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10 julho 2013

O gosto e a poesia do trabalho em saúde

Eymard Vasconcelos

Há no imaginário da população uma associação do trabalho em saúde com o que é penoso: morte, dor, secreções, descontrole emocional, exigência excessiva de estudos e treinamento, gritos, sangue e situações de muito stress. Isto é ainda mais ampliado se o trabalho se refere ao atendimento de pobres, oprimidos e marginalizados. Aí, há ainda a associação com sujeira, serviços feios e precários, violência, dificuldade de comunicação e ignorância. Como explicar então a grande procura por formação profissional neste campo e a realização pessoal de muitos trabalhadores do setor saúde?

Há compensações bem evidentes como as boas remunerações e o prestígio social que ainda estão presentes, principalmente para os médicos e os empresários do setor. Mas as fontes mais importantes de realização são mais sutis e menos conversadas.

As pessoas querem ser significativas no meio social em que vivem. Têm também um forte anseio de avançar no entendimento dos mistérios da vida. Tudo isto pode ser intensamente vivido no trabalho em saúde.

O profissional de saúde tem acesso, como poucas pessoas têm, ao olho de furacão da vida humana. Na crise trazida pela doença, as pessoas revelam realidades que não costumam ser contadas para mais ninguém. Muitas vezes, nem mesmo para a esposa, filhos, pais ou amigos mais próximos. Expõem a intimidade de seu corpo e de sua casa. Narram conflitos sociais em que estão envolvidos. Abrem seus corpos para exames que revelam dinâmicas internas de sua fisiologia e anatomia que poucos compreendem bem. A condução do tratamento exige, além do conhecimento e manejo de instrumentos técnicos de intervenção, um entendimento ampliado das características psicológicas do paciente, da sua cultura familiar, das pressões sociais que recebe e das suas limitações e possibilidades materiais. Há um enorme campo de possibilidades de acesso a muitas dimensões dos mistérios da existência humana que infelizmente nem todos profissionais aproveitam ou têm disponibilidade de tempo ou de maturidade psicológica para reparar e pensar, pois o sofrimento e as angústias do paciente costumam provocar os medos, fantasias e bloqueios. O profissional de saúde é assim constantemente desafiado, tornando seu trabalho muito instigante. E tem oportunidade de uma intensa interação social com pessoas e grupos muito diversos. É um trabalho dinâmico que abre muitas perspectivas de estudo, interação e contato com dimensões escondidas da vida.

Na confusão familiar e na instabilidade emocional, trazidas pela doença significativa, o profissional pode ser central como referência de ordenação e motivação para a busca de soluções. A intervenção técnica sobre o corpo do paciente, o ato profissional mais ressaltado pela sociedade, sempre se acompanha do agir sobre estas dimensões subjetivas e familiares, mesmo quando o terapeuta não toma consciência e reflete sobre elas, tornando-se, portanto, menos eficaz. Quando o seu trabalho se esparrama para os problemas e mobilizações da comunidade, a interação com a complexidade da vida se torna ainda mais intensa. A experiência de realização deste criativo e complexo papel ordenador, esclarecedor e mobilizador, nestes momentos de crise, é a grande fonte de realização do trabalho em saúde. O pior sofrimento é aquele que parece não ter explicação e perspectiva de solução. É muito gratificante lidar com situações próximas do caos e participar de forma significativa de seu esclarecimento, da sua superação ou de seu alívio. A vivência desta experiência marca profundamente, mesmo que a correria dos atendimentos seguidos, nos serviços de saúde, não permita conversar e até pensar muito sobre ela. A lembrança da gratidão e da alegria restabelecida fica ressoando nos intervalos da agitação do trabalho. Cada situação difícil enfrentada é um aprendizado. Como temos sede de saber! A realização no lidar com a crise acontece se o olhar aberto aos sentimentos das pessoas atendidas é mantido, não deixando a mente ficar presa aos rancores do trabalho ou fixada apenas nas próprias metas pessoais. E quando o agir profissional não fica preso a respostas e condutas predefinidas, tornando cada ato de cuidado e cada enfrentamento comunitário uma pesquisa e uma construção coletiva.

