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02 março 2018

LEMBRANÇAS E MEMÓRIAS

Imagem captada na intenet, 2018.
Ernande Valentin do Prado
Estou deitada numa cama. As luzes do quarto estão apagadas, mas não está totalmente escuro. Do meu lado tem uma menina, uma adolescente sem cabelos. Ela dorme. Ouço o barulho da maçaneta da porta sendo girada, como em um sonho, longe, longe, muito longe.
Minha cabeça sabe disso, a mensagem chega no cérebro, mas as pernas não obedecem, os braços ficam inertes, jogados.
- Será que a enfermeira entrou no quarto, me viu aqui?
Preciso levantar, não posso deixar que me veja aqui deitada, já me alertou várias vezes:
- não pode deitar na cama da paciente.
Isso fica martelando na minha cabeça o tempo todo:
- não pode deitar na cama da paciente.
Por tudo essa gente faz drama.
Mas não tenho forças, deixou ficar. Na minha cabeça eu levanto, espero a enfermeira em pé, alerta, bem-disposta, vigilante, cumpridora de minhas obrigações com a menina que parece muito doente, talvez até em fase terminal.
- Quem será ela?
O giro da maçaneta se completa. Fico preparada para ouvir a enfermeira dizer, com um falso carinho, uma falsa pena na voz melodiosa:
- mãezinha, não pode deitar na cama da paciente.
Quem é essa menina, é o que eu deveria estar me perguntando, mas tenho vergonha até de pensar. Sinto que deveria saber sozinha quem é ela.
A enfermeira abre a porta, não entra. Talvez não queira brigar comigo. Não hoje ou talvez eu só tenha sonhado.
Acho que não sei mais diferenciar o que são realidade, sonho, lembranças, fantasias, delírios. As lembranças veem e vão em fleches, sem que eu consiga entender, compreender, dar sentido. Como se fossem sonhos mesmos.
Quem é essa menina na cama? Por que não tem cabelo, porque há soros em sua veia, fios e monitores ligados nela? Por que estou cuidado dela? Por que a enfermeira me chamou de mãezinha? Sou a mãe desta menina ou enfermeiras chamam todo mundo de mãezinha? Por que não me sinto, melhor, por que me sinto tão incompleta?
Não sei quando isso começou. Não. Não lembro.
Muitas vezes não sei, como agora, o que são sonhos, o que são lembranças. E, quando sei que são lembranças, não sei se são minhas. Nosso cérebro é capaz de lembrar o que vivemos e o que nos contaram, o que lemos, soubemos de algum modo, então como vou saber que lembranças são minhas e quais são só coisas que sei de ouvir dos outros, de buscar no Google?
Li, mas não sei onde e nem quando nem porque, não pergunte, que a memória é uma, entre as diversas funções cognitivas do cérebro humano. Dizem que é através da memória, da associação de lembranças, de fatos, de sentimentos, emoções, coisas simples, concretas, abstratas, coisas complexas, reais, fantasiosas, com e sem importância, enfim, é pelo todo que sabemos e sabemos que sabemos ou não, porque tem coisa que sabemos, mas não sabemos que sabemos, nosso subconsciente é tão poderoso...
- Não consigo me concentrar...
São muitos pensamentos ao mesmo tempo e... algumas perguntas não tenho coragem de fazer, porque talvez não aguente saber a resposta sem desabar.
- não sei se sou assim, se minha imaginação é do tipo flutuante, com pensamentos delirantes que não se fixam em nada ou se isso também não sou eu, não sou quem fui?
Deixa eu tentar ordenar meus pensamentos: a memória é uma função complexa e fica ainda mais complexa por causa da linguagem...
- Foi assim que li.
...aprendemos coisas novas pela associação entre o que já sabemos e o que descobrimos, imaginamos, conseguimos deduzir, inferir. Quanto mais sabemos, mais capacidade de continuar aprendendo, combinando coisas em nossa cabeça, dar sentido e originalidade. Isso é bom.
- Não. Nem sempre é bom saber, lembrar. 
Será que quero mesmo saber quem é a menina na minha lembrança, que leito é esse, quando? Será que quero mesmo saber se isso é uma memória ou um sonho?
- Pensar nisso me dá uma tristeza, uma agonia, um desespero. Tenho vontade sair correndo, ir para bem longe, não ouvir, não ver, não falar com ninguém que saiba a resposta.
Se essas são lembranças, estão em minha memória, então serei capaz, mais cedo ou mais tarde, de recuperá-las, foi o que disse o médico antes de assinar a alta.
- Memórias são tão difíceis de apagar que até quando se apaga um hd, ainda é possível recuperar as informações supostamente deletadas. Com nosso cérebro não é diferente, as memórias podem e são recuperáveis, assim como nos hd de computadores.
Explicou o médico. Eu no centro, do meu lado outras pessoas. Parentes, amigos, gente que se importa comigo. Disseram.
- ...mas para isso...
Continuou o homem, que usava um estetoscópio no pescoço. Todas as vezes que o vi estava com esse estetoscópio, mas nunca o vi usando. Estranho. A sua expressão estava bem séria. Olhou diretamente em meus olhos, como que querendo indagar: você quer? Mas não disse nada. Só falou:
- ...é necessário querer recupera-las”.
A dificuldade para apagar definitivamente uma memória é verdade, tanto para as memórias orgânicas, que é essa capacidade de guardar, lembrar, armazenar e evocar informações disponíveis em nosso cérebro, quanto para os hd de computadores, que são as memórias artificiais.
