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01 março 2019

O QUE SIGNIFICA SAÚDE

Imagem capturado pelo Google.




Ernande Valentin do Prado

Um pai de família com a pressão arterial descontrolada, que já fez uso de cinco diferentes tipos de hipertensivos, precisa de outra receita, quando volta ao serviço de saúde?
Uma criança desnutrida precisa principalmente de receita de sulfato ferroso e medicações para abrir o apetite?
Crianças que passam o dia brincando em rua sem saneamento, enquanto as mães trabalham, precisam principalmente de exames de fezes e de sangue?
Fazer o enfrentamento das raízes desses problemas não deveria ser estranho ao profissional do Sistema Único de Saúde (SUS). Sabe por quê?
Porque a constituição federal de 1988 definiu que “saúde é um direito de todos e dever do estado”. E a Lei 8080/90, a Lei orgânica da saúde, definiu o que é “essa saúde” que todos temos direito.
E ao fazer isso fugiu dos paradigmas anteriores que definiam saúde a partir da presença de doenças. Para o SUS, saúde não é um estado de total equilíbrio físico e mental, como definia antes a OMS. Saúde é o resultado direto das condições de vida e para isso são necessárias algumas garantias, tais como: Alimentação em quantidade e qualidade, Moradia digna, saneamento básico, emprego e renda compatível com o bem-estar, acesso a serviços de educação, cultura, saúde e lazer.
Praticar saúde, ao menos no SUS, é entender e intervir nos determinantes do processo saúde/doença e não simplesmente distribuir pedidos de exames e prescrições de medicamentos.
Em alguns serviços a prática de parte dos profissionais de saúde restringem-se a abordagem biológica. Isso porque, entre outros motivos, acostumaram-se a pensar saúde como se ela fosse o contrário de doença. E o que ainda é pior, só reconhecem como doenças aqueles problemas com sinais e sintomas que podem ser vistos e testados. Desconsideram que as doenças e o adoecer são decorrências de como as pessoas vivem, como falamos antes.
Esse comportamento acaba acostumando as pessoas a esperar apenas que lhe peçam exames e lhe deem receitas.
Quando um profissional diferenciado procura praticar realmente saúde, levando em conta o conceito de saúde e o princípio da integralidade, em um primeiro momento causa estranheza e até certa rejeição. Isso porque o atendimento pode ser mais demorado, sem pedidos de exames, sem receitas e sem encaminhar para especialistas.
E nem todos entendem que o problema, no caso da criança com anemia, pode não ser só falta de alimentos e sim negligência de cuidados, entre outras causas possíveis e que deveriam ser investigadas. Essa negligência, quase nunca é só dos pais, é também dos profissionais de saúde, da Educação, do Serviço Social, dos Conselhos Tutelares, da imprensa, enfim, do estado e da sociedade que fazem de tudo para ignorar as condições em que sobrevivem a infância.
Para intervir nos determinantes, no caso do pai de família desempregado, não basta medicalizar, precisa compreender o peso do desemprego na vida do trabalhador.
No caso das mães que não têm creche, não basta distribuir vermífugos e culpar a mãe, pode ser necessário contribuir com a organização e fortalecimento da comunidade, assim podem, por si mesmas, buscar seus direitos por saneamento básico e creche.
Enfim, é importante que os Profissionais de Saúde tenham consciência de que o código genético não é o maior determinante de saúde, e sim o Código de Endereçamento Postal.
Conhecer e compreender o conceito ampliado de saúde do SUS é fundamental para que o profissional encontre formas resolutivas de intervir no cotidiano do fazer em saúde junto às famílias, enquanto isso, continua valendo os versos de Raul Seixas, na música Ouro de tolo:
E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social


