09 dezembro 2015

Graça




Da série: Internato

- Qual é a sua graça? – o paciente pergunta com a máscara e toda a dificuldade, não entendi. Ele disse de novo com mais força – Qual a sua graça? -.

Sempre fico meio sem graça quando perguntam isso, me lembra de outro paciente que não entendi a pergunta da “graça”. Expressão antiga, acho que não tenho graça. Digo, - Mayara -. Ele fecha os olhos e murmura – nome bonito.

Na mesma manhã, várias perguntas e anamnese eu seguro a mão dele e ele me diz – Minha filha tem o mesmo nome que você - . Olha para mim em um suspiro e fala – Eu estou com medo Letícia, ele olha para mim, não você não é Maria, você é a estudante - . Digo que sim, digo minha graça. Ele diz – Eu estou com medo Mayara, minha filha vem me visitar antes do procedimento, ela vem fazer uma oração, sou evangélico, Mayara... – silêncio e eu sorrio – Qual a sua religião Mayara? – digo: - sou de todas um pouco – e ele: - eu poderia ser seu pai Mayara -.

Na hora do almoço, quando todos estávamos com fome foi a hora que os aparelhos para fazer o exame no paciente chegaram. Precisávamos sedar. Pressa para entubar. Mas espera, a hora da visita estava por começar e o paciente não iria ver a sua filha, não ia fazer a oração. Sai correndo pela UTI, avisar o médico para deixar o paciente conversar com a sua filha. O procedimento era de urgência, mas nada mais urgente do que orar. Corri até o leito dele e disse que ia dar tempo de ver a filha, rápido, alguns minutos, e vi do lado de fora ela chegar e abraçar o pai, beijar a testa dele, abrir a bíblia e ler algumas frases segurando a mão dele.

Ele diz antes da sedação: - Muito obrigado Mayara e sorri.

Corre a sedação. Tubo, 5, prepara tudo.

No final, o procedimento foi bem. Paciente respirando com o tubo em AIRE (sem ventilação mecânica).

Dormiu toda a tarde. E almocei mais tarde.

No dia seguinte. Ele me disse: - Dormi um sono bom Maria, não vi nada - . Eu respondo: - que bom!

 – Ele diz mas não é Maria, é Mayara, né? Digo que sim. Conversamos sobre Rio Grande, sobre como está o tempo lá fora, sobre a vontade de viver, e ele me diz: - Antes eu não valorizava um copo de água, Mayara, agora tudo que eu quero é tomar água, até o sabor é diferente – e levanta um copo de água que foi liberado para ele tomar. Antes de sair do quarto ele me diz: - temos que valorizar  as coisas pequenas, Mayara, não esqueça.

No meio da tarde precisamos fazer uma paracentese diagnóstica. Explico para ele.

Ele diz: - É a primeira vez que você vai fazer?

Eu digo:

- Sim.

Ele:

- Vou ser sua cobaia, Mayara? -

Eu:

 - Não,  o médico vai estar do meu lado e vou tentar ser o mais gentil possível.

Ele:

- Mayara, eu entendo, pode aprender comigo.

Eu digo timidamente:

- Muito obrigada.

Ele:

- Eu estou com medo de novo, Mayara.

Eu:

- Mas dessa vez você vai ficar acordado.

Ele:

- Eu não gosto de agulhas.

Eu:
- Mas quem gosta? – e explico da forma mais simples que consigo sobre o procedimento (uma paracentese).

Ele:

- Então você vai colocar uma torneira para tirar água da minha barriga?

Eu:

- Mais ou menos isso. 

Voam abraços,
Mayara Floss

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