Então parece que não tenho escolha. Mais cedo o mais tarde vou lembrar quem é essa menina, que hospital é esse, que dor é essa que sinto quando penso nela. Olhos claros, tristes... Deus do céu... que sensação de culpa é essa que sinto por não lembrar?
- Quem é ela? 
O telefone toca. Não reconheço o número de quem chama. Será que tem importância? Devo atender?
Como sei que isso que faz barulho é um telefone, que do outro lado tem uma pessoa querendo se comunicar comigo? Claro, se não for engano, se não for o telemarketing (tenho a impressão que só quem quer vender coisas me liga). A gente pode até se esquecer de quem é, mas o telemarketing não te esquece jamais.
Como sei que esse número é meu ou foi meu?
Como não consigo lembrar dessa vida, destas pessoas que parecem saber quem sou eu, quem é ela? Tentam me contar. Tentaram várias vezes, disseram, mostraram fotos, vídeos, mas não sinto que seja verdade, não faz sentido. Tão logo contam, esqueço. Só fica essa sensação de que falta algo muito importante, algo sem o qual não estou completa. Até nos momentos de sossego fica essa sensação de ausência.
Mas não devo me preocupar, disse o médico.
Será verdade, será que não preciso me preocupar?
Se não preciso me preocupar...
- Quando estiver preparada vai lembrar...
...então porque a expressão séria, quase acusatória em seu rosto?
Esqueci parte de minha vida, parte de quem sou, passado e presente e não guardo novas informações... ou melhor, como diz o médico: recuso-me a recordar, a aceitar... mas ainda sei falar, consigo pensar, andar.
Como ainda sei ligar o chuveiro, lavar os cabelos com shampoo, como sei que gosto de sabonete com cheiro de limão siciliano? Como esquecemos certas coisas e outras não?
Isso eu sei que sei: a memória tem a função de promover a nossa adaptação ao mundo e é por essa adaptação que sobrevivemos. Sem memórias, sem as lembranças, que é essa capacidade de evocar o passado, perdemos a qualidade de ser seres humanos.
- Dá para dizer que ser humano é ter o dom de guardar o tempo que passou, guardas as nossas experiências e as experiências alheias, dar-lhe significados.
E, se aprendemos, se nos integramos como sujeitos e não apenas nos adaptamos ao mundo, isso se faz pelo que sabemos, pelo que vivemos, pelo tempo que registramos como ontem, hoje e assim podemos projetar o amanhã.
- O gato vive um eterno presente, não tem consciência de sua história.
Como sei disso? Li algum dia, em alguma vida que tive. Mas por que sei isso, por que lembro disso?
O que somos são as histórias, as lembranças de sucessos e fracassos, de alegrias e tristezas, de tudo que aprendemos e do que ainda precisamos aprender. Todas essas memórias fazem o que somos e o que ainda vamos ser.
Será? E se perdemos as memórias, se perdemos todas as nossas lembranças, deixamos de ser quem somos? Se deixamos de ser quem somos ou quem fomos, será que podemos começar do zero, ser outra pessoa?
Quem sou é representado pelas minhas memórias, minhas lembranças e o significado que elas têm para eu e para quem comigo as compartilhou, é isso?
Ter memórias boas e ruins, honradas e vexatórias, é saber de fato quem sou? O eu é definido pelo que sei de mim mesmo? E se o que sei de mim é o que foi contado por outros, ainda assim o que sei é o quem sou?
Hoje sou só um gato. E, na maior parte do tempo, é assim que gostaria de continuar. Mas há lembranças, essas que veem e vão como um sonho e parecem formar nada mais do que uma colcha de retalhos desconexa, sem combinação de tecidos, de cores.
- Até quando?
Sou a mãe daquela menina morrendo? E se eu não quiser mais ser essa mãe, posso esquecer? Esquecendo deixo de ser mãe de alguém? Tenho esse direito?
Não sei se aguento continuar a ser essa colcha, esse gato, mesmo sentido que descobrir quem sou, quem é a menina no hospital, vá me despedaçar mais ainda. Isso é insuportável.
Fico quietinha, deixo o telefone tocar até a chamada se perder ou cair na caixa postal, o que dá no mesmo. Não vou olhar. Quero ser esquecida, quero não mais existir do mesmo jeito que as pessoas não mais existem em minha memória.
O médico disse que isso é transitório, que minhas memórias vão voltar, mas não sei se quero que voltem, não sei se quero lembrar. O pouco que estou recordando me faz sofrer de um jeito que não sei se consigo suportar.  Posso não lembrar? Tem um jeito de me reinventar ou devo voltar a ser quem fui?
Lá fora as plantas secam sem água nos vasos. Não me importo. Na cozinha a louça suja se acumula na pia. Uma mulher, que diz ser minha irmã, falou com muita certeza que eu não suportaria essa situação: louça suja, vasos com plantas morrendo por falta de água, poeira acumulando sobre os móveis.
- Você não é assim.
Falou a minha irmã.
No fundo ela quis dizer: nada disso é o que me lembro de você. Só existimos pelo que os outros sabem e lembram da gente, pelo que nós deixamos que saibam da gente. E, como ainda não inventaram um jeito de ler nossos pensamentos, só sabem o que nós contamos, o que podem nos ver fazendo. De verdade mesmo só nós sabemos quem somos, porque só nós podemos ler nossos pensamentos, nossos sentimentos mais profundos.
