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17 janeiro 2016

Da dor do amor


Ah, doutora, o cansaço melhorou sim. As vezes quando tomo banho e me abaixo pra vestir a cueca ainda canso. Mas quase nada. Tou é ficando bom. Já pode me mandar lá pra enfermaria que aqui eu conheço tudo. É sim, doutora, sou cliente fiel. Já me internei aqui 7 vezes. Lá no Procape foram 24. E no Agamenon mais 3. Meu coração tá fraco. 

Minha esposa foi embora por causa disso. Ela perdeu o gosto de viver com medo de eu morrer antes dela. "Como é que eu vou viver sem tu, meu Nego?" Ela dizia.. Coisa mais linda que eu tinha na vida, doutora.

Faz 7 anos que ela me deixou. Ah, sim! Eu vivi muito tempo com ela. Foram 40 anos de casado e mais 10 de namoro. A gente começou a namorar novinho, na escola. Eu tinha 12 anos. No começo o pai dela não gostava não, mas ai ele viu que eu tinha era amor demais pela filha dele e deixou a gente se casar.

Não, filhos a gente não teve da barriga não. Só um adotado. Ela perdeu bebê três vezes. O médico disse que ela não podia ter filho não. Fazer o que né? Foi assim que a vida quis.

Vou dizer uma coisa pra senhora, ela foi a coisa mais bonita que Deus me deu. Eu amava a minha mãe. Era uma coisa linda eu e minha mãe. Eu deitava no colo dela, ela fazia carinho em mim. Mas com a minha nega, Ave Maria! Eu amava muito mais minha nega. E era um ciúme elas duas, viu? 

A gente morava numa casinha aqui em Paulista. Um dia ela acordou de manhã, antes do Sol nascer. Disse que tava se sentindo mal e que não ia pro terraço hoje, como a gente fazia todo dia pra ver o dia clarear. Disse que eu fosse sozinho e ela ia ficar na cama mais um pouco. Olhe, doutora, meu coração ficou apertado de sentar ali no terraço sem ela. 

Ai fui trabalhar na venda. Mas deu assim a hora do almoço e eu comecei a sentir um nervoso. O rapaz que trabalhava comigo perguntou se eu tava bem. Eu disse que não, que tava era muito mal. Disse a ele que desse um jeito nas coisas que eu ia ver Lau. Fui correndo pra casa. Quando cheguei lá, doutora, meu coração doeu demais. Ver minha nega deitada na cama sem um pingo de sangue no rosto. Corri com ela pro Osvaldo Cruz. Me alterei quando disseram que lá não tinha emergência. Eu falei que não era emergência, era urgência! Eles tinham que salvar minha nega. Ah, a senhora estuda lá? Então, como chama aquele lugar que cuida de câncer? Isso, CEON. Ela tinha câncer, sim, no pâncreas. Se tratava lá.

Ela ficou internada na UTI. Quando eu vi a médica vindo, com a blusinha e a bermudinha que ela tava vestindo e o anel dela eu pensei: pronto, perdi minha velha. Mas não, ela ainda tava viva. Peguei as coisas dela e vim em casa. Me deu uma aflição, doutora. Eu olhava pra prateleira com a foto da gente se abraçando, que a gente tirou no aniversário do irmão dela. Ela que quis tirar, foi. Ela me disse: Nego, vamos tirar uma foto aqui, se eu morrer antes, fica de lembrança pra você. Se você morrer antes, fica de lembrança pra mim.

Não, não tou com a foto dela aqui não, mas amanhã vou pedir pra alguém trazer pra senhora ver.

Eu sei que eu fui dormir e acordei no meio da noite. Abri uma fresta da porta. A irmã dela tava na sala chorando. Ai eu me desesperei. Nunca mais ia ver ela. Ela morreu três dias depois que saiu minha aposentadoria. Eu usei tudo pra ajeitar nossa casinha. Troquei as portas, as janelas. Cada coisa que trocava era lágrima que caia. Trabalhei tanto pra dar isso a ela e ela não aproveitou.

