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Os restos do disco do Cazuza. |
Sento para descansar, primeira vez em dias. Sem caixas para
fazer ou desfazer, sem malas, sem bilhetes nem passagens. Tempo meu, giro com o
vinil do Ney Matogrosso no toca-discos. Entre os acordes o tempo passa entre os
dedos, entre mim, entre a distância. Penso em já não ser de lugar nenhum,
deixando esse rastro de saudades que ao mesmo tempo quer viver o mundo e ter
uma “casa no campo” para trabalhar com medicina rural. Já dizia Débora Noal,
“Minhas raízes são aéreas” – devo dizer, acho que as minhas também. Meio Elis
Regina em casa no campo meio Belchior com medo de avião planejo meu estudo de
Pediatria.
Perguntam-me “como foi a experiência?”: fico na dúvida se é
para eu dizer um pouco de tudo o que vivi ou para reduzir em uma frase “foi
muito boa” – essas novas dúvidas que carrego comigo. Que carrego nos meus novos
erros, perdida nas unidades de medida em centímetros e pés – ou ao atravessar a
rua, meio mão inglesa, meio mão brasileira. Para que lado devo olhar?
Nada que o tempo não vá organizar. O tempo parece organizar
tudo. Exceto o tempo que não vi passar aqui e quando volto, vejo muitos dos
meus colegas na medicina frustrados, parece que sem notícias boas. Dizem: é a
crise. Tudo é crise e troco o disco - numa tentativa quase sempre falha tento
escutar “Ideologia” do Cazuza para consolo, mas o disco não toca porque em
algum momento da universidade um cachorro de um amigo comeu ele. Mas ironia ou
não Cazuza grita em uma parte distante do disco que não foi arranhada
“Ideologia, eu quero uma para viver”. E volto para Oswaldo Montenegro meio
poesia, meio música fico entre os versos “Que a morte de tudo em que acredito,
não me tape os ouvidos e a boca/ Porque metade de mim é o que penso, mas a
outra metade é um vulcão...”.
Sento e re-escuto as palavras dessa semana “Mayara, você não
pode resolver tudo...” e então tudo fica como está, aceita. Não sei de onde vem
a rebeldia e converso sobre o sistema com as enfermeiras da maternidade.
“Mayara, você se esqueceu como as coisas funcionam”. Lembro-me de uma série de
CDs que você colocava no computador sobre “Como as coisas funcionam” eu adorava
entender como as coisas funcionavam. Agora tenho que entender como as coisas
não funcionam - enquanto vejo as pessoas riscando no calendário as semanas para
se tornarem médicos – “E tudo isso foi no mês que vem” do Vitor Ramil passa por
mim. Ainda não consegui aceitar a vida que vive para o final de semana, para a
próxima semana, para a formatura, para o fim.
“Neste dia branco, se branco ele for” de Geraldo Azevedo me
lembra que as paredes do hospital são muito brancas, ou muito amarelo claras,
ou muito cor de rosa claro, ou muito azul claro, mesmo mudando o tom, não muda
o sentimento “claro” das paredes. “Mas é claroque o sol vai voltar amanhã” no meio dos dias de chuva de Rio Grande eu já de
jaleco novamente, pensei que nem sabia mais usar jaleco – e coloco o
estetoscópio no pescoço. Consigo ver a pessoa que está na minha frente sem me
“robotizar”? Espero que sim. “Fronteira me voy” de Pedro Munhoz soa ao fundo– e
vou até as minhas fronteiras. E talvez o Chico me diga “Quando eu nasci veio um
anjo safado /O chato dum querubim / E decretou que eu estava predestinada /A
ser errada assim”. Hoje um paciente disse que não podia entregar fotos para o
pai, no meio do turbilhão da enfermaria desenhamos as mãos e os pés dele em uma
folha em branco – ele podia entregar um desenho das mãos e dos pés. Nem certo
nem errado, mas diferente como Paulo Freire falou, eu e meu revés na minha casa
de saudades, vivo cada instante porque não me conformei em passar, enquanto as
músicas soam ao fundo e no meu fundo encontro mais perguntas, mais palavras e
silêncios.
* Clique nos artistas e músicas para escutar um pouco dos discos.
Voam abraços,
Mayara Floss
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