Nunca ninguém vai saber.
Tem coisas que sabemos de nós mesmos que não tem nem como traduzir em palavras ou atos. Por isso só nós sabemos quem somos. E, sem memórias, sem saber o que fizemos, nem nós sabemos quem somos realmente, do que somos e fomos capazes.
 Quem garante que eu não era do tipo que não me importava em limpar a casa, em cuidar de plantas? Quem garante que eu não estava fingindo me importar?
- Pensamento delirante, de novo, de novo e de novo.
Vontade perguntar para alguém se eu era assim, delirante, sem foco, dada a filosofar. Mas eu mesma pedi para ficar só, para não ser incomodada nestes primeiros dias de volta.
Às vezes basta alguém que nos conhece para nos orientar, para nos dar rumo, plumo. E agora, ao menos agora, por agora, talvez eu realmente não queira saber de nada. Nem se eu era capaz de suportar poeira sobre os móveis ou suportar outras dores bem piores. Nada. Saber de nada.
Por isso essa necessidade de ficar sozinha, de não falar com ninguém que me conhece, que sabe quem eu fui, que se importe comigo. Nem com o homem que se diz meu marido, que diz me amar e estar disposto a fazer tudo por mim, nem minha irmã, essa mulher que liga todo dia, que insiste, que bate na minha porta.
- Deve ser ela de novo.
Ouço as batidas na porta, os cachorros dos vizinhos latindo. Não tenho vontade de atender. Deixo batendo, vai acabar concluindo que não tem ninguém em casa ou que eu não quero atender. Estou vazia. Durmo, foi orientação médica. Acho que por isso me deixaram um pouco em paz.
Estou sozinha. Agora os rostos aflitos não me acusam tanto. Durmo, acordo, volto a dormir. Sonho. Sonho muito, sonho o tempo todo. E quando acordo não sei se são só sonhos ou verdades, coisas que me contaram antes de eu dormir e que não esqueci ou se são memórias mais antigas.
O sonho com a menina no hospital, não foi o único. Talvez tenha sido o mais completo, mais nítido, mas não o único. O tempo todo vêm fleches de sons, cores, cheiros, músicas, imagens, situações. Alguns eu tento reter na memória, guardar, acreditar que são memórias verdadeiras, porque são bons, despertam sentimentos bons, saudades. Outros eu quero convencer-me que não podem ser verdades. Quero voltar a dormir e esquecer que sonhei, esconder, esquecer, esquecer porque são doloridos demais para eu aceitar como acontecidos, como sendo parte de quem devo voltar a ser.
Em meus pensamentos, só meus, vejo uma menina com longos cabeços claros e cacheados. Do outro lado da rua ela acena. Também sorri, chama com as mãos e a boca, mas não consigo ouvir, só vejo. Ela está feliz. Usa um vestido florido, sapatos vermelhos. O dia está quente, penso em sorvete, tipo italiano, destes baratinhos que tem em toda esquina. Vou até ela, que diz:
- eu também quero. Adoro sorvete, adoro, adoro, adoro.
Acordo e fico deitada muito tempo tentando guardar essa lembrança. Só pode ser uma lembrança, um momento feliz que eu tinha esquecido. Meu coração se alegra, sinto um calor brotar no meu peito, uma vontade de lembrar mais desta menina, saber quem eu sou, quem é essa menina espontânea, falante, feliz que sai para chupa sorvete ao meu lado com tanta intimidade.
Aí, sem mais nem menos, lembro da outra menina, a adolescente sem cabelos no leito do hospital. Será que são as mesmas meninas?
Deus, não permita que essa menina alegre seja a outra, a que está deitada no leito do hospital... não permita, meus Deus.
Tento não dormir, não sonhar de novo, não voltar a sofrer com essa agonia. Mas ficar acordada não é certeza de não sofrer, de não lembrar de nada, de não pensar em como a vida pode ser bela e num instante se transformar num inferno, num mar de mágoas.
- O Google  diz que Freud explicava que quando a pessoa dorme a mente subconsciente desperta. E quando acordamos, a mente consciente acorda e a subconsciente adormece.
Freud também concluiu que durante o sonho todos os nossos desejos frustrados, emoções, pensamentos que não foram liberados durante o dia são libertados por nossa mente inconsciente. E que isso são os nossos sonhos, segundo Freud.
- Mas há outras interpretações, segundo Kabbalah...
Que não sei quem é e nem nunca ouvi lar.
- ...Freud está certo só em partes, porque há os sonhos espirituais e que através deles podendo receber mensagens proféticas do mundo superior.
Não sei se acredito nisso e nem se quero acreditar, nem em um e nem em outro. Freud e Kabbalah.
Só quero mesmo fica aqui sozinha. Quando tenho um sonho bom, acordo feliz, com bons sentimentos. Desperta percebo que o sentimento bom do sonho não dura muito. Tem sempre um porém, tem sempre a imagem da menina no hospital e a dor é insuportável.
Às vezes quero ficar o maior tempo possível acordada para não sonhar, para não lembrar de nada, então vem os pensamentos confusos, rápidos, delirante, as reflexões, as perguntas que não quero realmente encontrar a resposta.
Depois do almoço não consegui ficar acordada. O sol estava muito quente, já estava há horas acordada. Cochilei, coisa de oito minutos. Veio esse sonho:
Um homem alto, com um grande bigode e jaleco branco. Lá do alto onde o vejo, diz:
- Infelizmente o exame foi pior do que esperávamos.
