Ernande
Valentin do Prado
Para
meu amigo "Bene", exímio contador de histórias.
Conscientemente nunca
quis ser professor, (achava que não teria paciência) talvez porque nunca tenha
sido um bom aluno. Lembro como se fosse hoje o dia em que a Professora, ainda
na primeira semana do curso, disse que o Enfermeiro não podia se envolver com
os “pacientes”. Lembro também da minha reação de indignação, de desconfiança
dos “saberes” daquela professora.
- Se não for para se
envolver não vale a pena.
Carlos Brandão disse, em um dos livros lindos que escreveu, que só
se conhece de fato alguma coisa da vida da sociedade com algum grau de
envolvimento. No filme O nome do cuidado, o personagem principal diz que só se
cuida de quem se conhece. Digo que só se faz o trabalho da Enfermagem, que é
cuidar, com envolvimento entre o ser que cuida e o que é cuidado, que de fato
são as mesmas pessoas, basta olhar sem desconfiança.
Nunca consegui
aprender muitas das coisas que tentaram me ensinar na faculdade, e quando digo
isso não estou me referindo apenas a bioestatística ou a regular um respirador
no leito da UTI.
Por uma dessas coisas
da vida acabei sendo professor. Isso aconteceu quando fui demitido de meu
emprego em Rio Negro, Mato Grosso do Sul (que adorava). Minha indignação foi
tão grande por ser substituído pela sobrinha do prefeito (A revolta foi com ele, não com ela. Fui demitido principalmente por não
ter feito campanha pela reeleição), que jurei nunca mais trabalhar novamente com
vínculo precário. Sai do Mato grosso do Sul e fui para cidade de Paripiranga,
Bahia, com vínculo CLT (antes dei uma parada na cidade de Pedro Gomes, norte do
estado). Trabalhei por quatro anos na graduação em Enfermagem de uma Instituição de Ensino Superior (IES) particular
e um ano na Universidade Federal de Sergipe, campus de Lagarto, mas não
consegui manter-me apenas em sala de aula. A prática, a vivencia, a vontade de
ser Enfermeiro foi tão grande que acabei voltando atrás em minha promessa.
Entre as várias
experiências em sala de aula, conto uma (entre várias que tentei para explicar
o que é, como se faz e qual a diferença entre promoção de saúde e prevenção e
doenças). Ela foi muito significativa pelo fato de que quando aconteceu não
percebi de fato o que queria dizer e isso porque não foi planejada. Estava substituir
uma colega em sua disciplina. Ela deixou tudo preparado: o objetivo era a
construção de um projeto para enfrentamento de problemas ligado a hipertensão.
As disciplinas envolvidas: Atenção Primária à Saúde e Processos Pedagógicos.
Iniciamos discutindo
a intenção do projeto que deveria ser construído. O primeiro problema: o projeto
deveria ser de promoção de saúde ou de prevenção de doenças?
A maioria dos
profissionais não conseguem perceber a diferença entre promoção de saúde e
prevenção de doenças, pensam a promoção como sendo parte da prevenção, como
descrito por Leavell & Clark (em outro século). Não percebem, geralmente, a
sutileza entre prevenir uma doença e promover saúde.
Para tentar explicar,
de forma rápida a diferença entre Promover saúde e prevenir doenças, pois este
não era exatamente o foco da discussão, recorri a uma vivência na cidade de Pedro
Gomes, onde trabalhei uns três meses, mas onde vivi coisas muito
fortes.
Estava há pouco tempo
na equipe. Uma Agente Comunitária de Saúde (vamos chama-la de Ana[i]), disse que tinha um senhor em sua área que exigia
cuidados. Era muito séria a questão, enfatizou ela. O senhor Edmundo[ii]
tinha uma ferida no pé esquerdo. Fazia muito tempo e não fechava. Segundo Ana,
porque ele não seguia as orientações da Enfermeira, do Médico e nem as dela. O
senhor Edmundo fumava e bebia e isso explicava porque a ferida não fechava, por
mais que ela lhe vigiasse. Além disso, ele tinha hipertensão e diabetes.
