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07 novembro 2014

UM DIA ME DISSERAM QUE AS NÚVENS NÃO ERAM DE ALGODÃO

Ernande Valentin do Prado 


Fui filiado ao PT - Partido dos Trabalhadores por mais ou menos 12 anos. Uma coisa que aprendi com o PT daquele tempo é que uma decisão tomada pela maioria em assemblei não deve e não pode ser modificada pela conveniência da executiva ou da minoria dirigente. Alias, foi quando essa pratica deixou de existir que me desliguei do partido em 2001.
Naquele tempo o Diretório do PT na minha cidade, Fazenda Rio Grande - Região Metropolitana de Curitiba tinha muitos filiados. Pessoas do POVO mesmo: operários, professores, pequenos comerciantes, estudantes, sindicalistas, pessoas de associações de moradores, donas de casa, pedreiros, mecânicos, auxiliares de enfermagem, dentista, lideres de movimentos de toda ordem - sem terra, sem casa, sem emprego. E todos eram ouvidos e uma decisão tomada por essa gente era sagrada, mesmo que não representasse a vontade da direção do Partido. E isso frequentemente acontecia. E acontecia porque o poder da direção era delegado e não usurpado, condição que Demo (2006) cita como fundamental para dar legitimidade a todo processo democrático.
Quando me filiei ao PT era metalúrgico e cursava o segundo grau no Colégio Décio Dosse[2]. Trabalhava em uma fábrica de autopeças em Curitiba. Levantava por volta das cinco da manhã todos os dias e ia dormir por voltas das 23h30min. Fabricava peças para carros que nunca conseguiria comprar com meu salário. Nada diferente do que vivia a maioria das pessoas da minha cidade, que nem chegava a ser um município de verdade. Íamos para lá apenas para dormir. Passavamos o dia todo trabalhando e gerando renda em Curitiba. Mas na hora de usufruir o que a metrópole tinha de melhor não podíamos, pois éramos de outra cidade. Além disso, o Município tinha Dono. Seu nome Geraldo Cartário. Deputado muito influente e poderoso. Na verdade quase um PODEROSO CHEFÃO. Em uma campanha eleitoral, por exemplo, ele derrubou o muro da casa de um eleitor porque este pintou o nome de outro candidato concorrente.
O PT nesta cidade nasceu combatendo tudo isso e seguiu sua missão diária com chuva ou sol, com eleições a vista ou não. Era um trabalho cotidiano praticado por pessoas simples que encaravam a política como missão de cidadania, como forma de autoafirmação e nunca como profissão. Nossos candidatos, em épocas de eleições, eram escolhidos pela maioria e a essa maioria comprometia-se em fazer a campanha, inclusive pagar por ela.
Era muito bonito ver as pessoas dedicando-se a campanha dos companheiros. E isso acontecia geralmente após trabalhar o dia inteiro, ou antes, de ir para o trabalho – o que quer dizer de madrugada nas filas de ônibus. Isso incluía também dedicar os fins de semana para fazer arrastão: bater de porta em porta para pedir votos – aprendemos com as TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, pintar muro e distribuir panfletos. Tudo isso, como já disse, sem receber um centavo em troca ou promessas de emprego ou qualquer cargo que fosse. Cargo de assessoria também era uma decisão da maioria.
Em compensação depois das eleições os eleitos sabiam que o mandato não lhes pertencia totalmente, que tinha a quem dar satisfação, que tinha uma maioria para ouvir antes de cada projeto, antes de cada decisão. E isso, por mais difícil que fosse, acontecia. Na segunda eleição que participamos elegemos dois vereadores e todas as terças-feiras às 19 horas os vereadores se reuniam para planejar a semana, os projetos e as manifestações na câmara de vereadores. Era uma reunião aberta a todo filiado do Partido (e realmente acontecia).
Desta forma nosso Diretório ganhou fama na região, pois mesmo dentro do PT essa era uma postura em desuso. Nossas posições sempre foram radicais demais até para as tendências mais radicais do partido. Éramos o único diretório da região a não aceitar coligações fora do arco das esquerdas e a se definir como socialista. Talvez pelas posições claras fomos também o mais novo e único diretório da Região Metropolitana, com exceção de Curitiba, a eleger representantes para câmara de Vereadores. Foi uma história de sucesso “meteórico”.
Não apenas elegemos nossos vereadores, fizemos os dois vereadores mais votados da cidade e gastando menos de dez por cento do que gastaram outros partido e isso por canta do trabalho voluntários dos militantes, imagino.
Mas por que os militantes trabalhavam no sol, na chuva e pagava para isso?
Faziam isso porque acreditavam e acreditavam porque tinham controle das decisões. Não apenas trabalhavam, mas pensavam o trabalho. Todos e todas eram ouvidos e tinham suas decisões respeitadas. Acredito que esse foi (e é) o segredo.
No PT era comum haver muitas votações. Isso quando não se conseguia chegar a um consenso depois das discussões. Porém no Diretório Municipal do PT de Fazenda Rio Grande não conseguir consenso não era uma opção. Passamos mais ou menos cinco anos sem fazer votação para tomar decisões. O consenso era sempre possível. Não economizávamos reuniões, horas e horas de discussões. Com nosso método não havia vencidos e vencedores e todos assumiam o que fora decidido, pois era de fato decisão de todos.
Como disse, e essa é a razão deste texto, uma decisão tomada em assembleia não podia ser modificada, a menos que fosse por unanimidade e de preferencia em outra assembleia. Mesmo contraria as posições pessoais. E penso que é justamente esse o segredo e a força da democracia: respeito à opinião do outro e ao jogo político legitimo e honesto (mas jogo político honesto ainda existe?).
No PT entrei como operário e logo me transformei em um dos dirigentes. Mas nunca deixei que isso me subisse à cabeça. Ocupei todos os cargos disponíveis no Diretório, inclusive alguns em esfera regional. Mas nunca deixei de ouvir e respeitar a decisão do mais simples e calado militante que ocupavam o fundo da sala. SEI DE ONDE VIM E TENHO ORGULHO DISSO.
Essa postura, que ouso chamar de democrática, acompanhou-me em tudo que fiz até hoje. E espero não perder jamais. E apesar de saber que o PT não é mais assim, que muitos dos antigos companheiros não são mais assim, agradeço aos anos que passei no Partido, pois aprendi muito e trago comigo a radicalidade daqueles dias.
A tradição brasileira é presidencialista e o PRESIDENTE tem o poder de tomar decisões baseadas em sua própria vontade, independente do que já havia sido debatido. Nunca fiz isso quando estive em posição equivalente e espero nunca fazer. Se depender só da minha vontade isso nunca farei.
É por conta da minha pouca ou nenhuma disposição em tomar decisões a revelia da maioria que prefiro não ocupar funções onde haja pressão para que isso aconteça.
Decisões em consenso exigem negociações, afinidades, sobretudo de objetivos, empatia, vínculos e disposição para tal. Coisas cada vez mais difíceis de construir nas relações efêmeras da atualidade. O “toma lá da cá” é uma regra de boa convivência entre os pares no dia-a-dia. Não suporto isso, não faço isso, tenho vergonha disso. Não sei nem cortar fila (e não quero aprender).
E como sou radical, graças a Deus, não consigo fazer isso nem para mudar o dia e a hora de uma reunião marcada pela maioria em “assembleia”.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]




[1] Este texto foi originalmente publicado no Blog Cuidado, Saúde e Cidadania com o título de A democracia nossa de cada dia. O título atual é uma referência à música: somos quem podemos ser – Engenheiros do Havaí.
[2] Volto a esse tema em outra oportunidade.

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