Eu começo a chorar instantaneamente. Sem controle. Ele sai da sala e eu fico sozinha. Agora estou em um salão fazendo as unhas. É manhã, estou de mal humor de uma noite mal dormida. Não quero conversar, mas a manicure não para de falar. Fala, fala, fala de coisas que não quero saber, mas não faço nada, deixo ela continuar falando, falando sem parar e finjo estar ouvindo. Ela não percebe a diferença. Meus olhos estão lagrimejando enquanto ela lixa minhas unhas. Meu coração está apertado. Entra correndo uma menina de cabeços cacheado, corre e se joga no meu colo:
- Também quero fazer as unhas...
Estou olhando o mar em uma tarde. Águas verdes até onde vai a visão. O sol está quase se ponto nas costas do mar de Tambaú. Ouço música enquanto miro o horizonte, lá onde o mar não acaba e não se consegue ver mais. As ondas veem e vão, mas não ouço nada, nem o barulho das pessoas que passam atrás fazendo caminhada, pedalando, falando, rindo. Só ouço a música que está num volume bem alto. Sepultura: Orgasmatron. Tão alto que sinto os tímpanos vibrando e provocando dor. Ainda sinto o mesmo aperto no peito, uma agonia que vai aumentando à medida que percebo que alguma coisa está errada. Orgasmatron nem combina com mar, alguém está faltando. Tem algo muito errado neste cenário. Nem as ondas esmeraldas que veem e vão conseguem me acalmar. Quero sumir. Melhor, quero que todos sumam e só fique eu olhando aquele mar, mas sem essa música que não deixa eu ouvir o barulho das ondas quebrando na paia.
Contando, os sonhos parecem demorar, parece que durou uma noite toda. Felizmente ou infelizmente não é assim. No sonho parece que horas se passaram, mas ao acordar o relógio mostra que poucos minutos se passaram.
Entre um fleche e outro acordo. Sono agitado. O corpo dolorido. As vezes são os cães latindo que me acorda.
- Será que minha irmã voltou?
Penso. Mas continuo quietinha esperando não ouvir ninguém chamar, nenhuma batida na porta. Volto a cochilar.
Ela levanta-se, as pernas ainda bambas. Caminha até eu, sentada no sofá da sala. Um sofá vermelho que não tenho mais.
Não tenho mais?
Segura a falda em uma das mãos e tenta se equilibrar com gestos de quem segura o ar:
- Mãe, não preciso mais.
O carro da frente freou bruscamente. Bati. Coisa boba, uma lanterna quebrada. Um homem, vestido com farda da PM saiu gritando, me chamando de louca, pergunta onde comprei a carteira. Minha filha, no bando de trás fica assustada, começa a chorar. Ele para ao ver a menina.
- Tenho uma filha... sim, tenho uma filha. Onde ela está? Está precisando de mim? Como uma mãe esquece a própria filha?
É manhã. A mesa do café está posta, como dizem que eu gostava de fazer todos os dias. Estamos tomando café. Minha filha anda de um lado para o outro. A mochila está nas costas, está preparada para ir à escola. Tem nove, dez anos?
Meu Deus... como pude ter esquecido disso?
Digo:
- Vem cá...
E ela vem. Seguro seu rosto entre as minhas mãos. Olhos lindo, olhos verdes, olhos enormes. Quando ela era menor, muito menor do que agora, eu não cansava de olhar esses enormes olhos verdes e pensar:
- Olhos de mangá.
Minha filha tem olhos enormes, verdes, lindos. Olhos de mangá.
Mas hoje tem alguma coisa diferente. Os olhos verdes de mangá estão amarelos.
- O que será isso?
O que será é meu último pensamento, antes de virar para o lado e o sonho de lugar, de tempo, de sensações.
Um sono tão leve que até a respiração mais profundo me acorda. Dormindo a mente continua trabalho. Sim. Algumas pessoas pensam que ao dormir o cérebro para, descansa, mas não é assim que acontece. Dormindo resolvemos muitos problemas, que acordados não conseguimos solução. Então viro para o lado e meu cérebro continua jogando imagens que vão se sucedendo.
Duas horas da manhã acordo assustada, a cama molhada. Acordo o homem deitado ao meu lado, ele está sem camisa. Faz muito calor.
- A bolsa rompeu...
Ele levanta assustado, veste rapidamente uma camiseta branca, amassada, pelo avesso.
- Não precisa correr, tem tempo até ela nascer.
Será um sonho com o dia do nascimento de minha filha? Que gostoso passar por tudo isso. É como se estivesse revivendo tudo isso de novo. Não tenho mais como negar. Tenho uma filha. Esses sonhos são lembrança de uma filha que tenho.
- Tive?
Fecho os olhos. Quero continuar sonhando, sentindo essa coisa boa no meu peito.
A menina chora, está muito triste. Diz:
- Eu sou nova demais para morrer.
Choro também. Compulsivamente, descontrolada. A enfermeira fala calmamente, insiste, depois grita, uma, duas, três vezes:
- Mãe, se controle... Mãe, se controle... Mãe, se controle ou saia do quarto, por favor.
Saio e me vejo em uma rua toda arborizada. Um muro baixo longo, todo pintado com figuras infantis. Minha filha...
- Qual o nome de minha filha?
Ela caminha pela calçada, em frente ao muro colorido. A professora espera no portão. Nas costas uma mochila maior do que ela, mas carrega com dignidade. Recusa-se a ser ajudada.