No outro dia já veio a funerária que a gente pagava. Levou o corpinho dela pra enterrar lá em Tabira. Eu sei que eu vi o caixão saindo do carro, depois não vi mais nada. Sei que já acordei no hospital. Infarto agudo, o médico disse. Olhe, doutora vou dizer uma coisa. Doeu demais meu coração nesse dia. Mas a dor que é viver essa vida sem ela do meu lado, ah, essa dor é muito maior!


Maria Olívia Mendonça

Escolhi Maria como convidada especial deste domingo e espero de outros. Ela é estudante de medicina na Universidade de Pernambuco, viajante (CSF Budapeste) e poeta. Incerta nas escolhas mas que se entrega nas palavras e na medicina, publica seus retalhos e experiências na sua página do Facebook. Obrigada Maria por aceitar participar! Voam abraços, Mayara. 

21 janeiro 2015

"Doutor, o que eu tive no hospital?"


 Estava aproveitando a experiência na área rural da Irlanda. Da janela só se vê árvores e muros de pedra. Uma casa ao longe, fumaça na chaminé. Uma vila pequena onde as pessoas falam ainda o idioma antigo: o gaélico. Foi nesse clima de conforto que por três vezes no mesmo dia os pacientes tiveram uma dúvida que eu já havia escutado em outros momentos: “Doutor, o que eu tive no hospital?”. É muito difícil imaginar que os pacientes ficaram internados por horas ou dias e não entenderam o que tiveram no hospital. E como repetidas vezes acontece, percebo que os problemas da medicina no Brasil e na Irlanda são muito parecidos. As reclamações se encontram em uma via comum. 

E ai cai-se, às vezes, numa retórica profissional: “não tenho tempo para explicar” ou o pior “o paciente não vai entender”.  Reverto o questionamento para “quanto tempo leva um explicação?” e “é o paciente que não entende, ou o profissional que não sabe como explicar?”. Somos educados para nos comunicarmos (fora do contexto da anamnese Localização, Intensidade, Caráter, Irradiação Duração, Evolução, Fatores Associados...)? A compreensão do paciente em relação ao tratamento é fundamental para cooperação e adesão, ou até, o que pouco se fala: a escolha do paciente de não seguir o tratamento indicado, não cooperar, não aderir. O paciente ainda pode sofrer preconceito taxativo quando decide não seguir um tratamento, virando os bordões: “este paciente é difícil” ou “o paciente é ruim”. A questão da comunicação está no cerne da medicina, aparte dos diagnósticos brilhantes, como foi escrito “um médico medíocre, mas cordial, obtém melhor satisfação das pessoas que um médico tecnicamente brilhante, mas rude”¹. 

Não estamos falhando na comunicação?
  A medicina é mais do que uma equação balanceada com medicamentos e procedimentos dentro do atendimento à saúde. Como Manchada (2013) escreveu: “O problema, certamente é que o padrão de cuidado atual não está funcionando”. Estamos frequentemente focando na doença, ao invés da causa da doença, ou ao invés da experiência do paciente. Manchada (2013) continua seu texto falando: “a maior ironia é que a maioria dos profissionais de saúde reconhece isso como cuidado adequado à saúde”.   

Principalmente, no hospital, geralmente pacientes e familiares estão mais fragilizados, precisando de cuidado e simplesmente aceitam as condutas sem explicação ou questionamento – não que aconteça na atenção primária e secundária, mas aparentemente fica mais marcado na atenção terciária.

Nunca vou me esquecer de um paciente, ainda no segundo ano da medicina, fiz a anamnese e talvez porque tinha mais tempo para comentar algumas coisas sobre cavalos ficamos conversando/coletando a história, ele tinha levado um coice de um cavalo na região do fígado. No meio da conversa, ele puxou vários comprimidos de paracetamol escondidos na gaveta do hospital e falou que estava tomando porque aliviava a dor, lembro que era uma superdosagem, e talvez a causa de ele estar internado. Culpa do paciente? Culpa do serviço? Sem, culpabilizações, talvez estejamos falando de comunicação.   

