Ah, doutora, o cansaço melhorou sim. As vezes quando tomo banho e me abaixo pra vestir a cueca ainda canso. Mas quase nada. Tou é ficando bom. Já pode me mandar lá pra enfermaria que aqui eu conheço tudo. É sim, doutora, sou cliente fiel. Já me internei aqui 7 vezes. Lá no Procape foram 24. E no Agamenon mais 3. Meu coração tá fraco.
Minha esposa foi embora por causa disso. Ela perdeu o gosto de viver com medo de eu morrer antes dela. "Como é que eu vou viver sem tu, meu Nego?" Ela dizia.. Coisa mais linda que eu tinha na vida, doutora.
Faz 7 anos que ela me deixou. Ah, sim! Eu vivi muito tempo com ela. Foram 40 anos de casado e mais 10 de namoro. A gente começou a namorar novinho, na escola. Eu tinha 12 anos. No começo o pai dela não gostava não, mas ai ele viu que eu tinha era amor demais pela filha dele e deixou a gente se casar.
Não, filhos a gente não teve da barriga não. Só um adotado. Ela perdeu bebê três vezes. O médico disse que ela não podia ter filho não. Fazer o que né? Foi assim que a vida quis.
Vou dizer uma coisa pra senhora, ela foi a coisa mais bonita que Deus me deu. Eu amava a minha mãe. Era uma coisa linda eu e minha mãe. Eu deitava no colo dela, ela fazia carinho em mim. Mas com a minha nega, Ave Maria! Eu amava muito mais minha nega. E era um ciúme elas duas, viu?
A gente morava numa casinha aqui em Paulista. Um dia ela acordou de manhã, antes do Sol nascer. Disse que tava se sentindo mal e que não ia pro terraço hoje, como a gente fazia todo dia pra ver o dia clarear. Disse que eu fosse sozinho e ela ia ficar na cama mais um pouco. Olhe, doutora, meu coração ficou apertado de sentar ali no terraço sem ela.
Ai fui trabalhar na venda. Mas deu assim a hora do almoço e eu comecei a sentir um nervoso. O rapaz que trabalhava comigo perguntou se eu tava bem. Eu disse que não, que tava era muito mal. Disse a ele que desse um jeito nas coisas que eu ia ver Lau. Fui correndo pra casa. Quando cheguei lá, doutora, meu coração doeu demais. Ver minha nega deitada na cama sem um pingo de sangue no rosto. Corri com ela pro Osvaldo Cruz. Me alterei quando disseram que lá não tinha emergência. Eu falei que não era emergência, era urgência! Eles tinham que salvar minha nega. Ah, a senhora estuda lá? Então, como chama aquele lugar que cuida de câncer? Isso, CEON. Ela tinha câncer, sim, no pâncreas. Se tratava lá.
Ela ficou internada na UTI. Quando eu vi a médica vindo, com a blusinha e a bermudinha que ela tava vestindo e o anel dela eu pensei: pronto, perdi minha velha. Mas não, ela ainda tava viva. Peguei as coisas dela e vim em casa. Me deu uma aflição, doutora. Eu olhava pra prateleira com a foto da gente se abraçando, que a gente tirou no aniversário do irmão dela. Ela que quis tirar, foi. Ela me disse: Nego, vamos tirar uma foto aqui, se eu morrer antes, fica de lembrança pra você. Se você morrer antes, fica de lembrança pra mim.
Não, não tou com a foto dela aqui não, mas amanhã vou pedir pra alguém trazer pra senhora ver.
Eu sei que eu fui dormir e acordei no meio da noite. Abri uma fresta da porta. A irmã dela tava na sala chorando. Ai eu me desesperei. Nunca mais ia ver ela. Ela morreu três dias depois que saiu minha aposentadoria. Eu usei tudo pra ajeitar nossa casinha. Troquei as portas, as janelas. Cada coisa que trocava era lágrima que caia. Trabalhei tanto pra dar isso a ela e ela não aproveitou.
No outro dia já veio a funerária que a gente pagava. Levou o corpinho dela pra enterrar lá em Tabira. Eu sei que eu vi o caixão saindo do carro, depois não vi mais nada. Sei que já acordei no hospital. Infarto agudo, o médico disse. Olhe, doutora vou dizer uma coisa. Doeu demais meu coração nesse dia. Mas a dor que é viver essa vida sem ela do meu lado, ah, essa dor é muito maior!
Maria Olívia Mendonça
Escolhi Maria como convidada especial deste domingo e espero de outros. Ela é estudante de medicina na Universidade de Pernambuco, viajante (CSF Budapeste) e poeta. Incerta nas escolhas mas que se entrega nas palavras e na medicina, publica seus retalhos e experiências na sua página do Facebook. Obrigada Maria por aceitar participar! Voam abraços, Mayara.