- Mãe, não precisa entrar comigo, já sou adulta.
Seguro entre a mão o teste. Não sei como contar. Esse não era o plano, não agora. Um filho em tão pouco tempo. Como vai ser?
Estou numa praça enorme. Tem criança para todo lado: correndo, andando de patins, patinete, bicicleta, soltando pipa. Minha filha diz, olhando as rodinhas:
- Tira, mãe, já estou muito grande para usar rodinhas.
Tiro. Ela sobe na bicicleta e pedala, uma, duas, três vezes e cai. O meu coração bate mais forte, senti ele na boca. Mas antes que eu pudesse correr para ampara-la, levanta-se, ergue a bicicleta, olha para eu, ali sem conseguir me mexer. Sorri e sobe na bicicleta. Sai pedalando de novo e não caiu mais.
Finalmente acordo.
Sei onde estão as lembranças. Cada uma delas e nem estou falando das fotos nas paredes desta casa, que só percebo agora. Nem do quarto ao lado, das gavetas, dos objetos espalhados pela casa, cada um com pedaços de nossas vidas. Nem falo das lembranças guardadas na memória dos que ainda rondam minha vida e se importam com meu bem-estar. Sei que as lembranças, essas mesmas que me recusei a trazer de volta, estão aqui, comigo. Sei que vou ter que lembrar. Lembrar de tudo, não só dos momentos que fizeram minha vida mais feliz, mais completa.
Terei de lembrar da menina de cabelo cacheado e da menina sem cabelo. Terei que descobrir o que aconteceu com elas, porque estão todas aqui. Quero lembrar porque esse tempo, registrado nestas lembranças, tanto as boas quanto as ruins, as desesperadoras, trazem de volta uma parte de quem sou. Não ter lembranças é não ter uma filha. E ter uma filha, mesmo que não esteja mais comigo, é parte de quem sou, de quem quero ser.
Quero voltar a me sentir completa, esquecer que um dia preferi esquecer que tive, que tenho uma filha. Se vou me despedaçar em mil pedaços, por completar essas lembranças, tudo bem. 
- Depois vou me juntar...
Lembrar tudo, lembra de minha filha, guardar as lembranças...
E tem mais. Mas hoje, só hoje quero pensar no quanto esse tempo ao lado de minha filha foi bom e me tornou outra pessoa.
Lembro, sem dormir, sem sonhar, dela levantando-se, lá de onde passou um longo tempo quietinha pintando com giz de cera.
- Mãe, mãe, olha mãe...
E estende uma folha toda borrada com diferentes corres. No centro:
Luzia.
- Escrevi meu nome, tá certo, mãe?


 [Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
COLEÇÃO: ALÉM DA ARREBENTAÇÃO


22 setembro 2017

ALÉM DA ARREBENTAÇÃO

Queimada. Imagem captada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Camila viu na parede da sala o retrato dela mesma: cabelos dourados, cachinhos caindo sobre os enormes olhos verdes. Estava em pé, com a firmeza possível para uma criança de três anos que se equilibra na areia da praia. Ao fundo o mar esmeralda da orla de Tambaú, em João Pessoa. Foto feita em uma das raras vezes em que a família viajou de férias.
Mais de vinte anos separam as duas Camilas, aquela alegre dos cachinhos dourados, desta em pé de frete a um passado que nem tem certeza ser o seu. Vidas impossível de conciliar.
Tudo besteira, pensa ela, ouvindo a mãe, como um ruído vindo de muito longe. A vida é minha, sei eu qual meu caminho, o que tenho que fazer. Vale, no final das contas, para quase todos e tudo, o que se encontra no fim do arco íris... pronto, vale o que parece. Mas não disse nada, continuou imóvel olhadas as fotos na parede, como um túnel do tempo, sentindo-se emburrada por dentro, mas com a ilusão de não transparecer, prometeu que não iria perder a paciência, alterar a voz, como em outras conversas. A vida também não foi nada fácil para a mãe: Camila ainda lembra do luto, de quanto tempo ela ficou fechada em si mesma. Tempo que parecia que nunca ia ter fim.
Durante o luto a mãe não conseguia expressar-se, falar sobre a perda, sobre como suas vidas mudariam, sobre todas as dificuldades que passariam. Chorava o tempo todo, sentia-se ofendida com demonstrações de afeto, evitava lugares que lhe evocava lembranças do marido, teve síndrome do pânico por muito tempo, culpava-se por ter deixo Joaquim ir para o acampamento, como se pudesse fazer algo para evitar. Camila teve que ser forte pelas duas, dar apoio à mãe, continuar a luta do pai, se não exatamente pelos coletivos, por justiça, por não deixar a comunidade esquecer do massacre que vitimou seu pai, seus companheiros de luta, os que não podiam falar nem lutar por si mesmos.
- Certo? O que é certo nesta história, mãe? Ficar e ser consumida por esse desejo que nem é mais de justiça, que no Brasil não existe, mas de vingança... eu queria, mãe... matar esse desgraçado com minhas próprias mãos.
- Filha, não fale assim!
- A senhora acha que eu gosto de me sentir assim?
Quando o pai morreu, Camila teve que adultecer de uma vez só: lidar com suas perdas, fazer o dever de casa sozinha, enfrentar a escola, as opiniões da professora, que ainda ensinava que existiam coisas que meninas não podiam fazer, isso sem ele para lhe explicar que as cabeças, as opiniões são muitas, e ela precisaria ser mais forte que o mundo para manter suas convicções... as novas e as antigas. Como enfrentar o mundo sem seu apoio e ser digna de seus ensinamentos?