Ana sentia-se
responsável por fechar aquela ferida e por não conseguir modificar o
comportamento de Seu Edmundo, culpava-se. Um dia fomos visita-lo. Ele morava
perto da unidade de saúde. Era magrinho, falante e hospitaleiro. A casa tinha
pouco mais de quatro ou cinco metros quadrados. Não havia forro, banheiro ou
cozinha. Era apenas um cômodo, sem água encanada e sem móveis, além da cama. O
único luxo: eletricidade, que usada para acender uma lâmpada diretamente no
bocal. As necessidades fisiológicas eram realizadas em um balde e depois
jogadas em uma fossa no fundo do quintal.
Seu Edmundo tinha 86
anos. Nenhum parente vivo no mundo. Sem profissão e sem aposentadoria. Vivia de
assistência social e de juntar lavagem que entregava para criadores de porcos.
Sua única “estripulia”, contou com vergonha, era fumar um cachimbo no fim do
dia e tomar uma cachacinha nos fins de semana.
A ferida no pé nem
era tão feia assim. Na verdade, naquele dia não passava de uma descamação
superficial, úmida e rosada.
Fiquei ali (pareceu
muito tempo) sentado em um toco de arvore conversando com Seu Edmundo e
pensando em que poderia realmente ajudar aquele homem. O mais certo era que
quase nada podia para realmente melhorar a vida dele (promover saúde).
Antes de ir lhe
perguntei:
- O posto está lhe ajudando
em alguma coisa, Seu Edmundo?
Ele respondeu que
sim, que Ana lhe visitava todo mês, que conversava com ele e ainda podia pegar
curativos e as medicações de pressão e diabetes.
- O que o senhor acha
que a gente pode fazer mais, Seu Edmundo?
Ele olhou para o
alto, como se tentasse enxergar uma lembrança qualquer dentro da cabeça, depois
lentamente olhou para mim e disse:
- Não sei, acho que
tá bom.
Fomos embora e Ana questionou
por que não tinha falado nada do cigarro e da cachaça. Pensei, sem falar nada:
você não percebeu? E disse apenas:
- Será que proibir Seu
Edmundo de fumar e beber vai melhorar a vida dele?
Ela ficou pensando!
Caminhamos metade do caminho até a unidade de saúde em silencia. Pouco antes de
chegar, inconformada, disse:
- Mas alguma coisa a
gente tem que fazer.
- Mas o que podemos
fazer para ajudar de verdade?
Ela não soube
responder. Ficou em silencia o resto do caminho. Mas ainda disse, visivelmente contrariada:
- Não pode ser assim,
não aceito que nada podemos fazer.
Concordo contigo,
disse eu, só que ainda não sei o que podemos fazer. O que sei é que proibi-lo
de fumar ou convencê-lo a parar por conta própria não vai melhorar em nada a
vida dele. Acho até que pode piorar. (Nem só de pão vive o homem, pensei, mas
não provoquei).
Ana disse que
conhecia uma pessoa que talvez pudesse nos ajudar a ao menos construir um
banheiro na casa de Seu Edmundo.
- Então vamos
procurar essa pessoa logo. Enquanto isso não deixe de visita-lo, de conversar,
pedir que lave os pés e que venha à unidade de saúde sempre que quiser.
Acredito
que essa história exemplificou um pouco do que entendo ser a diferença entre
promover saúde e prevenir doenças. Não sei se ficou claro para os estudantes,
mas já havia explicado de outras formas e também não funcionou para todos. Promoção
de saúde é um destes conceitos difíceis de ser entendidos e principalmente
praticados, pois não diz respeito exatamente ao que se faz, mas como faz,
quando, com qual intencionalidade e, (neste caso), pelo que se deixa de fazer.
[Ernande Valentin do
Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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