atuação. Assim, apesar de ter o pai coordenando um grande projeto de extensão universitária, sua primeira experiência foi em outro projeto, coordenado pelo meu amigo Emmanuel Falcão, nutricionista e técnico da Pró-Reitoria de Extensão da UFPB.
Tudo aconteceu durante uma greve de professores, no primeiro ano de seu curso. Marcos estava sem o que fazer e resolveu participar do Estágio de Vivência em Comunidades, organizado por Falcão em conjunto com a Direção Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM). Nesta vivência, passou duas semanas com outros estudantes, em um povoado indígena, na cidade paraibana Baía da Traição, que se seguiram de debates sobre o seu significado.
Como pai, senti que esta vivência foi um ponto de corte na vida de Marcos. Sua alma foi tocada de forma intensa por algo semelhante ao que vivi quando, há 39 anos, fui fazer um estágio, ainda como estudante de Medicina, em um povoado de uma região bem pobre de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha. Após esse Estágio de Vivência, Marcos ganhou uma paixão pela qual passou a lutar e a estudar. A paixão pelo mundo popular, com suas belezas, potências, misérias, surpresas e dores. Passou a dedicar grande parte de sua energia à sua causa. Suas amizades, seu lazer, suas leituras e seus projetos se transformaram nesta militância. Senti a emergência de uma vibração especial em sua vida. Tinha um filho e, naquele momento, ganhei um companheiro de sonhos, projetos, curtições e lutas. Como isto é importante na vida de um pai!
Marcos, desde pequeno, ouvira muitas conversas sobre as belezas e desafios do trabalho social no meio popular. Conversávamos bastante sobre fatos da vida, quando eu expressava meu modo de ver a sociedade. Sua mãe também trazia temas do mundo popular em suas conversas em casa. Mas sentia que estas tantas conversas, destes pais, considerados e valorizados como autores de livros sobre saúde comunitária, não tocavam muito o coração de Marcos. Seus projetos e seus gostos pareciam passar por outros caminhos. O que o tocou e o transformou realmente foi o contato intenso com o mundo popular propiciado por aquela vivência. A experiência valeu muito mais que anos e anos de conversas.
Esta reflexão vem ao encontro do que tenho notado como professor do Curso de Medicina da Universidade Federal da Paraíba, onde ensino desde 1978. Atualmente sou uma pessoa bastante convidada para dar palestras em outros estados do Brasil. Muitos gostam de minhas palavras, entretanto não sinto que elas tenham muito poder pedagógico de transformação entre meus alunos. Grande parte deles não gosta de minhas reflexões. Outros gostam, mas não tenho percebido que minhas aulas tenham maiores impactos em suas vidas profissionais. Mas percebo que o projeto de extensão na Comunidade Maria de Nazaré (uma favela da periferia de João Pessoa), em que participo, tem um impacto de transformação pedagógica imenso.
No nosso Projeto (Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família), que já dura dezesseis anos, muitas turmas de estudantes passaram e pude assistir a grandes transformações. Acompanhei estudantes se transformarem em lideranças com grande capacidade de articulação política e grande envolvimento com as causas dos oprimidos. Formaram-se profissionais extremamente sensíveis aos interesses e às peculiaridades dos subalternos. Mas, neste Projeto, há muito pouco espaço para exposições teóricas. O seu forte é a inserção na realidade popular e o debate sobre as perplexidades que surgem desta vivência. O mais forte é a experiência e não aulas bem feitas. A teoria que valorizam mais é aquela que é buscada a partir das provocações trazidas pelas vivências. Uma teoria que cresce e é elaborada de uma forma que parece mais uma conversa.
O que há na realidade popular que tem tanta força de seduzir e apaixonar as pessoas que dela se aproximam abertos? O que há nesta realidade que levou pai e filho para o mesmo caminho? Há muito mistério nisto, mas algumas coisas podem ser ditas.
