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12 agosto 2015

Entre discos

Os restos do disco do Cazuza.


Sento para descansar, primeira vez em dias. Sem caixas para fazer ou desfazer, sem malas, sem bilhetes nem passagens. Tempo meu, giro com o vinil do Ney Matogrosso no toca-discos. Entre os acordes o tempo passa entre os dedos, entre mim, entre a distância. Penso em já não ser de lugar nenhum, deixando esse rastro de saudades que ao mesmo tempo quer viver o mundo e ter uma “casa no campo” para trabalhar com medicina rural. Já dizia Débora Noal, “Minhas raízes são aéreas” – devo dizer, acho que as minhas também. Meio Elis Regina em casa no campo meio Belchior com medo de avião planejo meu estudo de Pediatria. 

Perguntam-me “como foi a experiência?”: fico na dúvida se é para eu dizer um pouco de tudo o que vivi ou para reduzir em uma frase “foi muito boa” – essas novas dúvidas que carrego comigo. Que carrego nos meus novos erros, perdida nas unidades de medida em centímetros e pés – ou ao atravessar a rua, meio mão inglesa, meio mão brasileira. Para que lado devo olhar?

Nada que o tempo não vá organizar. O tempo parece organizar tudo. Exceto o tempo que não vi passar aqui e quando volto, vejo muitos dos meus colegas na medicina frustrados, parece que sem notícias boas. Dizem: é a crise. Tudo é crise e troco o disco - numa tentativa quase sempre falha tento escutar “Ideologia” do Cazuza para consolo, mas o disco não toca porque em algum momento da universidade um cachorro de um amigo comeu ele. Mas ironia ou não Cazuza grita em uma parte distante do disco que não foi arranhada “Ideologia, eu quero uma para viver”. E volto para Oswaldo Montenegro meio poesia, meio música fico entre os versos “Que a morte de tudo em que acredito, não me tape os ouvidos e a boca/ Porque metade de mim é o que penso, mas a outra metade é um vulcão...”.

Sento e re-escuto as palavras dessa semana “Mayara, você não pode resolver tudo...” e então tudo fica como está, aceita. Não sei de onde vem a rebeldia e converso sobre o sistema com as enfermeiras da maternidade. “Mayara, você se esqueceu como as coisas funcionam”. Lembro-me de uma série de CDs que você colocava no computador sobre “Como as coisas funcionam” eu adorava entender como as coisas funcionavam. Agora tenho que entender como as coisas não funcionam - enquanto vejo as pessoas riscando no calendário as semanas para se tornarem médicos – “E tudo isso foi no mês que vem” do Vitor Ramil passa por mim. Ainda não consegui aceitar a vida que vive para o final de semana, para a próxima semana, para a formatura, para o fim. 

Neste dia branco, se branco ele for” de Geraldo Azevedo me lembra que as paredes do hospital são muito brancas, ou muito amarelo claras, ou muito cor de rosa claro, ou muito azul claro, mesmo mudando o tom, não muda o sentimento “claro” das paredes. “Mas é claroque o sol vai voltar amanhã” no meio dos dias de chuva de Rio Grande eu já de jaleco novamente, pensei que nem sabia mais usar jaleco – e coloco o estetoscópio no pescoço. Consigo ver a pessoa que está na minha frente sem me “robotizar”? Espero que sim. “Fronteira me voy” de Pedro Munhoz soa ao fundo– e vou até as minhas fronteiras. E talvez o Chico me diga “Quando eu nasci veio um anjo safado /O chato dum querubim / E decretou que eu estava predestinada /A ser errada assim”. Hoje um paciente disse que não podia entregar fotos para o pai, no meio do turbilhão da enfermaria desenhamos as mãos e os pés dele em uma folha em branco – ele podia entregar um desenho das mãos e dos pés. Nem certo nem errado, mas diferente como Paulo Freire falou, eu e meu revés na minha casa de saudades, vivo cada instante porque não me conformei em passar, enquanto as músicas soam ao fundo e no meu fundo encontro mais perguntas, mais palavras e silêncios. 

* Clique nos artistas e músicas para escutar um pouco dos discos.
Voam abraços,
Mayara Floss

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