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Rio Negro e Solimões - foto: Ernande, 2015
Ernande Valentin do Prado
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- Você vai mesmo?
- Vou.
- Tudo bem.
- A gente já falou tanto sobre isso (...)
- Tudo bem.
- Não me olhe assim (...)
- Tudo bem.
- Você vai ficar legal? (...) quer que eu esquente a janta pra você? (...)
Meu Deus! (será que vou conseguir levar isso até o fim?) o que será de minha vida? O que será da vida de todos em minha volta? preciso pensar em outras coisas, outras, outras (...)
- Não precisa. Eu me viro, já dei muito trabalho.
- Eu não me incomodo...
Tinha uma escada enorme na casa de minha avó... Eu era pequena e me lembro que a gente (minha mãe, minhas tias, todas as mulheres da casa) sentava nos degraus pela manhã e ficava conversando e esquentando ao sol. Elas falavam da novela, da vida dos outros... eu quase não falava, era muito pequena, mas de vez em quando abria a boca e minha mãe gritava comigo.
- (...) eu nunca me incomodei.
Eu não sei como alguém pode beber cachaça: meu pai bebia. Bêbado, ficava parado, olhos vidrados, fixo numa mesma coisa, olhava, mas era como se nada visse nada, nada, nada (Deus...), como se nem estivesse ali, como se a alma (meu Deus, eu não vou aguentar) o tivesse abandonado. Babava (...) falava um monte de besteiras para ninguém. No dia seguinte passava mal, ficava tremendo. Que nojo: era horrível!
- Não chora.
Logo que nos conhecemos, passamos a noite dançando? Na madruga caminhamos até sua casa. Saímos abraçados pela rua. Uma neblina fina ofuscava o brilho das luzes dos postes, um friozinho de outono incomodava. Caminhávamos: no primeiro quarteirão disse: meus pés estão me matando. No segundo quarteirão disse: não aguento mais esses sapatos. No terceiro quarteirão disse: vou tirar os sapatos. E a meia, questionei. Vou tirar também, Não olhe. Mas olhei. Estávamos em frente a uma construção abandonada, embaixo de uma luminária apagada. Vi quando levantou a sai (não se incomodou com meu olhar). Não vi suas pernas nem nada. De pés no chão, sorriu e disse: moro longe, tem certeza que quer me acompanhar? Não tem importância. Tinha medo da noite acabar e a gente nunca mais se ver.
- Eu não estou chorando.
- Você ainda me ama?
- Amo (...) muito, muito mesmo (...) como uma desesperada.
- Então fica.
Meu Deus, quando ele me olha assim (...) sinto que nada mais importa.
- Eu já vou (...)
- Fica.
Sempre vivi em pânico: sempre com medo de alguma coisa, medo de crescer, medo de ter que fazer a barba pela primeira vez, medo do serviço militar, medo de não me acostumar a ser adulto, medo de não encontrar a mulher da minha vida. Medo de perde-la, acaso a encontrasse.
- Você promete?
- Eu amo você!
Um dia no centro da cidade vi um garoto encolhido sobre os joelhos. Ele chorava baixinho. Parei diante dele com o coração apertado, sem saber o que fazer. Só queria voltar para casa, te abraçar, pedir para cuidar de mim, não me deixar só neste mundo.
- Não me segure mais (...) não te entendo. Acho que você pensa demais. Isso não é bom. Teve um tempo que fiquei assim. Passava o dia pensando. Ninguém me aguentava. Minha mãe gritava comigo o dia todo e meu pai dizia que eu estava louca. Eu não te entendo (...) não entendo (...) não consigo viver assim (...) eu tentei (...) Juro: eu tentei de todo jeito te entender, juro que tentei (...)
Eu nunca amei ninguém, nem vou amar, a não ser está mulher parada aqui na minha frente, esperando ouvir alguma coisa que não posso dizer.
- Por que faz isso comigo?
Na primeira noite, levantei-me com cuidado, evitando fazer barulho, fui até o canto do quarto, onde estava jogada sua calcinha. Peguei a pequena peça embola e ajeitei. Olhei receoso para a cama onde dormia descoberta, deitada de lado com as mãos sob a cabeça, fazia um leve som com a boca cada vez que expirava...
- Por que não promete? Eu estou louca pra ficar (...) juro por Deus (...) mas também não posso viver assim (...) você tem que comprometer-se (...) ou não fico.
Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você (...)
- Eu não posso fazer nada.
Eu me lembro de uma cena que ficou perdida em minha infância: não me lembro quantos anos tinha, nem onde estava. Só lembro de um pedaço de quintal de terra vermelha, batida, na entrada de uma mata. Eu brincava com duas crianças, que deveriam ser minhas irmãs. Dentro da mata, junto à margem do rio estava minha mãe. Lembro de meu pai chegar com um galãozinho de plástico na mão e jogar na margem do carreador que dava no rio, onde estava minha mãe. Algum tempo depois, voltou com ela nos braços, como se carregasse uma princesa.
- Eu não posso fazer nada. Nunca pude, nunca vou poder.
- É incrível...
Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você...
- Eu colocando minha vida em suas mãos e você (...) você não é capaz de um gesto (...) nada (...).
Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar... que iriamos morar juntos...
- (...) você é incapaz de pensar em alguma coisa além de você e suas convicções (...)
Desde a primeira vez que te vi, já sabia que iria me apaixonar por você. Que iriamos morar juntos, que iria sofrer.
- Tudo bem.
- Tudo bem o que?
- Você está certa.
- Estou certa em que?
Penteei meus longos cabelos negros, com muita paciência e cuidado, ainda nua em frente ao espelho. Meus olhos brilhavam, meus lábios vermelhos não disfarçavam o sorriso de contentamento com o desejo que lhe despertava, despertaria. Na gaveta de calcinhas escolhi a menor, a que me parecia mais sexy. Vesti, colocando primeiro o pé direito e depois o esquerdo. Puxei até a virilha, ajeitei as dobras na nádega. Por algum tempo fiquei me olhando no espero e pensando: será que ele vai gostar de mim, do meu corpo, da minha alma? Virei as costas, peguei uma blusa branca, quase transparente, vesti por cima do corpo arrepiado. Do cabide, peguei uma saia. Para os pés uma sandália que deixava meus dedos a mostra, em sua altura. Olhei novamente ao espelho, fiquei satisfeita com o que vi, saí para a primeira noite.
- Você está certa.
- (...)
- Não chora.
Eu sem você (...) você sem mim. É tão triste.
- Eu já vou.
- Você vai sem me dar um beijo?
- Desce aqui (...) você está tão alto.
*
Essa história foi escrita originalmente em 1994. Fazia
parte de uma publicação intitulada Histórias
abortadas e abortivas, que acabou sendo abortada.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]