Há uma metáfora das tradições espirituais orientais que expressa bem este ato de criação: a linda e alva flor de lótus, que surge e se desenvolve nos pântanos mais fedorentos. Do caos e da lama, a poesia brota; e encanta. Muitas vezes, a vida que emerge destas situações é de uma qualidade muito superior ao que antes existia. A doença evidencia o erro de modos de vida das pessoas e da sociedade. Mobiliza energias de superação de situações que antes já se queria modificar, mas se estava acomodado. O profissional participa de um processo criativo com algumas intervenções técnicas e como regente, mas também assiste o jogo de outras intervenções e dinâmicas sobre as quais não tem nenhum controle. Acolhe-as e, a partir delas, reorienta suas ações. Há uma surpresa em cada processo terapêutico. Como a médica norte americana Rachel Naomi Remen (1998) afirma: é como se o profissional de saúde estivesse na primeira fila do teatro da vida.

As pessoas e famílias, que já viveram este confuso e denso processo das situações de aflição e adoecimento mais graves, sabem a importância e a profundidade deste agir profissional como regente de uma criação cheia de arte. Por isto, o trabalho em saúde é ainda muito valorizado socialmente, mesmo com as tantas mazelas revoltantes dos serviços existentes. Apesar da mercantilização e burocratização do trabalho em saúde, a população insiste ainda em associá-lo à ideia de sacerdócio, que enfatiza sua dimensão sagrada (aquilo que toca nos nebulosos fundamentos mais essenciais da vida humana). Muitos profissionais, tomados pela lógica tecnicista que vê o seu trabalho como o de um mecânico de gente em uma linha de montagem burocratizada e rotinizada, estranham este tipo de valorização. Há, porém, uma grande verdade nesta percepção popular.

A surpreendente potencialidade do encontro terapêutico e o seu grande reconhecimento e valorização pela população são fundamentos para a postura arrogante e soberba de muitos profissionais de saúde, que passam a ter uma atitude de distinção aristocrática e a usarem este poder para conseguir privilégios. Reconhecer este poder presente no trabalho em saúde é importante para enfrentar seus desvios.

O significado profundo do trabalho em saúde é a sua grandeza, mas também o seu fardo. As pessoas se tornam exigentes e intolerantes quando os profissionais desconsideram estas implicações humanas sutis presentes em cada problema de saúde, do tratamento de uma simples cárie em um dente incisivo ao enfrentamento de um câncer avançado no patriarca da família. Aceita-se que o vendedor da padaria, o gerente do banco, o dono da oficina mecânica ou o funcionário da empresa de telefonia atuem de forma centrada nos interesses de sua empresa e restrita à demanda específica feita. Mas para o profissional de saúde, isto não acontece. As exigências são maiores.

Diante de tanta complexidade e exigência do trabalho em saúde, muitas correntes teóricas, voltadas para ampliar os resultados, se formaram e se conflitam nos serviços. Cada profissão do setor saúde enfatiza uma perspectiva de ação e entende pouco as perspectivas das outras profissões. O trabalho em saúde é, então, carregado de disputas, que estão em cada equipe e até na mente de cada profissional. Ações bem planejadas e feitas com carinho fracassam e, muitas vezes, as pessoas em cuidado manifestam sua insatisfação de forma irritada e agressiva, pois as emoções costumam estar exacerbadas. A importância social do trabalho em saúde faz com que muitos grupos políticos e econômicos o queiram usar para seus interesses, gerando frequentes desmandos e injustiças. Neste ambiente cheio de disputas, insuficiências e agressividades, o gosto e a poesia podem ficar extremamente embaçados. Há períodos em que é preciso confiar em vivências anteriores marcantes para continuar acreditando no sentido do trabalho. E, principalmente, é sempre necessário buscar uma sabedoria que consiga superar a submissão mental às fortes emoções trazidas pelas tensões, saindo da atitude usual de lamúria e vitimização para deixar a capacidade de percepção poética se manifestar.