O pobre latino-americano está submetido a condições de muita opressão e pobreza. Neste contexto, estruturam-se muitas relações humanas perversas que impressionam muito quem se aproxima dessa realidade de sofrimento e desarrumação. Mas as pessoas que se envolvem com a causa popular não costumam fazê-lo por dó. Vejo nestas pessoas um grande encantamento com o que encontram. Os pobres da América Latina vivem radicalmente a miséria humana, mas o fazem de uma forma que permite dela brotar lutas, alegrias, paixões e solidariedades que encantam. Eles não costumam esconder suas mazelas. Oferecem-nas para o diálogo a quem delas se aproxima com abertura e respeito. Sobre a pobreza assumida sem máscaras, conversas e apoios solidários vão edificando saídas e relações humanas que encantam por sua criatividade e potência. Neste momento, o profissional tem a oportunidade de experimentar o poder dos seus gestos e palavras como dinamizadores desta construção.
A partir desta constatação, minha preocupação como professor passou a ser aplicar e experimentar este aprendizado nos cursos de graduação. Não é o conhecimento, mesmo crítico e progressista, que age pedagogicamente de forma mais intensa no estudante e, sim, a inserção e vivência no mundo daqueles que são nossa maior preocupação. Desisti de organizar minhas disciplinas de forma centrada na exposição logicamente estruturada dos conteúdos da saúde pública. Procuro, antes de tudo, criar vivências que provoquem e instiguem os estudantes. E criar espaço para debater e pesquisar os estranhamentos e percepções. Preocupo muito mais em criar situações de exposição dos estudantes à realidade de saúde das classes populares e gerar debates dos sentimentos e reflexões que daí surgem. Neste momento, livros, artigos e a pesquisa na Internet passam a ser buscados espontaneamente. Sei que, assim, alguns conteúdos planejados do programa das disciplinas costumam ser deixados de lado, mas o aprendizado, por caminhos surpreendentes, é muito maior. E é muito maior também o interesse e alegria dos estudantes que se envolvem.
Mas, nem todos os estudantes se envolvem nessa metodologia: a aproximação e o olhar compreensivo para com o mundo dos pobres irritam muitos que vivem em contextos familiares e de classe social que se beneficiam da injustiça e da desigualdade. E nem sempre se consegue a verbalização franca e clara desta irritação para ajudar a aprofundar o debate. Por isto, não é fácil conduzir este jeito de educar em cursos universitários em que muitos estudantes trazem uma atitude de soberba pela classe social a que pertencem. Uma coisa é usar esta metodologia na extensão, em que os estudantes se envolvem voluntariamente, por opção própria; outra coisa é aplicá-la de forma ampliada para todos os estudantes de um curso de graduação. Nesta situação, estes estudantes irritados boicotam os espaços de debate e as iniciativas de inserção mais profunda nas comunidades.
Mesmo assim, tem valido a pena. Muitas vezes, o nojo e desprezo para com os pobres são sentimentos difusos entranhados na subjetividade destes estudantes, de uma forma não assumida conscientemente. Estas experiências curriculares obrigatórias de inserção no meio popular criam condições para que eles possam refletir sobre esta conduta quase automática e se transformarem. O acolhimento afetuoso das famílias e movimentos populares, com suas histórias cheias de criatividade e garra, bem como a descoberta do fascínio de se descobrir profundamente útil e significativo em situações de tanto sofrimento têm uma potência transformadora muito maior do que qualquer aula teórica. É muito gratificante, para nós docentes, assistir estas mudanças tão radicais na vida dos estudantes. É isto o que me encanta no ensino universitário: os educandos são confrontados com múltiplas visões de mundo e projetos de vida que estão bem fora de sua tradição familiar e de classe. É um espaço de enorme potência pedagógica. Uma potência pedagógica que vai muito além daquilo que está planejado no currículo oficial. É uma pena que muitos educadores não valorizem, criando espaços de escuta, debate e estudo, para esta efervescência de questionamentos e aprendizados possa se desdobrar e avançar. Só me realizei como professor universitário quando consegui acessar e trabalhar pedagogicamente esta realidade de buscas, perplexidades e trocas que se encontra para além dos conteúdos e das aulas previamente planejados.
Eymard Vasconcelos, outubro de 2013
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