23 outubro 2015

A “VERDADE” IMAGINADA


Ernande Valentin do Prado

Para meu amigo Paulo,
com quem divido o gosto pela literatura.

          O primeiro livro que li foi Cem noites tapuias, da coleção vagalumes. A professora, na cidade de Arujá, São Paulo, onde cursei a quinta série, pediu que fizesse um resumo. Não foi coisa simples: primeiro, custava caro e meus pais não estava em uma situação financeira muito boa (aliás, acho que nunca tive na vida uma situação financeira boa, mas essa foi uma das piores), segundo porque não foi fácil encontrar, tive que percorrer várias livrarias. Terceiro, porque fazer resumo é muito chato.
      Depois descobri que existia uma biblioteca na cidade. Ficava longe, quase fora da cidade, no meio de uma mata ou bosque, não sei (em minha lembrança era uma mata, até um bicho preguiça eu vi no caminho). Lá descobri outros livros: menino de asas, o mistério do cinco estrelas, o escaravelho do diabo. Li todos, sem a professora pedir. Tomei gosto.
       Na adolescência, meu primeiro livro foi 2001 - Odisseia especial. Estava jogado em um canto da casa de minha avó materna. Ninguém sabia de quem era, peguei para mim. Foi muito interessante observar as diferenças entre a narrativa cinematográfica e a literatura. Por exemplo, no filme 2001, a famosa cena, de pouco segundos, em que o homem usando um osso como arma, conquista a natureza a sua volta, impondo-se sob os outros animais mais fortes, mais rápidos do que ele, e, em seguida o joga para alto e este gira até se transformar em uma espaçonave, é descrita em três páginas. Tomei gosto pela ficção científica desde então.
         O primeiro livro de literatura brasileira adulta foi Angústia, de Graciliano Ramos. Agora os autores começaram a ter importância, além das histórias. Foi com Angústia que descobri que uma história não precisava começar no começo e terminar no fim. Foi uma constatação que revolucionou meu modo de pensar.  Aliás, em literatura, as histórias não precisam necessariamente ter começo, meio e fim, não nesta ordem, mas esta é outra conversa. O engraçado é que o livro mais importante de minha vida, que é sem dúvida Angústia, não lembro onde, nem quando li pela primeira vez.
         No Pirapó, distrito de Apucarana, no Paraná, onde passei boa parte da adolescência, interessei-me por filosofia e tentei ler os clássicos, mas era muito difícil (não conseguia entender nada), então li um pouco de história e continuei na literatura, nos livros que haviam disponíveis na biblioteca da escola, depois descobri a biblioteca pública do bairro 28, em Apucarana – ia quando dava. Nesta época lia um livro de cada vez e de vez em quando.
      Depois de sair do quartel em 1989, (onde fui obrigado a ficar um ano, 28 dias e algumas horas), fui para Fazendo Rio Grande, Região Metropolitana de Curitiba. Lá fiz o segundo grau. Conheci o Paulo, o cara consumia leitura, sobretudo literatura, como consumia ar. Certa vez, olhando a capa do livro Grande Sertão Veredas, ele disse:
          - já leu?
         Não tinha lido, aliás, não tinha lido nada de Guimarães Rosa, ainda. Paulo disse: já li, é muito bom.
         Aliás, tem uma história ótima sobre livros de Guimarães Rosa:
        Chegou em minha mão o livro, Primeiras Histórias. Li, achei lindo, resolvi ficar com ele, ninguém sabia de fato quem era o dono. O livro ia sendo roubado por quem podia e achei que era hora dele achar um dono que o amaria para sempre. Certo dia, uma colega (Fátima), estava em casa, viu o livro, pegou, analisou e disse:
         - Esse livro é meu...
         - Como assim? Eu roubei do Marcelo?
         - Acho que o Marcelo Roubou de mim, disse ela, muito tranquila.
     Mas tudo bem, ladrões de livro, certamente vão para o céu.
         Outra história interessante:
       Estava na cada de um amigo, Adilson, professor de literatura. A parede do quarto tomada de livros, várias edições de um mesmo título de Machado de Assis (seu autor favorito). Segundo ele, edições diferentes tinha sua importância, nunca entendi qual, mas o Paulo também colecionada edições diferentes de uma mesma obra.
          Perguntei, como que fazendo sugestão:
        - Já ouviu falar daquele movimento de gente que abandona livro nas ruas, praças, para que outros achem?
           - Já! Disse ele, vivo procurando nas ruas, mas ainda não achei nenhum.
           Mas voltemos à nossa conversa.
         Em Curitiba havia (acho que ainda há), uma biblioteca estadual maravilhosa. Lá ia toda semana ou ao menos há cada 15 dias. Com o tempo íamos eu e Paulo. Nela vivi experiências profundas: passei 45 dias cavalgando pelo interior do Minas Gerais, com os jagunços de Grande Sertão Veredas, sempre à espreita de uma tocaia. Com Lívia, passei 15 dias morando à beira mar, esperando a inevitável tragédia com Guma. Ajudei nas buscas do corpo em alto mar, observando as águas cor de chumbo do Mar Morto de Amado Batista. No Rio Grande do Sul senti o calor me sufocar no interior da cabana de Ana Terra, pouco antes dela se entregar ao amor de sua vida e ter um filho ilegítimo que mudaria sua vida e de todo o povo gaúcho. Com Bebel, vaguei de bar em bar, de show em show, conheci artistas famosos, enchi a cara, cai na degradação em busca da fama perdida, até ser comida pela cidade de Inácio de Loyola Brandão. Com Domingos Pellegrini ajudei a desbravar as matas, as estradas lamacentas da Terra Vermelha do norte do Paraná e a fundar a cidade de Londrina.
           Paulo, certa vez disse:
           - Melhor não ler muito rápido. Literatura a gente tem que saborear aos poucos.
