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03 julho 2015

CONTANDO HISTÓRIA (EM SALA DE AULA E NA VIDA REAL)

Ernande Valentin do Prado

Para meu amigo "Bene", exímio contador de histórias.

Conscientemente nunca quis ser professor, (achava que não teria paciência) talvez porque nunca tenha sido um bom aluno. Lembro como se fosse hoje o dia em que a Professora, ainda na primeira semana do curso, disse que o Enfermeiro não podia se envolver com os “pacientes”. Lembro também da minha reação de indignação, de desconfiança dos “saberes” daquela professora.
- Se não for para se envolver não vale a pena.
Carlos Brandão disse, em um dos livros lindos que escreveu, que só se conhece de fato alguma coisa da vida da sociedade com algum grau de envolvimento. No filme O nome do cuidado, o personagem principal diz que só se cuida de quem se conhece. Digo que só se faz o trabalho da Enfermagem, que é cuidar, com envolvimento entre o ser que cuida e o que é cuidado, que de fato são as mesmas pessoas, basta olhar sem desconfiança.
Nunca consegui aprender muitas das coisas que tentaram me ensinar na faculdade, e quando digo isso não estou me referindo apenas a bioestatística ou a regular um respirador no leito da UTI.
Por uma dessas coisas da vida acabei sendo professor. Isso aconteceu quando fui demitido de meu emprego em Rio Negro, Mato Grosso do Sul (que adorava). Minha indignação foi tão grande por ser substituído pela sobrinha do prefeito (A revolta foi com ele, não com ela. Fui demitido principalmente por não ter feito campanha pela reeleição), que jurei nunca mais trabalhar novamente com vínculo precário. Sai do Mato grosso do Sul e fui para cidade de Paripiranga, Bahia, com vínculo CLT (antes dei uma parada na cidade de Pedro Gomes, norte do estado). Trabalhei por quatro anos na graduação em Enfermagem de uma Instituição de Ensino Superior (IES) particular e um ano na Universidade Federal de Sergipe, campus de Lagarto, mas não consegui manter-me apenas em sala de aula. A prática, a vivencia, a vontade de ser Enfermeiro foi tão grande que acabei voltando atrás em minha promessa.
Entre as várias experiências em sala de aula, conto uma (entre várias que tentei para explicar o que é, como se faz e qual a diferença entre promoção de saúde e prevenção e doenças). Ela foi muito significativa pelo fato de que quando aconteceu não percebi de fato o que queria dizer e isso porque não foi planejada. Estava substituir uma colega em sua disciplina. Ela deixou tudo preparado: o objetivo era a construção de um projeto para enfrentamento de problemas ligado a hipertensão. As disciplinas envolvidas: Atenção Primária à Saúde e Processos Pedagógicos.
Iniciamos discutindo a intenção do projeto que deveria ser construído. O primeiro problema: o projeto deveria ser de promoção de saúde ou de prevenção de doenças?
A maioria dos profissionais não conseguem perceber a diferença entre promoção de saúde e prevenção de doenças, pensam a promoção como sendo parte da prevenção, como descrito por Leavell & Clark (em outro século). Não percebem, geralmente, a sutileza entre prevenir uma doença e promover saúde.
Para tentar explicar, de forma rápida a diferença entre Promover saúde e prevenir doenças, pois este não era exatamente o foco da discussão, recorri a uma vivência na cidade de Pedro Gomes, onde trabalhei uns três meses, mas onde vivi coisas muito fortes.
Estava há pouco tempo na equipe. Uma Agente Comunitária de Saúde (vamos chama-la de Ana[i]), disse que tinha um senhor em sua área que exigia cuidados. Era muito séria a questão, enfatizou ela. O senhor Edmundo[ii] tinha uma ferida no pé esquerdo. Fazia muito tempo e não fechava. Segundo Ana, porque ele não seguia as orientações da Enfermeira, do Médico e nem as dela. O senhor Edmundo fumava e bebia e isso explicava porque a ferida não fechava, por mais que ela lhe vigiasse. Além disso, ele tinha hipertensão e diabetes.