Na escola lhe tratavam como a coitadinha, a menina que teve o pai assassinado brutalmente, nem a professora tinha coragem de lhe dar notas baixas. As tias, o avô, os primos insistiam que ela deveria esquecer a luta de seu pai, dar as costas para tudo, não insistir em buscar justiça, que tinha que tocar a vida, esquecer o pai, seus ideais, seu modo de levar a vida. Ir embora dali, porque “a corda sempre arrebenta do lado do mais fraco”.
- Minha filha...
- Você é minha mãe, eu te amo, mas não importa, eu vou fazer o que tem que ser feito. Nunca conheci ninguém mais certo do que meu pai, e o que ele ganhou com isso? O que nós ganhamos com isso, mãe?
- Acha que ele aprovaria?
- Sei que não. Mas não posso mais esperar aprovação, nem dele nem de ninguém. Eu não tenho pai, mãe... desde os 13 anos! Só uma lembrança cada vez mais longe, imagens cada vez mais desbotadas.
- Filha...
- Sempre vou amar e admirar meu pai, mas não vou seguir seus passos, não vou ter o mesmo fim dele, não mais...
Mariangela sente que a filha, depois de anos, está pronta para chorar a morte do pai, sentir medo, raiva, saudade, viver o luto, coisa que ainda não teve tempo de fazer, sempre tão preocupada, sempre tão ativa na luta. Por isso se cala. Cala para que a filha possa finalmente sentir sua perda, talvez até chorar.
Por seu lado, Camila sente crescer em si um tremor que vai subindo dos pés até trincar os dentes. Sente a mandíbula rígida, os dentes pressionados uns contra os outros. Fixa o olhar nos retratos na parede, que seu pai pendurou um a um, com paciência que não lhe era comum. Sente que vai perder o controle, que não vai conseguir segurar sua dor, como sempre fez na frente da mãe e de todos. O choro chega na garganta, antes dos olhos.
- Puta-que-pariu, mãe! 
Essa dor não vai passar nunca... Pensa Camila. 
- Parece que meu pai morreu ontem.
Diz Camila sentindo a primeira lágrima escorrer por seu rosto.
- Filha, pode chorar...
- Sim, posso, por que é a única coisa que me resta. Fiz tudo que podia, só não chorei a morte dele, mas acabou, não tenho mais forças, mãe, acabou pra mim. Os assassinos de meu pai ainda estão soltos, mais de dez anos depois, ainda estão soltos, estão rindo da gente, mãe. Estão rindo: o assassino, os advogados, os juízes, todos estão rindo de nossas crenças. A corda sempre arrebenta do lado dos fodidos.
- Não é verdade, minha filha, não pense assim.
- Tenho tanta raiva, tanto ódio! O povo unido não tem poder de merda nenhuma, mãe. É tudo mentira. A gente pode fazer qualquer coisa, mobilizar quantas pessoas quiser, juntar uma cidade inteira em passeata, mostrar as provas, os motivos, denunciar na ONU, e a justiça vai continuar dizendo que o assassino é inocente, que só estava defendendo seu patrimônio, sua sagrada família católica.
- Filha...
- Não! Não consigo fazer mais, pensar mais nada a não ser eu mesma fazer a justiça que nenhum dos filhos da chacina conhecerão de outra forma.
Camila soca a parede, em sua foto de criança, de filha...
- Para, para, para, por favor, para.
Ela chora, mas tá decidida. Joga-se ao chão de joelhos, num choro sonoro e desesperado, olhando a única coisa que seu pai realmente construiu e que não se perdeu nas nuvens do tempo.
- Minha filha...
Corre a mãe para acolhe-la em seus braços.
- Vou viver minha vida, agora, agora não vou mais fazer isso... vou me perder de ver no ódio se continuar aqui, se continuar fazendo isso.
- Eu te entendo, filha...
- Eu não vou morrer com a mesma dignidade de meu pai. Ele ganhou o que com isso?
- Mas... filha, ainda tem a apelação...
- Nunca vai ter justiça, mãe, não seja boba. Foi só mais uma chacina que não tem culpado. Nem foi a primeira, nem será a última, nesta terra desgraçada.
- Não é assim, aqueles criminosos vão pagar, vão ser punidos, ainda vai ter justiça.
- Mãe querida, não vai ter justiça! Nem papai e nem ninguém verá justiça nenhuma. Esse é nosso país... (a)corda.
- Não, filha...
Camila levanta-se, desvencilha-se dos braços da mãe, limpa os olhos, retira da parede um quadro com a foto do pai com ela no colo. Sai deixando a porta aberta.
A mãe caminha até a porta, sabendo que não adianta insistir com a filha, que àquela altura já estava decidida. Igualzinha o pai, pensa Mariangela, olhando a filha caminhar para o portão.
Falar o que? É quase certo que ela tem razão em tudo, apesar da tristeza de admitir que a justiça não será feita, que “a corda sempre arrebenta do lado do mais fraco”.
Quando o marido morreu, Mariangela ficou sem chão. Não conseguiu apoiar a filha, ajudá-la a lidar com a perda. Pelo contrário, foi Camila quem lhe ajudou, que enfrentou os avós, que queria lhes levar de volta ao Paraná, para ficar longe desta violência sem fim, para esquecer o que tinha acontecido e iniciar outra vida.