REFERENCIAS:
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: Acessado em: 23 fev. 2019.
BRASIL. Lei Orgânica da Saúde. Disponível em: Acessado em: 20 out. 2017.
CDSS - COMISSÃO PARA OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE. Redução das desigualdades no período de uma geração: igualdade na saúde através da ação sobre os seus determinantes sociais: relatório final. Genebra: OMS, 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2017.
Prado, Ernande Valentin; FALLEIRO, Letícia Moraes; MANO, Maria Amélia. Cuidado, promoção de saúde e educação popular - porque um não pode viver sem os outros. Rev APS. 2011 out/dez; 14(4): 464-471.
SEIXAS, Raul. Ouro de tolo. (música). Disponível em: < https://www.letras.mus.br/raul-seixas/48326/> Acessado em: 23 fev. 2019.
ROEDER, A. Zip code better predictor of health than genetic code. Disponível em: Acessado em: 20 out. 2017.
Scliar, M. (2005). Do mágico ao social: trajetória da saúde pública. 2 ed. São Paulo: SENAC São Paulo.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

Esse texto foi adaptado do Roteiro do Vídeo: O que significa Saúde, publicado em: < https://www.youtube.com/watch?v=q5DXMr5v48k>. Contribuíram com o texto: Islani Alencar, Mayara Floss e Seiko Nomiyama.



03 julho 2015

CONTANDO HISTÓRIA (EM SALA DE AULA E NA VIDA REAL)

Ernande Valentin do Prado

Para meu amigo "Bene", exímio contador de histórias.