           Lia muito rápido porque passava tempo demais nos ônibus ou esperando os ônibus (não acredite quando dizem que em Curitiba o transporte é bom – pode ser melhor que de outros lugares, mas bom não é). Ia para metalúrgica lendo, voltava lendo. Se pegava a fila do banco (adorava) passava horas lendo. Daí lia com facilidade três livros a cada 14 dias, tempo máximo de empréstimo, número máximo de livro que se podia pegar de cada vez, naquela época. Lia um, terminava e começava outro. Mas Paulo disse:
           - Leia três de uma vez.
           - Mas não mistura as histórias? Quis saber.
           - Eu leio cinco de cada vez, disse ele.
          No início não foi muito fácil, mas com o tempo dominei a técnica de ler três livros ao mesmo tempo. Tomava o cuidado de escolher um de cada assunto: literatura, sociologia ou história, biografia, ou qualquer outra coisa.
          Nesta conta não entravam os livros obrigatórios da escola. Os que tinha que ler por obrigação. Aliás, eu e Paulo quase cursamos letras, mas a ideia de ser obrigados a ler José de Alencar nos apavorava. Juntos quase fizemos muitos outros cursos universitários, mas acabamos mesmo é trabalhando de pedreiros e fazendo o curso de Auxiliar de Enfermagem.
           Uma noite, na aula de literatura, descobrimos que a professora havia cursado letras e nunca tinha ouvido falar em Graciliano Ramos. Espantado e Indignado, com a fina ironia extremamente ácida, Paulo perguntou:
            - Em que faculdade a senhora se formou mesmo?
           Depois disso ela não conseguia mais dar aula, ao menos em nossa turma. Mas essa turma era mesmo difícil. Paulo, com frequência e sem nenhum esforço, sabia mais do que quase todos os professores, em qualquer assunto e disciplina e constantemente os auxiliava nas dificuldades (ser professora é muito difícil).
         Paulo falava de muitas coisas ao mesmo tempo, não se perdia em nenhum assunto, conseguia dar continuidade em todos, fechava todas as janelas que abria, não deixa pontas soltas. Sabia de literatura, inclusive da bíblia e debatia com as testemunhas de Jeová no domingo pela manhã. De minha casa, as vezes, observava as testemunhas entrando numa fria no portão da cada dele. No grupo de jovens, no sábado à noite, comovia todos com apresentações bem elaboradas.
          Um dia Paulo fez as contas:
         - Se eu ler x livros por semana, durante x anos, vou ler x livros durante a vida. É muito pouco, por isso, não posso perder tempo com Paulo Coelho.
      Durante a faculdade de Enfermagem, ao menos nos três primeiros anos, continuei lendo ao menos três livros de literatura por mês, e ainda dava conta de ler tudo que me pediam, antes dos prazos. Depois fui me concentrando nos livros de saúde coletiva. Faz tempo que não leio literatura.
        Estes dias foi tomado por um violento desejo de ler Androides sonham com ovelhas elétricas? (na biblioteca de Curitiba, esse livro nunca estava disponível). Gostei. Sempre tive muito preconceito com literatura norte americana (com exceções como Edgar Lawrence "E. L." Doctorow, de quem li várias vezes: Ragtime, Billy Bathgate e O Livro de Daniel). Aprendi com Paulo que Sidney Sheldon, para citar um autor da moda na época, e seus derivados, era uma literatura de segunda ou terceira linha, que a literatura de verdade, aquela de nível, estava na América Latina: Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e no Brasil, é claro.
         Mas ler o livro de Philip K. Dick me deu imensa alegria, apesar da história ser angustiante e perturbadora. Ele morreu muito jovem e possivelmente com pouca grana. Nos anos oitenta ele recursou 400 mil para novelizar um filme de hollywood (baseado em sua própria obra) e relançou a obra original, ganhando apenas 12 mil. Para justificar disse, não exatamente com essas palavras:
             - Não estava precisando de dinheiro, já havia pago todas as prestações de meu aparelho de som.
           Depois deste livro, lembrei-me que tenho uma dívida com os Russos, por isso comecei a ler Guerra e Paz de Liev Tolstói. Lá pelas tantas, na página 37 da versão digital (que é péssima – não leiam), Pedro, um entre centenas de personagens, disse:
              [...] em conclusão, dizia de si para consigo: «Todas estas palavras de honra são coisas convencionais, sem qualquer fundamento sério, sobretudo quando uma pessoa pensa que amanhã pode estar morta ou em circunstâncias tais que as palavras de honra e desonra não tenham o mais pequeno significado.» Pedro costumava.
            Por causa disso, lembrei que a literatura ou a imaginação, antecipa-se à ciência, a tecnologia, a filosofia, a sociologia. Há diversos argumentos que tentam provam isso, e outros tantos estudos (que o povo da ciência não vai aceitar, mas não me importo com a verdade, como diz Maturana). Essa falta de perspectiva no amanhã, que Pedro, personagem de Tolsti, evoca, é justamente um dos argumentos centrais no livro, A corrosão do caráter, de Sennett e também é tratado no livro, A sociedade individualizada, de Bouman. Eles discutem a degeneração social, a degradação das relações sociais na era da globalização, a partir da noção de que não há amanhã, de que tudo é provisório, portanto, não se pode (ou não é viável) manter compromissos por muito tempo.
            Enfim, a literatura antecipou em pelo menos 100 anos essa percepção, e centenas de outras. Parece que o poder da imaginação (precedido ou sucedido de observação da realidade) não fica devendo nada as reflexões cientificas e/ou filosóficas.

 [Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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