Ana sentia-se responsável por fechar aquela ferida e por não conseguir modificar o comportamento de Seu Edmundo, culpava-se. Um dia fomos visita-lo. Ele morava perto da unidade de saúde. Era magrinho, falante e hospitaleiro. A casa tinha pouco mais de quatro ou cinco metros quadrados. Não havia forro, banheiro ou cozinha. Era apenas um cômodo, sem água encanada e sem móveis, além da cama. O único luxo: eletricidade, que usada para acender uma lâmpada diretamente no bocal. As necessidades fisiológicas eram realizadas em um balde e depois jogadas em uma fossa no fundo do quintal.
Seu Edmundo tinha 86 anos. Nenhum parente vivo no mundo. Sem profissão e sem aposentadoria. Vivia de assistência social e de juntar lavagem que entregava para criadores de porcos. Sua única “estripulia”, contou com vergonha, era fumar um cachimbo no fim do dia e tomar uma cachacinha nos fins de semana.
A ferida no pé nem era tão feia assim. Na verdade, naquele dia não passava de uma descamação superficial, úmida e rosada.
Fiquei ali (pareceu muito tempo) sentado em um toco de arvore conversando com Seu Edmundo e pensando em que poderia realmente ajudar aquele homem. O mais certo era que quase nada podia para realmente melhorar a vida dele (promover saúde).
Antes de ir lhe perguntei:
- O posto está lhe ajudando em alguma coisa, Seu Edmundo?
Ele respondeu que sim, que Ana lhe visitava todo mês, que conversava com ele e ainda podia pegar curativos e as medicações de pressão e diabetes.
- O que o senhor acha que a gente pode fazer mais, Seu Edmundo?
Ele olhou para o alto, como se tentasse enxergar uma lembrança qualquer dentro da cabeça, depois lentamente olhou para mim e disse:
- Não sei, acho que tá bom.
Fomos embora e Ana questionou por que não tinha falado nada do cigarro e da cachaça. Pensei, sem falar nada: você não percebeu? E disse apenas:
- Será que proibir Seu Edmundo de fumar e beber vai melhorar a vida dele?
Ela ficou pensando! Caminhamos metade do caminho até a unidade de saúde em silencia. Pouco antes de chegar, inconformada, disse:
- Mas alguma coisa a gente tem que fazer.
- Mas o que podemos fazer para ajudar de verdade?
Ela não soube responder. Ficou em silencia o resto do caminho. Mas ainda disse, visivelmente contrariada:
- Não pode ser assim, não aceito que nada podemos fazer.
Concordo contigo, disse eu, só que ainda não sei o que podemos fazer. O que sei é que proibi-lo de fumar ou convencê-lo a parar por conta própria não vai melhorar em nada a vida dele. Acho até que pode piorar. (Nem só de pão vive o homem, pensei, mas não provoquei).
Ana disse que conhecia uma pessoa que talvez pudesse nos ajudar a ao menos construir um banheiro na casa de Seu Edmundo.
- Então vamos procurar essa pessoa logo. Enquanto isso não deixe de visita-lo, de conversar, pedir que lave os pés e que venha à unidade de saúde sempre que quiser.
Acredito que essa história exemplificou um pouco do que entendo ser a diferença entre promover saúde e prevenir doenças. Não sei se ficou claro para os estudantes, mas já havia explicado de outras formas e também não funcionou para todos. Promoção de saúde é um destes conceitos difíceis de ser entendidos e principalmente praticados, pois não diz respeito exatamente ao que se faz, mas como faz, quando, com qual intencionalidade e, (neste caso), pelo que se deixa de fazer.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



[i] Nome fictício, mas situação real.

[ii] Nome fictício, mas situação real.

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