Muitos estudantes, que entram nas faculdades do setor saúde, não imaginam a gravidade de suas escolhas de vida profissional. Entram em um campo que grande parte da população vê como sagrado. Um trabalho marcado por uma intensa complexidade técnica e humana e que abre para possibilidades muito ricas e diversas de contribuição para a vida das pessoas e da sociedade. Um trabalho que pode ser muito desafiante, dinâmico e criativo se esta complexidade for assumida com reverência. Um trabalho em que cabem muito gosto e poesia, mas também carregado de densas exigências simbólicas. 





01 junho 2013

Viagem às terras geladas (de corações quentes)

Ernande Valentin do Prado

Tudo começou há bastante tempo. Foi bem planejado. Intenção: conhecer o trabalho da Liga de Educação em Saúde da FURGS. Amélia garantiu que faziam um trabalho excepcional, diferenciado, fazendo Educação Popular do modo como acreditávamos.
Uma viagem de sete dias, para um terra gelada (Rio Grande, no extremo sul do Brasil) e mais Pelotas. Em principio não me agradava muito, apesar das referências. Mas lá fui por confiança em Amélia e Julio, outro conspirador (do bem). Horas de viagem entre Paripiranga e Aracaju, outras horas até Porto Alegre, pensando na blusa que esqueci em casa. E mais tempo no ônibus entre Porto Alegre e Rio Grande. Mas cheguei.
 Na rodoviária um dos “meninos” me esperava (Arnildo), e tudo começou a mudar.

NO LAR DOS IDOSOS
Da rodoviária, Arnildo levou-me para o lar dos idosos, que eles chamam de Asilo lá no sul. Um grupo de estudantes já esperava. Encontramo-nos no portaria, onde estavam sentados com as pessoas, conversando sem compromisso. Isso já me impressionou muito.
“Como assim, estudantes de saúde conversando sem compromisso, sem ensinar nada, sem dizer como o outro deve viver sua dor ou sua saúde?” Isso já não é normal.
Fiquei na espreita, esperando as mesmas coisas de sempre, as mesmas conversas, a mesma destilação de teorias, de citações de Paulo Freire. Pensei. “Daqui a pouco começa”.
Aí, entramos. Fomos para uma sala de reunião (se bem que essa não é a palavra certa). Os “meninos” e as “meninas”, uns oito ou dez (não contei) saíram pelo prédio, enorme, convidando as pessoas para conversar. Não abrigaram ninguém a ir, não impuseram com sua autoridade de estudantes de saúde que têm coisas novas para ensinar. Foi quem quis ir. Reuniram-se umas dez pessoas. Entre eles apenas uma mulher. Entre os estudantes apenas dois homens.
Pensei: “é agora que vão começar a dar ordens, ensinar as regras e a importância de respeitá-las para o bem viver”. Mas começou a demorar. Os estudantes foram se apresentando na ordem em que estavam e sentavam entre os moradores do lar. Os morados também falavam, contavam como eram, de onde vieram, seus gostos. Percebia-se que não era a primeira vez que faziam isso, que contavam suas vidas.
Os meninos e meninas, jovens entre o primeiro e o quarto ano do curso de Medicina, ainda tiveram a intenção de organizar uma ordem, um sequência lógica de falas, mas em instantes perceberam que não era isso que as pessoas precisavam ou queriam.
Entendi que desejavam mostrar um trabalho organizado para o visitante da Bahia, mas não se incomodaram quando os idosos quebraram com a ordem, a sequência e as suas intenções.  Alguns entravam e saiam para fumar (e ninguém falava nada). Ficamos por ali ouvindo as histórias de anos de vida vivida, sem ninguém julgar se foram bem ou mal vividas, conversando, permitindo-se ser tocado por aquelas vidas, sem condenar, sem impor. Era um sonho. Estudantes de saúde não se impondo, não prescrevendo.
Já estava maravilhado, mas mesmo assim pensei:”alguém vai falar do cigarro daquela senhora”. Mas fomos embora para próxima atividade sem ninguém falar nada.