Mas Camila disse não, nós vamos ficar aqui, vamos lutar por justiça, para que a morte de meu pai não tenha sido em vão.
Mariangela mergulhou em profunda depressão por mais de um ano, não conseguia trabalhar, relacionar-se com a família, com os vizinhos, com os grupos sociais que queriam apoiar a luta, usar sua imagem para divulgar o que estava acontecendo no campo. Assistia a filha se mobilizando, articulando as famílias das vítimas, os filhos da chacina, fazia reuniões com os sindicatos, com ONG, os órgãos indigenistas, as igrejas, reunia estudantes, fazia passeatas, viajava para Brasília, para os Estados Unidos, para Europa, onde denunciava a morosidade da justiça brasileira, as manobras jurídicas da defesa, dos agricultores e agropecuarista que continuavam avançando as fronteiras agrícolas, contaminando com agrotóxicos os rios, as terras sagradas dos indígenas. Tudo isso com a conivência dos poderes públicos e apoio de milícias armadas.
Do portão, Camila olha para trás, como se já estivesse muito longe da mãe, muito longe do lugar onde esteve por longos anos: 
- Eu vou embora desse país, mãe. Se a senhora quiser, levo a senhora comigo.
Camila viajou o Brasil, fez contato em várias partes do mundo. Por onde passava era apresentada como vítima de uma terra violenta, sem lei, como a filha de um herói da luta contra o latifúndio, contra a invasão de terras indígenas. Por conta disso recebeu vários convites para deixar o Brasil, levar uma vida de asilada política, mas nunca aceitou, seria como trair a memória do pai, tinha uma tarefa a ser feita, continuar a luta.
- Você sabe que eu não vou, não sabe?
Responde a mãe, quase sussurrando.
- Sei!
Diz Camila, saindo pelo portão, enquanto seu cachorro latia pedindo atenção.
Joaquim morreu há mais de dez anos, assassinado em um acampamento, onde protestava contra a invasão de terras indígenas por um fazendeiro da região. Camila, com 13 anos sofreu muito a perda do pai. Ele era seu herói, o homem mais bom, inteligente, bonito e decente que conhecia. A forma como imaginava seu pai, acabou confirmada após sua morte. Quem o conhecia falava dele assim. Até quem dele não gostava, quem desprezava suas opiniões, seu modo de levar a vida, reconhecia o homem justo e honrado que era, ao menos após sua morte e na frente da filha.
O pai era enfermeiro, desde que formou-se entrou e saiu de empregos nos mais variados lugares, mas sempre aonde julgava que estavam precisando do pouco que ele poderia dar. O último foi em um ONG, contratado por um amigo, Toninho dos Índios, que conheceu nos tempos de movimento estudantil. Ele era tão sonhador quanto o pai. Deveriam ajudar a cuidar de uma aldeia em uma área de conflito entre indígenas e fazendeiros plantadores de soja no Mato Grosso do Sul.
Nesta época, Joaquim estava concursado em uma Universidade Federal, era professor do curso de enfermagem, mas não estava feliz com o que fazia.
- Não foi para isso que me formei, ser professor não é ser enfermeiro, Mariangela.
Ouvia o pai falar com a mãe.
- Minha casa é você, meu amor, se você quer ir para o Mato Grosso do Sul, então vamos.
Disse a mãe.
Desde que cursava o ensino médio, Joaquim prometeu-se a si mesmo que mudaria o mundo. Primeiro achou que seria pela revolução armada: iria salvar a América, missão incompleta deixada por Che Guevara. Depois engajou-se na construção dos sindicatos, dos movimentos populares, na construção de um partido operário que se tornou tão corrupto quanto os partidos dos patrões. Por um tempo achou que a solução era ajudar a formar jovens enfermeiros com compromisso com as mudanças sociais e por fim engajou-se na luta direta à construção de alternativas locais. O cuidado vai mudar o mundo, dizia. Fracassou em todas, embora Camila admita que ele tenha revolucionado a vida de muita gente. Mas de que vale isso se morreu na miséria, se nem casa própria conseguiu ter ao longa da vida?
Essa vida acabou para mim, definitivamente não posso mais fazer isso, pensa Camila enquanto caminha pela rua.
Ela cresceu ouvindo o pai dizer que no fim a justiça vingaria, que os honestos venceriam, que uma revolução socialista seria feita no Brasil. Tudo ilusão de um homem que não vivia com os pés no chão. Cada um que se vire como pode, agora vou me virar com as armas que tenho. Não vou lutar e morrer por uma terra que não merece o sacrifício de ninguém.
- Meu pai, você tá errado, o Brasil não tem jeito!
Fala sozinha Camila, como que tentando ser ouvida pelo pai. Mas já é tarde, ele já não pode lhe convencer do contrário, de que vale a pena continuar lutando por justiça, de que nossos sonhos de um mundo melhor são valiosos, são possíveis.
Você estava errado, meu pai. Sonhos não enchem barriga, só atrapalham nosso caminho.
No outono o pai estava acampado com indígenas, sindicalistas, lideranças comunitárias da Comissão Pastoral da Terra e de outros líderes populares, todos tão indignados quanto ele.
- Esse não é seu trabalho.
Dizia a mãe.
Mas o pai não se conformava, dizia que não era enfermeiro de verificar pressão e dar injeção, mas de mudar o mundo. Cuidar é mais que técnicas, cuidar é olhar nos olhos, é ouvir, tomar parte, dizia sempre.