Conscientemente nunca quis ser professor, (achava que não teria paciência) talvez porque nunca tenha sido um bom aluno. Lembro como se fosse hoje o dia em que a Professora, ainda na primeira semana do curso, disse que o Enfermeiro não podia se envolver com os “pacientes”. Lembro também da minha reação de indignação, de desconfiança dos “saberes” daquela professora.
- Se não for para se envolver não vale a pena.
Carlos Brandão disse, em um dos livros lindos que escreveu, que só se conhece de fato alguma coisa da vida da sociedade com algum grau de envolvimento. No filme O nome do cuidado, o personagem principal diz que só se cuida de quem se conhece. Digo que só se faz o trabalho da Enfermagem, que é cuidar, com envolvimento entre o ser que cuida e o que é cuidado, que de fato são as mesmas pessoas, basta olhar sem desconfiança.
Nunca consegui aprender muitas das coisas que tentaram me ensinar na faculdade, e quando digo isso não estou me referindo apenas a bioestatística ou a regular um respirador no leito da UTI.
Por uma dessas coisas da vida acabei sendo professor. Isso aconteceu quando fui demitido de meu emprego em Rio Negro, Mato Grosso do Sul (que adorava). Minha indignação foi tão grande por ser substituído pela sobrinha do prefeito (A revolta foi com ele, não com ela. Fui demitido principalmente por não ter feito campanha pela reeleição), que jurei nunca mais trabalhar novamente com vínculo precário. Sai do Mato grosso do Sul e fui para cidade de Paripiranga, Bahia, com vínculo CLT (antes dei uma parada na cidade de Pedro Gomes, norte do estado). Trabalhei por quatro anos na graduação em Enfermagem de uma Instituição de Ensino Superior (IES) particular e um ano na Universidade Federal de Sergipe, campus de Lagarto, mas não consegui manter-me apenas em sala de aula. A prática, a vivencia, a vontade de ser Enfermeiro foi tão grande que acabei voltando atrás em minha promessa.
Entre as várias experiências em sala de aula, conto uma (entre várias que tentei para explicar o que é, como se faz e qual a diferença entre promoção de saúde e prevenção e doenças). Ela foi muito significativa pelo fato de que quando aconteceu não percebi de fato o que queria dizer e isso porque não foi planejada. Estava substituir uma colega em sua disciplina. Ela deixou tudo preparado: o objetivo era a construção de um projeto para enfrentamento de problemas ligado a hipertensão. As disciplinas envolvidas: Atenção Primária à Saúde e Processos Pedagógicos.
Iniciamos discutindo a intenção do projeto que deveria ser construído. O primeiro problema: o projeto deveria ser de promoção de saúde ou de prevenção de doenças?
A maioria dos profissionais não conseguem perceber a diferença entre promoção de saúde e prevenção de doenças, pensam a promoção como sendo parte da prevenção, como descrito por Leavell & Clark (em outro século). Não percebem, geralmente, a sutileza entre prevenir uma doença e promover saúde.
Para tentar explicar, de forma rápida a diferença entre Promover saúde e prevenir doenças, pois este não era exatamente o foco da discussão, recorri a uma vivência na cidade de Pedro Gomes, onde trabalhei uns três meses, mas onde vivi coisas muito fortes.
Estava há pouco tempo na equipe. Uma Agente Comunitária de Saúde (vamos chama-la de Ana[i]), disse que tinha um senhor em sua área que exigia cuidados. Era muito séria a questão, enfatizou ela. O senhor Edmundo[ii] tinha uma ferida no pé esquerdo. Fazia muito tempo e não fechava. Segundo Ana, porque ele não seguia as orientações da Enfermeira, do Médico e nem as dela. O senhor Edmundo fumava e bebia e isso explicava porque a ferida não fechava, por mais que ela lhe vigiasse. Além disso, ele tinha hipertensão e diabetes.
Ana sentia-se responsável por fechar aquela ferida e por não conseguir modificar o comportamento de Seu Edmundo, culpava-se. Um dia fomos visita-lo. Ele morava perto da unidade de saúde. Era magrinho, falante e hospitaleiro. A casa tinha pouco mais de quatro ou cinco metros quadrados. Não havia forro, banheiro ou cozinha. Era apenas um cômodo, sem água encanada e sem móveis, além da cama. O único luxo: eletricidade, que usada para acender uma lâmpada diretamente no bocal. As necessidades fisiológicas eram realizadas em um balde e depois jogadas em uma fossa no fundo do quintal.
Seu Edmundo tinha 86 anos. Nenhum parente vivo no mundo. Sem profissão e sem aposentadoria. Vivia de assistência social e de juntar lavagem que entregava para criadores de porcos. Sua única “estripulia”, contou com vergonha, era fumar um cachimbo no fim do dia e tomar uma cachacinha nos fins de semana.
A ferida no pé nem era tão feia assim. Na verdade, naquele dia não passava de uma descamação superficial, úmida e rosada.
Fiquei ali (pareceu muito tempo) sentado em um toco de arvore conversando com Seu Edmundo e pensando em que poderia realmente ajudar aquele homem. O mais certo era que quase nada podia para realmente melhorar a vida dele (promover saúde).
Antes de ir lhe perguntei:
- O posto está lhe ajudando em alguma coisa, Seu Edmundo?
Ele respondeu que sim, que Ana lhe visitava todo mês, que conversava com ele e ainda podia pegar curativos e as medicações de pressão e diabetes.
- O que o senhor acha que a gente pode fazer mais, Seu Edmundo?
Ele olhou para o alto, como se tentasse enxergar uma lembrança qualquer dentro da cabeça, depois lentamente olhou para mim e disse:
- Não sei, acho que tá bom.
Fomos embora e Ana questionou por que não tinha falado nada do cigarro e da cachaça. Pensei, sem falar nada: você não percebeu? E disse apenas:
- Será que proibir Seu Edmundo de fumar e beber vai melhorar a vida dele?
Ela ficou pensando! Caminhamos metade do caminho até a unidade de saúde em silencia. Pouco antes de chegar, inconformada, disse:
- Mas alguma coisa a gente tem que fazer.
- Mas o que podemos fazer para ajudar de verdade?
Ela não soube responder. Ficou em silencia o resto do caminho. Mas ainda disse, visivelmente contrariada:
- Não pode ser assim, não aceito que nada podemos fazer.
Concordo contigo, disse eu, só que ainda não sei o que podemos fazer. O que sei é que proibi-lo de fumar ou convencê-lo a parar por conta própria não vai melhorar em nada a vida dele. Acho até que pode piorar. (Nem só de pão vive o homem, pensei, mas não provoquei).
Ana disse que conhecia uma pessoa que talvez pudesse nos ajudar a ao menos construir um banheiro na casa de Seu Edmundo.
- Então vamos procurar essa pessoa logo. Enquanto isso não deixe de visita-lo, de conversar, pedir que lave os pés e que venha à unidade de saúde sempre que quiser.
Acredito que essa história exemplificou um pouco do que entendo ser a diferença entre promover saúde e prevenir doenças. Não sei se ficou claro para os estudantes, mas já havia explicado de outras formas e também não funcionou para todos. Promoção de saúde é um destes conceitos difíceis de ser entendidos e principalmente praticados, pois não diz respeito exatamente ao que se faz, mas como faz, quando, com qual intencionalidade e, (neste caso), pelo que se deixa de fazer.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



