Mostrando postagens com marcador reflexões. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador reflexões. Mostrar todas as postagens

24 maio 2017

Tanger

Foto: Karen Raquel


 Aprender a cuidar é como tocar violão. Como pode-se aprender saúde sem vivenciar? É como assistir vídeo aulas no YouTube de violão e achar que após um curso completo de ritmos brasileiros você vai saber tocar um samba sem nunca ter encostado em um violão. 


Não se aprende a dedilhar as cordas, afinar o tom sem um violão. Não existe curso de humanidades sem sentir o cheiro da madeira a melodia da música tocada nos consultórios, nas casas, nas comunidades.

Ler a partitura é apenas uma parte dos sinais vitais musicais, tocar a alma ultrapassa as notas pretas do papel. Traduzir a teoria para a música, eis que reside o mistério. A teoria protocolar de remediar, curar e salvar é tinta e papel. Cuidar  é conhecer a música no escuro, por dentro, saber o local dos trastes, o espaço das cordas, o caminho da melodia, o espaço e o timbre do som. As vezes será preciso improvisar, respirar fundo, seguir tocando.

Experimentar diferentes violões, diferentes ritmos, encontrar aquele que cabe na sua mão, que o braço é do tamanho certo, que reverbera na frequência certa para o profissional de saúde. Alguns vão sentir-se confortáveis com todos, vão tocar  de tudo, são ecléticos. Quase não há música que não reconheçam, pelo menos um pequeno trecho. Se não souberem adaptam-se rapidamente a nova a afinação, escutam com curiosidade.

Aprender saúde deve ser de repertório vasto, ritmos diferentes, cenários diferentes. Tocar apenas no  hospital é como aprender um só estilo musical. O ritmo do beep beep dos aparelhos pode transformar-se em uma melodia, tocada  com emoção e profundamente mas os outros sons, ritmos e melodias talvez fiquem intocados. Não ressoem.

Sair da partitura, da paredes do hospital e das clínicas e colocar os pés no chão da seca, na viagem longínqua pelos interiores, é vivenciar diferentes palcos, ouvir diferentes músicas , conhecer outras melodias carregadas de histórias, timbres, pausas, emoções e silêncios. É aprender música sentindo o vibrar da madeira, o vibrar da seca, é fazer chover em melodia. 

Viver é tanger as cordas do cuidado - sentidos e sentimentos na ponta dos dedos.



Abraços que pousam,
Mayara Floss

07 setembro 2016

Carta ao estudante de medicina



 Texto-desabafo de uma discussão sobre a visão do especialista sobre o profissional na APS e a influência desta visão na escolha jovem médico (que por pressão dos colegas, professores e outros profissionais fica em dúvida em relação a escolha), acabei escrevendo a seguinte resposta (transformada em carta). 

Para Marcela

Caro estudante de medicina/jovem médico,

Acho que dividir histórias ajudam a nos entendermos e entender o próximo. Passei por um processo de aceitação quando no terceiro ano da faculdade desconstrui muitas das visões romantizadas da medicina e bati o pé que queria fazer medicina de família e comunidade, e hoje além de fazer medicina de família e comunidade ainda bato o pé que quero ir trabalhar na zona rural. Desde então foram desde professores que se negaram a dar uma explicação porque eu escolhi ser médica de família, até escolherem os pacientes humildes para eu tratar porque é "medicina de pobre". Penso que consegui aprender muito e fazer grandes trocas tentando trabalhar a competência cultural e minha própria bagagem nas consultas.

Hoje e a cada dia o que eu mais tenho certeza é que não quero fazer uma outra especialização. Fragmentar, dissecar e clinicar sem ver os determinantes de saúde e sociais, medicar sem entender contexto, usar meias e minhas verdades como generalizações e aprendo a enxergar essas diferenças com a medicina de família diariamente, mesmo ainda sendo estudante (sim, entendo a importância do especialista, mas não entendo porque ao escolher medicina de família e comunidade tenho que ouvir sermões sobre maus encaminhamentos, sobre médicos ruins no PSF, sobre minha escolha ser equivocada e que vou "ganhar pouco dinheiro"). Eu me questiono muito como muitas vezes o médico que tanto crítica  a especialidade (currículo oculto ou preconceito velado) não consegue despir-se das roupas velhas (sim, precisamos todos rejuvenescer, já dizia Belchior).

Nunca a medicina foi tão capaz de resolver coisas e tão incapaz de alcançar as pessoas. Nunca fomos tão criticados. E nunca fomos tão incapazes de ouvir (em tempos de comentários e jocozidades sobre "febre interna", "espinhela caida" e "peleumonia"). Essa pragmatismo e contrastes encontram uma forma de aproximar as distâncias na medicina de família, no método centrado na pessoa, na chance de emponderar um sujeito e coordenar o cuidado.

