Difícil deixar prá lá.
Tem coisa que não pode
ser evitada...
Silvana foi dormir logo
depois de servir o jantar para o marido e os três filhos. Eles ficaram comendo,
ela foi para cama, calada. Estava chateada com o marido, queria que ele
soubesse. Ficou magoada com sua atitude bruta, sem sentido.
Quando o marido entrou
no quarto, Silvana fingiu estar dormindo. Ainda não queria falar. Um nó na
garganta não deixava. Se insistisse, era capaz de chorar. Não ia derramar
lágrima nenhuma, prometeu a si mesma.
- Não precisava fazer
aquilo, pensou Silvana!
Quando voltou do pasto,
Nenzinho avistou de longe uma enorme melancia verdinha no giral da cozinha. Ela
brilhava no restinho do sol da tarde. Os meninos correram em direção ao pai,
queriam brincar com o cavalo, antes de tirar a sela, como faziam todo dia. Até
Isabel, de pouco mais de três anos, correu pelo quintal, um pouco atrasada.
- Papai, papai,
papai...
Silvana tinha um
sorriso enorme nos lábios, como há tempos Nenzinho não via. Aquela briga com o
sogro estava acabando com a felicidade da mulher. Privando os filhos de
conviver com a avó, os tios, as tias, os primos. O convívio familiar era muito
importante, ainda mais vivendo naquele fim de mundo. Mas o que ele podia fazer?
O velho era mais teimoso que uma mula empacada no brejo.
Sentiu um ódio ainda
maior pelo sogro, ao pensar nisso.
- Viu o que o pai
mandou, acho que ele tá querendo fazer as paz...
Antes de Silvana
terminar o que ia dizer, Nezinho pegou a melancia e jogou aos porcos.
Não disse nada. Pegou a
toalha, um sabonete e foi se banhar no córrego atrás da casa. Chamou as
crianças para ir juntas, como fazia todos os dias.
O sorriso nos lábios de
Silvana murchou. Sentiu as pernas bambear diante da atitude orgulhosa do
marido. Quis chorar, saber de Deus o porquê.
- Por que meu Deus, por
quê?
Nem lembrava mais
quando, porque essa briga tinha começado. Só queria que os homens fizessem as
pazes, poder visitar sua mãe, ver seus irmãos e irmãs. Levar os filhos para
brincar com os primos.
Mas os dois eram mais
teimosos que mulas velhas empacadas.
Por bastante tempo,
aquela noite, Silvana ouviu as crianças fazendo barulho na sala. Pensou em
levantar, conversar com elas, já que não conseguia dormir, agoniada, com dor no
peito, por causa daquele ódio entre o pai e o marido. Ficou desanimada, sem
forças, só queria dormir, mas as horas iam passando e ela acordada, com o
pensamento longe. Até que não ouviu mais nada.
Quando acordou, bem
cedinho, junto com o galo e o sol, viu que o marido não estava mais na cama. Na
cozinha, abriu a janela e sentiu o orvalho da manhã no rosto. Estava melhor,
apesar da noite mal dormida. Olhou para os filhos, todos de cabelos crespinhos,
iguais ao do pai.
- Nenhum puxou a mim,
pensou olhando as crianças uma por cima das outras, na mesma cama.
Mesmo ainda magoada com
a atitude do marido, Lembrou-se porque havia casado com ele. Com a brisa que
entrava pela janela, sentiu-se invadida por uma imensa ternura, pelo marido,
pelos filhos, pela família que construiu.
- Eu sou feliz, eu sou
feliz, repetiu para si mesma, talvez tentando se convencer.
Saindo pela porta da
cozinha viu Nenzinho sem camisa, de costas, debruçado sob o cercado dos porcos.
- Deve ter se
arrependido, pensou Silvana.
Caminhou em sua
direção, pensando em abraçá-lo.
O marido sentiu a
presença da mulher e virou-se, foi ao seu encontro, tentando pôr-se em sua
frente, de modo que não pudesse ver dentro do chiqueiro. Mas não conseguiu.
- O que aconteceu?
Nenzinho não teve
coragem de falar, nem era preciso.
- Ele ia matar os
próprios netos, ele ia matar os próprios netos, ele ia matar os próprios netos!
Repetia descontroladamente Silvana, chorando, gritando, jogando-se na terra,
levantando, puxando os próprios cabelos, rasgando a roupa. A cor deixou seu
rosto, ficou sem expressão, parecia um fantasma, olhos vidrados.
Nenzinho compadeceu-se
do desespero da mulher. Com muita calma, paciência, tomou-a nos braços com
força, de modo que se sentisse segura, amparada, amada, cuidada, como prometeu
que faria, diante do padre, quando se casaram em um fim de tarde de primavera. Aos poucos a cor voltou à sua face. Ela
recobrou a calma, limpou o rosto, levantou-se com pernas firmes.
- Passou! Disse ao
marido, com voz firme. Até parecia outra pessoa. Tentou um sorriso.
Desvencilhou-se dos
braços de Nezinho. Entrou na casa, em minutos voltou trazendo a carabina do
marido. Estendeu-lhe a arma e disse:
- Vá!
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]
Revisão: Jailson Almeida.
Revisão: Jailson Almeida.