- Eu sei que é perigoso.
Disse o pai para a mãe. Camila ouvia da sala.
- Mas se a gente não fizer, quem fará? Estão mantando todas aquelas pessoas, amor. Temos que fazer alguma coisa.
- Vão matar você também, e o que será da gente?
Disse a mãe.
- Pai, você tem mesmo que ir?
- Vão matar ninguém não, não desta vez...
- Eu estou com um pressentimento ruim, não vá...
- Pai, tem certeza?
- Tenho que ir, amor, não posso ver essa injustiça sem fazer nada, sem ao menos estar do lado deles...
- E nós?
- Nós temos mais do que eles, vocês entendem, não é justo, temos que ajudar.
Naquela madrugada de sábado para domingo, Camila acordou no meio da noite chorando. Disse que tinha tido um sonho ruim. Chorou descontroladamente e foi levada para a cama juntos dos pais, onde dormiram os três apertados o resto da noite.
Antes do pai sair, abraçou-lhe bem apertado por muito tempo, como se já estivesse sentindo saudades, mas não pediu para ele não ir, apenas disse:
- Volta logo, pai!
Foi a última vez que falou com ele, ao menos tendo certeza que ele ouvia.
Joaquim levou três tiros no peito a queima roupa durante a invasão do acampamento pelos jagunços contratados pelo fazendeiro invasor das terras indígenas. Outras cinco lideranças comunitárias, sendo quatro indígenas foram torturados, assassinados e seus corpos amarrados em pedras no fundo do Rio. O mandante da chacina continua livre. As terras, que a FUNAI dizia ser dos índios, parraram formalmente à posse do fazendeiro, presente da justiça brasileira.
- No Brasil, não basta eliminar os desafetos políticos, eles fazem isso com uma crueldade que desumaniza a vítima, a brutalidade é proposital. Ao causar horror nas comunidades, nas famílias e nos companheiros das vítimas, estão passando uma mensagem: é isso que vai lhe acontecer se se rebelar, agora ou no futuro. Mas nós continuamos vivos e temos esperança de fazer justiça.
Disse Camila em San José, na Costa Rica, em uma sessão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, aonde esteve apresentando a chacina e suas vítimas.
Toninho, companheiro de Joaquim, ainda respirando teve as orelhas cortadas. “A ordem era levar as orelhas dele, os outros bastava matar e jogar no rio”, disse um dos jagunços, em depoimento.
Lembrando de tudo, Mariangela, não tem como negar que a filha tem suas razões em querer simplesmente virar as costas para tudo isso e seguir em frente, longe do Brasil. Finalmente enlutar-se pela perda do pai. Mas como ela poderia seguir em frente?
Os jagunços executores da chacina, chegaram a ser presos, mas a “justiça” do estado levou três anos para decidir sobre um pedido de desaforamento do julgamento para capital do estado, pois temia, com razão, que na comarca não haveria justiça. O Tribunal não julgou o pedido da defesa como procedente. O processo rolou pelos corredores da burocracia e do jogo judiciário por quase cinco anos, uma demora injustificada, mas estratégica para defesa dos assassinos, que nunca chegaram a denunciar o mandante do crime, embora fosse evidente.
O fazendeiro acusado de ordenar o crime nunca chegou a ser preso, aguardou em liberdade o julgamento e foi absolvido pelo tribunal do júri, o que escandalizou o país por duas semanas, depois foi esquecido completamente. O estado, por conta das ações e omissões do judiciário, ainda responde processo na Organização dos Estados Americanos pela demora na condução do processo, pela impunidade que reina nos conflitos fundiários no Brasil.
- No fim, os sonhadores estão sozinhos.
Diz ainda hoje Camila para seu pai, com quem conversa cotidianamente, em sonhos e quando está só, sentindo tanta saudade, quanto sentiu naquele último abraço na madrugada.
Durante sua adolescência, quando assumiu a luta por justiça, tentou estar à altura dos sonhos do pai, de seus ideais, mas sem nunca sentir que conseguia. Quanto mais brigava, mais gente mobilizava, menos digna e mais indigna sentia-se.
Durante muito tempo sentia que apenas os jagunços seriam punidos, em mais um caso de chacina por conflito de terras, mas no final nem eles foram punidos. A defesa, paga pelo fazendeiro, argumentou que deveriam ser libertados porque houve excesso de prazo de sua prisão. Tese aceita pelo juiz. A soltura foi comemorada com um churrasco na fazendo do mandante, numa afronte às famílias das vítimas.
Camila está certa, pensa a mãe. E eu deveria ir com ela, ao invés de questionar sua decisão. Mas com que forças posso fazer, posso virar as costas para as utopias de Joaquim?
Só esse ano, que ainda não terminou, pensa Mariangela, olhando anotações que vem fazendo desde a morte do marido, foram assassinadas quase quarenta pessoas, muitas delas indígenas. Existem quase duas centenas de pessoas ameaçadas de morte, em inúmeros conflitos por posse de terras. Quase todos terão o mesmo destino de Joaquim, pensa desanimada Mariangela.

[1] Felipe Milanez / Carta Capital. Fazenda Princesa: acusado de ser mandante da chacina vai a júri depois de 30 anos. Disponível em: . Acessado em: 09 abr. 2016.



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COLEÇÃO: ALÉM DA ARREBENTAÇÃO



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