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24 março 2017

CADA UM POR SI, DEUS CONTRA TODOS

Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Infelizmente essa história não é mera ficção.

No domingo Dona Sônia acordou um pouco mais tarde do que o hábito. Chegou um pouco atrasa para missa das sete e ouviu em pé o sermão do Padre João, que falou sobre as provações pelas quais passou Jô: ele nos ensina, disse o Padre, que o sofrimento faz parte da vida, mas também que Deus está no controle e que nos abençoará abundantemente no tempo dele.
Todos têm sua vez e sua hora, pensou Dona Sônia enquanto caminhava pela rua sem calçamento do bairro, junto com outras moradoras.
- O que aconteceu com seu olho?
Questionou Dona Margarete.
- Nada, por que?
Disse rindo Dona Sônia, mas instintivamente levou a mão ao olho.
- Não tá sentindo nada? Insistiu dona Margarete.
- Não!
Respondeu, já ficando preocupada com a forma como a vizinha lhe olhava.
Imediatamente Dona Sônia, talvez despertada pela pergunta da mulher que caminhava ao seu lado, começou a sentir uma leve coceira no olho. Quando chegou em casa correu ao espelho. Estava lá o derrame. Tinha tanto sangue que nem entendia como ainda estava enxergando. De imediato entendeu a insistência de Dona Margarete.
Assustada recorreu a um conhecido que trabalhava no hospital de traumas. Não gostava de pedir esse tipo de favor, mas era o jeito, não iria esperar até o dia seguinte para ir à Unidade de Saúde do bairro.
O conhecido conseguiu que ela fosse atendida como prioridade. Mesmo assim perdeu toda tarde de domingo no pronto socorro. Sabia, de ouvir, que muitas pessoas passavam dia e noite aguardando e não eram atendidas de jeito nenhum. No programa da tarde, da TV, viu o caso de um senhor que morreu sentado, enquanto aguardava ser atendido, e o pessoal do hospital só viu um dia depois. Felizmente, mesmo tendo perdido mais tempo do que esperava, conversou com um médico residente.
Tão novinho, será que sabe alguma coisa? Pensou Dona Sônia:
- Por que a senhora não procurou atendimento antes, no seu bairro?
Perguntou o menino apontando uma luzinha em seu olho.
- Começou isso hoje, doutor. De manhã, quando sai para ir à missa não tinha nada. Quando voltei, já tava assim. E hoje a Unidade de Saúde não abre, é domingo, o senhor sabe.
O médico, dizendo que não poderia fazer nada ali, encaminhou Dona Sônia para central de regulação do município, que só abria na segunda-feira pela manhã. Antes ele explicou detalhadamente: a hiposfagma, é caracterizado pelo rompimento de minúsculos vasos sanguíneos localizados na conjuntiva ocular, causando uma mancha vermelha de sangue, como essa no seu olho, Dona Sônia. A conjuntiva é uma fina película transparente que recobre a parte branca dos olhos, chamada de esclera. As causas do derrame ocular podem ter origem em processos irritativos, alérgicos, traumáticos ou infecciosos e até por picos de pressão arterial e alterações da coagulação sanguínea. Entendeu dona Sônia?
- Entendi.
Respondeu a mulher, imediatamente.
Dona Sônia, de toda explicação, entendeu que o derrame podia ser por causa da pressão alta. Mas estou tomando direitinho os remédios que a médica passou, pensou ela e instintivamente levou a mão à bolsa, onde guardava os medicamentos.
Na saída da emergência, por via das dúvidas, tomou mais um comprimido de captopril.
Se Deus quiser, vai melhorar. Pensou ela. 
Na segunda-feira Dona Sônia procurou a secretaria de saúde, que não dispunha de um oftalmologista em menos de 30 dias e a encaminhou para Unidade de Saúde da Família.
- Mas vá amanhã, que essa hora já não deve ter mais fichas.
Disse a moço da secretaria sem desviar o olhar da tela do computador. Nem viu o olho de Dona Sônia, que a essa altura parecia mais uma lua de sangue, do que um olho.
Na terça-feira Dona Sônia foi até a Unidade de saúde. No balcão a recepcionista, olhando a tela do computador, disse:
- Hoje só atendemos gestantes, nem adianta esperar.
Meus Deus, o que vai ser de meu olho? Pensou ela fazendo o sinal da cruz.
- Volte amanhã, quem sabe consegue.
Humildemente Dona Sônia foi embora.
- Tá bom, minha fia, eu volto amanhã.
Caminhando pensava: Jesus foi pregado na cruz, sangrou, foi humilhado, sofreu. Ter que esperar não é nada, perto do que ele passou. 
No dia seguinte, quarta-feira, voltou para ver a médica, mas nem chegou ao balcão, a auxiliar de limpeza, sem desviar atenção do chão que varria,  a dispensou do portão, dizendo que a médica só atenderia hipertensos e diabéticos.
- Vocês vêm aqui todo dia e não sabem dos programas? Precisam se organizar minha gente, não podem ficar vindo aqui no dia errado, atrapalha o fluxo de atendimento, que é bem organizadinho, sim senhora.
- Mas eu tenho pressão alta, disse Dona Sônia.
- Agendou?
- Não.
- Pois é. Se tem que pegar fila: reclama. Se é agendado: reclama.
Dona Sônia não estava reclamando, mas não disse nada. E nem a mulher queria ouvir, pois já foi logo virando as costas e continuou varrendo.
Dona Sônia não queria causar transtorno, por isso foi para casa. Voltou na quinta-feira bem cedo, mas era dia de “visita domiciliar” e só estava a recepcionista na unidade.
Engraçado, aqui não tem ninguém hoje, será que até o segurança e a faxineira vão para as visitas. Pensou Dona Sônia
Na saída encontrou uma conhecida, que ia passando.
- Que olho é esse, mulher?
- Tá assim desde domingo.
- E o médico já viu?
- Nunca que consigo acertar o dia certo de ser atendida aqui.
- Só Deus mesmo pra fazer essa gente trabalhar.
A conhecida pegou dona Sônia pela mão e voltou com ela para dentro da unidade. Quando entrou empurrando as cadeiras vazias, a recepcionista parou de olhar para tv e levantou-se assustada.
- Oh minha filha!
Disse a mulher batendo no balcão:
- Que raparigagem é essa aqui? Você viu o olho dessa mulher? Tem coragem de mandar pra casa uma mulher com o olho desse jeito?
Disse a conhecida, com os braços cruzados e batendo o pé no chão.
- Já expliquei para ela que a médica não tá hoje.
- E aonde tá a desgraça dessa mulher?
- Tá fazendo visita domiciliar...
- Então é só sentar e esperar, que deve estar por perto, que visita é na comunidade, não é filhinha?
- Mas ela vai embora de lá mesmo, nem passa aqui na quinta-feira.
- Ah é, então a gente vai pra secretaria de saúde, que desse jeito não vai ficar. Tem que ter um médico para ver esse olho. E agarrou a mão de Dona Sônia e foi puxando.
- Vem cá.
Disse a recepcionista, pegando o telefone.
- Ela não me disse que o olho tava assim. Espera um pouquinho, vou ligar pra médica, quem sabe ela tá por perto e vem.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



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