A LIGA DE EDUCAÇÃO EM SAÚDE

Saímos do lar dos idosos e fomos para o prédio da Fundação Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FURGS). Nele, fui informado, aconteceria a reunião da Liga de Educação em Saúde. Umas 15 pessoas reunidas e desculparam-se por ter ido pouca gente, pois estão em período de provas. Alguns já de férias, e viajaram para casa.
Como assim, disse eu espantado, tem mais gente do que isso?
Tem, disseram, hoje só veio metade.
Cada um se apresentou, contou sua história, como foi parar nesta Liga, como a Liga foi pensada e posta em prática. Não vou aqui discorrer sobre isso, pois não tenho competência para lembrar de tudo. Este é um texto sobre meu espanto e apenas isto. Essa história, da Liga, cabe à outra e outros contar. Mas uma coisa devo dizer, ninguém, como no lar dos idosos, obedeceu regras ou ordens de falas estruturadas e certinhas, como num “teatro” de Educação Popular em Saúde.
Primeiro espanto – a Liga nasceu da iniciativa dos próprios estudantes. Não foi da cabeça de um professor esquisito (no bom sentido). Estudantes inconformados como o modo de vivenciar a saúde no curso de Medicina tomaram a iniciativa de reunir outras pessoas para pensar saídas e soluções. Poderiam ter saído do curso, mas acreditaram que existe algo mais do que o modo hegemônico de fazer. Apostaram e outros foram se juntando. Bonito demais um depoimento, que não tenho certeza de quem e nem se foi exatamente assim, mas é a ideia: “eu vi na fala deles uma chance de entender o tipo de médica que eu queria ser.”
Muito bonito e essa fala não veio de um formando, mas de uma primeiranista ao ouvir a fala de um secundanista.
Depoimentos como esse foram se somando e fui entendendo mais e mais e mais. Inclusive o professor, que os acompanha uma vez a cada 15 dias, deu seu depoimento, riquíssimo, contando sua trajetória também inusitada até chegar à Liga.
Segundo espanto – só tinha estudante de Medicina na sala. Quando acontece uma reunião de pessoas para falar de Educação em Saúde é normal ser uma iniciativa multidisciplinar. Mas esta não era. E não era por um motivo muito simples: não conseguiram ainda construir essa possibilidade, não por desejo de estarem sós, mas por dificuldades em dialogar, em ser aceito pelos outros cursos. Entendo perfeitamente isso. A gente (que não é médico ou médica) fica sempre com os dois pés atrás com médico ou estudantes de medicina. É como se tivessem o tempo todo que provar que estão bem intencionados.
Eu mesmo devo confessar que se soubesse que iria para um encontro apenas com estudantes de medicina pensaria mais de uma vez antes de aceitar. Mas que bom que fui engando, pois assim pude desfazer (e desfazer é mais difícil que fazer e muitas vezes mais importante) uma série de conceitos que fui desenvolvendo em minha vida sobre o ser médico e médica. Há vida na medicina. Sempre soube disso, mas não conseguia encontra nada além de exceções. Para mim a regra era sempre aquele profissional especialista em doenças que não via as pessoas.
Na verdade, isso é cada vez mais verdade para todos os profissionais de saúde e não exatamente para médicos. Mas algo esta mudando e esse grupo é um exemplo do que vem por aí.

O FIM
Foi uma visita de descobertas. Descobri paisagens lindas, frio que não é exatamente insuportável, afetos gratuitos que vivem por anos submersos até que emergem.
Conheci gente vivenciando a Educação Popular em Saúde e a construção cotidiana do SUS sem precisar de palco ou estreias monumentais em teatros municipais regrados a dinheiro sem dono.
Ainda existe vida, mesmo que por baixo de camadas cada vez maiores de cinzas.

Obrigado.

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