 Mas a pergunta “O que eu tive no hospital?” ficou por dias martelando nas minhas reflexões.  Na saúde atual o paciente paga (mesmo que através de impostos) pelo serviço, mas não necessariamente para ficar mais saudável ou para ajudar no processo de autoconhecimento do próprio corpo ou do processo saúde-doença. 


Voam abraços,

Mayara Floss
 
1. Borrel Carrió F, Dohms M. Relação clínica na prática do médico de família. In: Lopes JMC, Gusso GDF, editores. Tratado de Medicina de Família e Comunidade. São Paulo: Artmed, 2012. p. 124-134.

2. Manchada R. The Upstream Doctors: Medical Innovators Track Sickness to Its Source. 38 ed.: TED Conferences; 2013. Diponível em: http://www.amazon.com/The-Upstream-Doctors-Innovators-Sickness-ebook/dp/B00D5WNXPE


[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

29 janeiro 2014

O House depois que entrei na medicina

 O Herói

"— Papai, o que é um herói?
Eu pergunto porque tenho grande vontade
De ser herói também ...

Será que posso ser herói sem entrar numa guerra?
Será que posso ser herói sem odiar os homens
E sem matar alguém?"

O homem que já sofrera as mais fundas angústias
E as mais feias misérias
Trabalhando a aridez de uma terra infecunda
Para que não faltasse o pão no pequenino lar;
O homem que as mais humildes ilusões perdera
No seu cotidiano e ingrato labutar;
Aquele homem, ao ouvir a pergunta do filho:
— "Papai, o que é um herói?"
Nada soube dizer, nada pôde explicar...

Tomou de uma peneira
E cantando saiu, outra vez, a semear!

  Judas Isgorogota

    Aparentemente, para muitos acadêmicos de medicina não há glória maior do que ser comparado ao House do seriado. Não só acadêmicos, mas professores também. E aí eu penso porque o House? E sublinho esse pensamento, porque me entristece profundamente.

    Antes de entrar na faculdade eu gostava do seriado, mas não precisei passar do início do segundo ano para ver que a medicina precisa de toque e envolvimento. No House se quer eles examinam o paciente. E o protagonista da série nunca toca, ausculta, e principalmente mal conversa. Ele sabe tudo sobre qualquer diagnóstico clínico, mas pouco conhece daqueles que cuida. Realmente o seriado é envolvente, a clínica e as discussões interessantes (com aquele toque de ação para prender os espectadores). Mas, sempre pensei que ficava claro que ele não era um bom exemplo: frustrado, sem conseguir se relacionar e cercado de diagnósticos brilhantes.

Foto: André François no livro "Cuidar"

    Porém, “meu sonho é ser como o House” é o que escuto nos corredores do hospital. Claro, existe aquela visão hospitalocêntrica da medicina, porém penso nessa ideia de ser um médico House: sem tocar, sem examinar, sem conversar – mas, pasmem, com grandes diagnósticos. Recordo do trecho que li do livro da Elisabeth Kübler-Ross de uma paciente no quarto de um hospital: "Lembro de uma mulher que praticamente gritou: - Tudo que meu médico quer é discutir o tamanho de meu fígado. A essa altura o que me interessa saber qual é o tamanho do meu fígado? Tenho cinco filhos em casa que precisam de alguém para cuidar deles. É isso que está me matando. E ninguém fala comigo sobre esse assunto! (...)".

    E aí, todos saem de peito estufado caminhando pelos corredores de jaleco branco. Já vi muitos pacientes com diagnósticos brilhantes, exames que fecharam tudo, e até pacientes sem diagnóstico, mas que estavam perdidos sem entender o que tinham, que medicamento tomavam, sem alguém para conversar. Aliás, não sei o que acontece com a medicina, mas até o gesto humano de chorar muitas vezes é repelido, quando o paciente chora, vira-se as costas “para dar um tempo”, ao invés de acolher. Desaprendemos a lidar até com as lágrimas.

