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Imagem capturada na internet, 2017. |
Ernande Valentin do
Prado
Infelizmente essa
história não é mera ficção.
No domingo Dona Sônia acordou um pouco mais
tarde do que o hábito. Chegou um pouco atrasa para missa das sete e ouviu em pé
o sermão do Padre João, que falou sobre as provações pelas quais passou Jô: ele
nos ensina, disse o Padre, que o sofrimento faz parte da vida, mas também que
Deus está no controle e que nos abençoará abundantemente no tempo dele.
Todos têm sua vez e sua hora, pensou Dona Sônia
enquanto caminhava pela rua sem calçamento do bairro, junto com outras
moradoras.
- O que aconteceu com seu olho?
Questionou Dona Margarete.
- Nada, por que?
Disse rindo Dona Sônia, mas instintivamente
levou a mão ao olho.
- Não tá sentindo nada? Insistiu dona
Margarete.
- Não!
Respondeu, já ficando preocupada com a forma
como a vizinha lhe olhava.
Imediatamente Dona Sônia, talvez despertada
pela pergunta da mulher que caminhava ao seu lado, começou a sentir uma leve
coceira no olho. Quando chegou em casa correu ao espelho. Estava lá o derrame.
Tinha tanto sangue que nem entendia como ainda estava enxergando. De imediato
entendeu a insistência de Dona Margarete.
Assustada recorreu a um conhecido que
trabalhava no hospital de traumas. Não gostava de pedir esse tipo de favor, mas
era o jeito, não iria esperar até o dia seguinte para ir à Unidade de Saúde do
bairro.
O conhecido conseguiu que ela fosse atendida
como prioridade. Mesmo assim perdeu toda tarde de domingo no pronto socorro.
Sabia, de ouvir, que muitas pessoas passavam dia e noite aguardando e não eram
atendidas de jeito nenhum. No programa da tarde, da TV, viu o caso de um senhor
que morreu sentado, enquanto aguardava ser atendido, e o pessoal do hospital só
viu um dia depois. Felizmente, mesmo tendo perdido mais tempo do que esperava,
conversou com um médico residente.
Tão novinho, será que sabe alguma coisa? Pensou
Dona Sônia:
- Por que a senhora não procurou atendimento
antes, no seu bairro?
Perguntou o menino apontando uma luzinha em seu
olho.
- Começou isso hoje, doutor. De manhã, quando
sai para ir à missa não tinha nada. Quando voltei, já tava assim. E hoje a
Unidade de Saúde não abre, é domingo, o senhor sabe.
O médico, dizendo que não poderia fazer nada
ali, encaminhou Dona Sônia para central de regulação do município, que só abria
na segunda-feira pela manhã. Antes ele explicou detalhadamente: a hiposfagma, é
caracterizado pelo rompimento de minúsculos vasos sanguíneos localizados na
conjuntiva ocular, causando uma mancha vermelha de sangue, como essa no seu
olho, Dona Sônia. A conjuntiva é uma fina película transparente que recobre a
parte branca dos olhos, chamada de esclera. As causas do derrame ocular podem
ter origem em processos irritativos, alérgicos, traumáticos ou infecciosos e até
por picos de pressão arterial e alterações da coagulação sanguínea. Entendeu
dona Sônia?
- Entendi.
Respondeu a mulher, imediatamente.
Dona Sônia, de toda explicação, entendeu que o
derrame podia ser por causa da pressão alta. Mas estou tomando direitinho os
remédios que a médica passou, pensou ela e instintivamente levou a mão à bolsa,
onde guardava os medicamentos.
Na saída da emergência, por via das dúvidas,
tomou mais um comprimido de captopril.
Se Deus quiser, vai melhorar. Pensou ela.
Na segunda-feira Dona Sônia procurou a
secretaria de saúde, que não dispunha de um oftalmologista em menos de 30 dias
e a encaminhou para Unidade de Saúde da Família.
- Mas vá amanhã, que essa hora já não deve ter
mais fichas.
Disse a moço da secretaria sem desviar o olhar
da tela do computador. Nem viu o olho de Dona Sônia, que a essa altura parecia
mais uma lua de sangue, do que um olho.
Na terça-feira Dona Sônia foi até a Unidade de
saúde. No balcão a recepcionista, olhando a tela do computador, disse:
- Hoje só atendemos gestantes, nem adianta
esperar.
Meus Deus, o que vai ser de meu olho? Pensou ela
fazendo o sinal da cruz.
- Volte amanhã, quem sabe consegue.
Humildemente Dona Sônia foi embora.
- Tá bom, minha fia, eu volto amanhã.
Caminhando pensava: Jesus foi pregado na cruz,
sangrou, foi humilhado, sofreu. Ter que esperar não é nada, perto do que ele
passou.
No dia seguinte, quarta-feira, voltou para ver
a médica, mas nem chegou ao balcão, a auxiliar de limpeza, sem desviar atenção
do chão que varria, a dispensou do
portão, dizendo que a médica só atenderia hipertensos e diabéticos.
- Vocês vêm aqui todo dia e não sabem dos
programas? Precisam se organizar minha gente, não podem ficar vindo aqui no dia
errado, atrapalha o fluxo de atendimento, que é bem organizadinho, sim senhora.
- Mas eu tenho pressão alta, disse Dona Sônia.
- Agendou?
- Não.
- Pois é. Se tem que pegar fila: reclama. Se é
agendado: reclama.
Dona Sônia não estava reclamando, mas não disse
nada. E nem a mulher queria ouvir, pois já foi logo virando as costas e
continuou varrendo.
Dona Sônia não queria causar transtorno, por
isso foi para casa. Voltou na quinta-feira bem cedo, mas era dia de “visita
domiciliar” e só estava a recepcionista na unidade.
Engraçado, aqui não tem ninguém hoje, será que
até o segurança e a faxineira vão para as visitas. Pensou Dona Sônia
Na saída encontrou uma conhecida, que ia
passando.
- Que olho é esse, mulher?
- Tá assim desde domingo.
- E o médico já viu?
- Nunca que consigo acertar o dia certo de ser
atendida aqui.
- Só Deus mesmo pra fazer essa gente trabalhar.
A conhecida pegou dona Sônia pela mão e voltou
com ela para dentro da unidade. Quando entrou empurrando as cadeiras vazias, a
recepcionista parou de olhar para tv e levantou-se assustada.
- Oh minha filha!
Disse a mulher batendo no balcão:
- Que raparigagem é essa aqui? Você viu o olho
dessa mulher? Tem coragem de mandar pra casa uma mulher com o olho desse jeito?
Disse a conhecida, com os braços cruzados e
batendo o pé no chão.
- Já expliquei para ela que a médica não tá
hoje.
- E aonde tá a desgraça dessa mulher?
- Tá fazendo visita domiciliar...
- Então é só sentar e esperar, que deve estar
por perto, que visita é na comunidade, não é filhinha?
- Mas ela vai embora de lá mesmo, nem passa
aqui na quinta-feira.
- Ah é, então a gente vai pra secretaria de
saúde, que desse jeito não vai ficar. Tem que ter um médico para ver esse olho.
E agarrou a mão de Dona Sônia e foi puxando.
- Vem cá.
Disse a recepcionista, pegando o telefone.
- Ela não me disse que o olho tava assim.
Espera um pouquinho, vou ligar pra médica, quem sabe ela tá por perto e vem.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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