[i] Nome fictício, mas situação real.

[ii] Nome fictício, mas situação real.

25 julho 2014

EU NÃO NASCI ENFERMEIRO (ME CONSTRUÍ)

Ernande Valentin do Prado

Ontem à noite Alice estava tossindo muito.
Por isso encostei a orelha em suas costas.
Tinha esperanças de auscultar ruídos, sibilos: sinais de secreção. (ou não)

E neste gesto banal de pai
(sem deixar de ser enfermeiro)
deu uma baita saudade de ser Enfermeiro.

Alice é muito ativa,
tem muito dificuldade em ir para cama.
(e dormir)

Eu sou muito ativo,
tenho dificuldade em parar, deixar para depois
(meus afazeres tão importantes).

Mas, faz uns dias,
pactuei comigo mesmo que às 21 horas e 30 minutos,
paro o que estiver fazendo para por Alice na cama.

Não é fácil
(tenho certeza)
para nenhum dos dois.

Antes de deitar:
escovar os dentes e lavar os pés, que estão sempre sujos.
(Crianças (ou Alice) odora andar descalço).

Depois: escolher um livro, ontem foi O porquinho,
de uma coleção de livros com orelhas.
(uma fofurinha)

Alice tinha muita dificuldade para ler,
(achei até que era dislexia – os sintomas conferiam).
Mas de uma hora para outra começou a ler.

A leitura veio,
ao mesmo tempo em que passei a lhe dar um pouco mais de meu tempo
(sempre tão curto).

Ontem tossia demais
E ao encostar a orelha nas costas dela
Lembrei que faz tempo que não sou enfermeiro.

Eu não nasci enfermeiro, nem sai da faculdade enfermeiro.
Os acadêmicos que me perdoem,
mas ler um monte de livro e receber um diploma não faz um enfermeiro.

Aprendi a ser enfermeiro aos poucos.
Antes resisti.
Depois de um tempo me encontrei.

No começo dizia:
Sou profissional de saúde. Depois: sou profissional de saúde coletiva.
Depois: sou enfermeiro de Estratégia Saúde da Família.

Depois de muito tempo,
depois de muita negar,
depois de correr em outra direção.

Descobri que o que sou mesmo
é enfermeiro.
E gosto de ser enfermeiro.

Não sou como a maioria dos enfermeiros:
nem das enfermeiras,
(eu acho).

Não gosto de ver sangue, não gosto de doença
(não sei sintomas e nem fazer diagnóstico),
Não gosto de hospital.

Não uso jaleco branco,
não tenho esfigmomanometro,
não penduro estetoscópio no pescoço.

Não gosto de medicações,
Não sei (e nem quero aprender) a prescrever,
nunca abri um Brunner e Suddarth.

Os outros que me perdoem,
mas tratar de doenças (apenas pensando na cura)
pode não ser cuidar.

Cuidado mesmo pressupõe
(que palavra linda)
promoção de saúde.

O enfermeiro cuida
(ou deveria).
E isso não é fácil de explicar, mas não é difícil sentir.

Não estou enfermeiro
(mas não deixei de ser)
Volto quando puder.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]

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