Foto: André François no livro "Cuidar"
     Ai você vê alunos com pupilas brilhantes, coração aberto no primeiro ano da faculdade de medicina que “endurecem”: tem vontade de chorar, mas não choram; tem vontade de conversar, mas não conversam; tem vontade de questionar, mas seguem o bonde. Também, pouco é dada a chance de errar, temos vergonha de errar. Certa vez questionei meu professor sobre isso, me atrevi a perguntar se ele errava, e aí ele me tranquilizou: “Quando me formei comecei a trabalhar fazendo exames para piscina, quando chegou meu primeiro caso de micose e eu não sabia tratar cheguei em casa decepcionado e fui estudar”.

    Tenho a impressão que se criaram então algumas “regras” para “ser humano” na medicina, uma se destaca que usarei como exemplo: ao invés de se referir ao número do leito do paciente se fala o nome do paciente. Mas, saber o nome não basta se continuar se discutindo apenas o tamanho do fígado. Devo frisar que não estou fazendo uma apologia a médicos com pouca técnica ou que não sabem diagnosticar, examinar, fazer procedimentos, mas sim, falando da medicina que só vê pedaços, órgãos, sistemas, e não pessoas. Aliás, ainda, pouco se fala em técnicas de comunicação, formas de perguntar e conversar. Descobri com o tempo e insatisfeita com o meu cuidado com os pacientes (que acreditava ser insuficiente) que existe outros caminhos para trilhar na medicina.

    Outro paradoxo são os pacientes que falam “Se o doutor House estivesse aqui já teria resolvido”, o que me remete a outro ponto que é fato da medicina não terminar no diagnóstico nem no procedimento. O seriado não fala do tratamento, dos antibióticos, medicamentos, da recuperação. Aparentemente a “saída” é o diagnóstico, e muitas vezes para a medicina também, o ponto final é o diagnóstico a prescrição e o tratamento. Mas existem mais coisas entre um diagnóstico e o paciente do que podemos compreender.

Foto: André François no livro "Cuidar"

    Inúmeras vezes escutei “Não há mais nada para fazer com esse paciente”, com os olhos derrotados e os ombros baixos – embora as vezes triunfantes por terem feito um diagnóstico. Porém, aprendi que sempre há o que fazer com o paciente, um abraço, um cuidado, conversas entre médico e paciente, trocas que nenhuma grande farmacêutica consegue imitar. Existem desejos que valem até burlar algumas regras e preparar uma cuia de chimarrão para o paciente que quer tomar um “mate amargo”. Aliás a cuia, a bomba e a erva, são os companheiros da solidão – até a solidão da morte.

    Entristece-me os futuros “Houses” onipotentes em seus diagnósticos, brilhantes nas suas análises, perfeitos na técnica, que decoraram o resultado do hemograma, saibam exatamente a interpretação da Ressonância Nuclear Magnética,  o próximo passo para o tratamento, o exame, mas que não saibam fazer outra coisa que não seja uma anamnese quadrada. Qual o seu nome? Idade? Cidade onde mora? Onde nasceu? Quantos filhos você tem? Porque veio para o Hospital?...

    Certa vez, um médico em um congresso falou: “Você descobre que se tornou um bom médico quando você consegue ter uma boa conversa com o seu paciente sem perceber que está fazendo a anamnese”. Talvez não seja House, mas seja daquele "heroísmo" simples de semear. Pode ser uma enfermeira que leva um lenço colorido para a moça que está fazendo quimioterapia, ou a assistente de serviços gerais que consegue um travesseiro pra senhora que dorme na cadeira ao lado do esposo doente ou o acadêmico que vai para um asilo para ouvir as histórias dos idosos. 

     A diferença é se preocupar com pessoas e não com diagnósticos. Com o brilho da alma humana, e não com o raciocínio brilhante.

Decidi colocar imagens que o fotógrafo André François lançou em 2006 em no livro "Cuidar" - Um documentário sobre a medicina humanizada no Brasil. Pode-se acessar mais imagens clicando aqui.A Maria Amélia Mano me ajudou com alguns toques especiais no texto.

Voam abraços,

Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às Quartas-feiras]

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