Em nosso mundo que cada vez fica maior, mas mais interdependente o paradigma, hoje, de saúde-doença mudou, as doenças crônicas superam as doenças infecciosas e a causas dessas doenças estão fora do "setor saúde" e são profundamente moldadas pelos produtos e práticas das indústrias de alimentos, bebidas, tabaco, álcool e marketing.

E na prática do médico generalista é possível encontrar uma forma de resistência e não é uma resistência sozinha (médico para médico, profissional para profissional) mas no sujeito que está a sua frente.

E não só na perspectiva brasileira, mas quando paramos para pensar que a diferença de expectativa de vida dos países "desenvolvidos" e em "desenvolvimento" é de 40 anos, precisamos refletir sobre o papel da atenção primária nesses contextos, nessa revolução - mesmo que muitas vezes discreta. E voltar-se para essa atenção primária é também voltar-se para a direção de um cuidado mais integrado, compreensivo e centrado na pessoa/comunidade.

O trabalho é árduo e demanda muito, em uma mesma sala de espera você pode encontrar um pouco de tudo das mais "difíceis" e raras doenças que um médico deve "estar preparado para lidar" com o bônus de conhecer as pessoas, a comunidade, e no seu diagnóstico poder incluir as causas e determinantes destes problemas de saúde. Do contrário do ambiente hospitalar, a negociação e a conversa terão que ser muito mais aprofundadas, muito mais desafiadas porque o paciente entrará pelo teu consultório "dono de si" e perguntará, opinará e muitas vezes não irá "seguir o que dizes" isso vem de encontro com novas habilidades e caminhos que temos que desenvolver constantemente. Além disso, você "nunca verá",  quando der certo o papel de evitar que um infarto aconteça, que uma diabetes se desenvolva, o paciente que não chegará a emergência, de poder segurar até o fim na mão do paciente são muito mais marcantes e intensos.

O especialista tem que existir e tem o seu papel (isto não é uma batalha/luta, é cuidado coordenado e temos que trabalhar juntos!), mas sempre devem ter os médicos que conhecem os seus pacientes bem o suficiente para gerenciar realmente a totalidade da saúde em todas as suas múltiplas dimensões, incluindo as necessidades mentais e espirituais.

Acho que esses são alguns dos sonhos, utopias e realidades. Espero que possamos ser colegas de residência. 

Abraços que pousam,
Mayara Floss

13 janeiro 2016

Cuidado

Praia do Coqueirinho - PB

Das reflexões do Ernande e outras reflexões

“Qualquer criança sabe que o tempo não existe, que é mera invenção dos homens. O tempo não é mais que uma sucessão interminável de bateres de corações alimentados por gestos de ternura” – Para os filhos dos filhos dos nossos filhos de José Pacheco

O mundo, hoje (e provavelmente antigamente também), está acostumado a lidar com problemas e não com inspirações. O profissional da saúde vai amenizar as mazelas do mundo ou criar novos mundos? O cuidado não pode ser uma repetição, um caso clínico, uma experiência baseada em quantos pacientes você teve, uma expiração. O cuidado transcende o conhecimento, porque pode existir cuidado com pouco conhecimento, e muito conhecimento com pouco cuidado. Podem existir partos normais agressivos e cesarianas carinhosas – como me contou Amélia certa vez. O sinal do coelho – que não existe “cientificamente” - no meio de uma cirurgia, pode fazer todos sorrirem, para aliviar o cansaço – “duas orelhas ou quatro orelhas? Acho que temos que ter dois coelhos”. 

Como aprendi navegando na balsa, a profecia é menos sobre prever o futuro, e mais sobre a sina de ler os sinais do tempo, é intuição. É poder colocar um cobertor quando o paciente diz que está com frio e medo. É perceber que quando você quiser pagar a passagem, você já vai estar navegando – não precisa pagar! Não precisa comprar. 

O cuidado não tem metodologia exata, o aprendizado não vem do ensino, vem das experiências, dos processos de aprendizados que não tem controle nem metodologia - aprendemos e trocamos em curvas. Vai sempre faltar uma parte, vai sempre ser incompleto, mas repleto. A educação popular e o cuidado têm um elemento transformador profundo no qual o agente da transformação é também transformado. Na universidade, hoje, existe uma certa miopia que coloca o número de horas como maior que o conteúdo, ela que determina a carga horária maçante e os “conteúdos” que devemos aprender, mas tudo marcado pelo tempo, que não é linear, e “enjaulado” no sistema universitário. O cuidado pouco abordado fica mais restrito em tempo, e é uma linha que muitas vezes se perde em meio a slides e aulas, mas que pode se desenhar nos pacientes e nas interações. São os reencontros libertadores com a comunidade, pacientes e a educação popular que nos resgatam. Muitas vezes não precisa ser dentro ou fora do hospital. Pode, também, existir projetos de extensão na comunidade duros e interações humanas hospitalares carinhosas – cada um faz do seu espaço seu palco. É a ressignificação que fazemos do ato de cuidar, que se perpetua na forma de transformação de cada um de nossos dias. Como o ato de educar, talvez o cuidado seja uma educação que acontece na relação profissional de saúde-paciente, explico melhor, uma aprendizagem, um caminho mútuo de construção – geralmente, esquecemos de valorizar o que não é biomédico, científico, aferido, comprovado e pesquisado.

Por mais clichê que possa ser, o cuidado é o inusitado dos profissionais da saúde. É o vaga-lume que brilha no escuro. É ouvir a paciente de 95 anos que diz “nos éramos pobres na palavra, mas ricos no viver, éramos uma família grande”. Não li ainda o protocolo sobre “aperto de mão”, a diretriz sobre “olhar nos olhos” ou a lista de procedimentos “carinhosos” - não sei se quero ler, também, mas há a necessidade de flexibilizar fugir do protocolo clínico convencional. A maioria da história não cabe na história clínica, e parece que o que não está na anamnese perde o valor no cuidado, a história que não é contada nas perguntas abertas ou fechadas da investigação de uma doença. Não estou dizendo que a história clínica não é importante, quero propor a reflexão de fazê-la mecanicamente sem pensar nas outras histórias que se desenrolam por trás de uma lista de problemas e uma folha de anamnese. Assim como grande parte do cuidado não cabe nos prontuários. Devemos aprender e refletir sobre nossos pacientes e comunidade, quem eles são, quais suas histórias e caminhos. Ao invés de carregarmos pedras, talvez um dia, seremos construtores de catedrais – novos caminhos, novas descobertas, pequenices diárias imensuráveis que são as diferenças do cuidado e dos nosso dias.

Voam abraços,
Mayara

11 novembro 2015

Doutora, qual é o meu problema?




Exposição "Limites" sobre os plantões médicos da Leticia Ruiz Rivera. Veja mais clicando aqui.


Paciente com história de insônia, despertares noturnos, perda do apetite, perda de peso acentuada nos últimos meses, isolamento social, utilização de múltiplas drogas, agitação, rebaixamento do sensório, realização de diversos exames, astenia, adinamia, realização de diversos procedimentos, dor epigástrica, em queimação, consumo em excesso de bebida cafeinadas em excesso, desidratação...
Depois de coletar a história e fazer o exame físico o paciente pergunta com a voz rasgada:

Doutora, o qual é o meu problema?

É medicina, filho, é a medicina.

Voam abraços,
Mayara Floss

02 setembro 2015

A violenta vontade de ser mais



Fonte imagem: http://designist.ro/kinky/sa-inceapa-revolutia-de-designist/

Entro no quarto, mais uma manhã, mais um dia para conversar, auscultar, examinar, discutir, medicar, trocar... Quando eu entro no quarto corre a discussão: “Mata não, não precisa”. Eu olho para aquelas mulheres sem entender: “Matar o quê?”. Uma delas prontamente responde: “Uma mulher aí, que está precisando”. Fico pensando, quem precisa ser morto? Tento um tímido: “violência não resolve”, logo tenho uma resposta: “Resolve sim. As pessoas têm que respeitar”. A conversa segue, sem uma evolução muito favorável. Logo me explica: “tem que ser assim, bobeou morreu”. Tento falar sobre se colocar no lugar, tentar entender. Logo penso que eu posso ser a próxima, se o assunto seguir assim. 

Fico olhando para elas, e não consigo ver toda essa crueldade. Vejo por trás da violência, das tatuagens e cicatrizes uma vontade de ser mais. Uma vontade de ser mais travestida da violência, desviada, mas que ainda se manifesta, das formas mais agressivas para se ter voz. Ela diz:         “ninguém se mete comigo”. Eu concordo, mas ainda assim, vejo os sonhos que carregam aqueles olhos e palavras. De criar os filhos bem e até se organizar para estudar engenharia a noite.  

Quem sou eu para julgar? Em baixo do meu jaleco branco, só tive que estudar, não precisei sobreviver para comer, nem matar para ser mais. Sou tomada por uma terrível tristeza. Enquanto escuto uma estudante entre lágrimas dizendo que a criança perguntou: “você tem telhado em casa? Tem um quarto só seu?” . Penso nas vidas que correm por entre os dedos: será que ela teve telhado em casa? Ou um quarto só dela? Essa montanha-russa de sentimentos e experiências anda no meu peito e no peito da mulher, que hora quer matar, hora tem toda a gana de viver. Todo o conhecimento que tenho, não serviu para muito, não apartou a violência. Mas ainda assim, garantiu que durante a internação eu descobrisse que ela gostava de ler e eu levasse um livro.  

Esses saberes escondidos, essas gentes sabidas que gostam de ler e precisam matar. A violenta vontade de ser mais, que diz para mim: "livro triste doutora, muito violento, a mulher levou até bala... Ela morre no final?".

Abraços que pousam,
Mayara Floss

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog