Ernande
Valentin do Prado
Para
meu amigo Paulo,
com
quem divido o gosto pela literatura.
O primeiro livro que li foi Cem noites tapuias, da coleção
vagalumes. A professora, na cidade de
Arujá, São Paulo, onde cursei a quinta série, pediu que fizesse um resumo. Não foi coisa simples: primeiro, custava caro e meus pais não estava em
uma situação financeira muito boa (aliás, acho que nunca tive na vida uma
situação financeira boa, mas essa foi uma das piores), segundo porque não foi
fácil encontrar, tive que percorrer várias livrarias. Terceiro, porque fazer
resumo é muito chato.
Depois descobri que existia uma biblioteca na cidade.
Ficava longe, quase fora da cidade, no meio de uma mata ou bosque, não sei (em
minha lembrança era uma mata, até um bicho preguiça eu vi no caminho). Lá
descobri outros livros: menino de asas, o mistério do cinco estrelas, o
escaravelho do diabo. Li todos, sem a professora pedir. Tomei gosto.
Na adolescência, meu primeiro livro foi 2001 - Odisseia
especial. Estava jogado em um canto da casa de minha avó materna. Ninguém sabia
de quem era, peguei para mim. Foi muito
interessante observar as diferenças entre a narrativa cinematográfica e a
literatura. Por exemplo, no filme 2001, a famosa cena, de pouco segundos, em
que o homem usando um osso como arma, conquista a natureza a sua volta,
impondo-se sob os outros animais mais fortes, mais rápidos do que ele, e, em
seguida o joga para alto e este gira até se transformar em uma espaçonave, é
descrita em três páginas. Tomei gosto pela ficção científica desde então.
O primeiro livro de literatura brasileira adulta foi Angústia,
de Graciliano Ramos. Agora os autores começaram a ter importância, além das
histórias. Foi com Angústia que descobri que uma história não precisava começar
no começo e terminar no fim. Foi uma
constatação que revolucionou meu modo de pensar. Aliás, em literatura, as histórias não
precisam necessariamente ter começo, meio e fim, não nesta ordem, mas esta é
outra conversa. O engraçado é que o livro mais importante de minha vida, que é
sem dúvida Angústia, não lembro onde, nem quando li pela primeira vez.
No Pirapó,
distrito de Apucarana, no Paraná, onde passei boa parte da adolescência,
interessei-me por filosofia e tentei ler os clássicos, mas era muito difícil (não conseguia entender nada), então li
um pouco de história e continuei na literatura, nos livros que haviam
disponíveis na biblioteca da escola, depois descobri a biblioteca pública do bairro
28, em Apucarana – ia quando dava. Nesta época lia um livro de cada vez e
de vez em quando.
Depois de sair do quartel em 1989, (onde fui obrigado a
ficar um ano, 28 dias e algumas horas), fui para Fazendo Rio Grande, Região
Metropolitana de Curitiba. Lá fiz o segundo grau. Conheci o Paulo, o cara consumia leitura, sobretudo literatura,
como consumia ar. Certa vez, olhando a capa do livro Grande Sertão Veredas, ele
disse:
- já leu?
Não tinha lido, aliás, não tinha lido nada de Guimarães
Rosa, ainda. Paulo disse: já li, é muito bom.
Aliás, tem uma história ótima sobre livros de Guimarães
Rosa:
Chegou em minha mão o livro, Primeiras Histórias. Li,
achei lindo, resolvi ficar com ele, ninguém sabia de fato quem era o dono. O
livro ia sendo roubado por quem podia e achei que era hora dele achar um dono
que o amaria para sempre. Certo dia, uma colega (Fátima), estava em casa, viu o
livro, pegou, analisou e disse:
- Esse livro é meu...
- Como assim? Eu roubei do Marcelo?
- Acho que o Marcelo Roubou de mim, disse ela, muito tranquila.
Mas tudo bem, ladrões de livro, certamente vão para o
céu.
Outra história interessante:
Estava na cada de um amigo, Adilson, professor de
literatura. A parede do quarto tomada de livros, várias edições de um mesmo título de Machado de Assis (seu
autor favorito). Segundo ele, edições diferentes tinha sua importância, nunca
entendi qual, mas o Paulo também colecionada edições diferentes de uma mesma
obra.
Perguntei, como que fazendo sugestão:
- Já ouviu falar daquele movimento de gente que abandona
livro nas ruas, praças, para que outros achem?
- Já! Disse ele, vivo procurando nas ruas, mas ainda não
achei nenhum.
Mas voltemos à
nossa conversa.
Em Curitiba havia (acho que ainda há), uma biblioteca estadual maravilhosa. Lá ia toda semana ou ao menos há cada 15 dias. Com o tempo íamos eu e Paulo. Nela vivi experiências profundas: passei 45 dias cavalgando pelo interior do Minas Gerais, com os jagunços de Grande Sertão Veredas, sempre à espreita de uma tocaia. Com Lívia, passei 15 dias morando à beira mar, esperando a inevitável tragédia com Guma. Ajudei nas buscas do corpo em alto mar, observando as águas cor de chumbo do Mar Morto de Amado Batista. No Rio Grande do Sul senti o calor me sufocar no interior da cabana de Ana Terra, pouco antes dela se entregar ao amor de sua vida e ter um filho ilegítimo que mudaria sua vida e de todo o povo gaúcho. Com Bebel, vaguei de bar em bar, de show em show, conheci artistas famosos, enchi a cara, cai na degradação em busca da fama perdida, até ser comida pela cidade de Inácio de Loyola Brandão. Com Domingos Pellegrini ajudei a desbravar as matas, as estradas lamacentas da Terra Vermelha do norte do Paraná e a fundar a cidade de Londrina.
Em Curitiba havia (acho que ainda há), uma biblioteca estadual maravilhosa. Lá ia toda semana ou ao menos há cada 15 dias. Com o tempo íamos eu e Paulo. Nela vivi experiências profundas: passei 45 dias cavalgando pelo interior do Minas Gerais, com os jagunços de Grande Sertão Veredas, sempre à espreita de uma tocaia. Com Lívia, passei 15 dias morando à beira mar, esperando a inevitável tragédia com Guma. Ajudei nas buscas do corpo em alto mar, observando as águas cor de chumbo do Mar Morto de Amado Batista. No Rio Grande do Sul senti o calor me sufocar no interior da cabana de Ana Terra, pouco antes dela se entregar ao amor de sua vida e ter um filho ilegítimo que mudaria sua vida e de todo o povo gaúcho. Com Bebel, vaguei de bar em bar, de show em show, conheci artistas famosos, enchi a cara, cai na degradação em busca da fama perdida, até ser comida pela cidade de Inácio de Loyola Brandão. Com Domingos Pellegrini ajudei a desbravar as matas, as estradas lamacentas da Terra Vermelha do norte do Paraná e a fundar a cidade de Londrina.
Paulo, certa vez disse:
- Melhor não ler muito rápido. Literatura a gente tem que
saborear aos poucos.
Lia muito
rápido porque passava tempo demais nos ônibus ou esperando os ônibus (não acredite quando dizem que em
Curitiba o transporte é bom – pode ser melhor que de outros lugares, mas bom
não é). Ia para metalúrgica lendo, voltava lendo. Se pegava a fila do banco
(adorava) passava horas lendo. Daí
lia com facilidade três livros a cada 14 dias, tempo máximo de empréstimo, número
máximo de livro que se podia pegar de cada vez, naquela época. Lia um,
terminava e começava outro. Mas Paulo disse:
- Leia três de uma vez.
- Mas não mistura as histórias? Quis saber.
- Eu leio cinco de cada vez, disse ele.
No início não foi muito fácil, mas com o tempo dominei a
técnica de ler três livros ao mesmo tempo. Tomava o cuidado de escolher um de
cada assunto: literatura, sociologia ou história, biografia, ou qualquer outra
coisa.
Nesta conta não entravam os livros obrigatórios da
escola. Os que tinha que ler por obrigação. Aliás, eu e Paulo quase cursamos
letras, mas a ideia de ser obrigados a ler José de Alencar nos apavorava. Juntos
quase fizemos muitos outros cursos universitários, mas acabamos mesmo é
trabalhando de pedreiros
e fazendo o curso de Auxiliar de Enfermagem.
Uma noite, na aula de literatura, descobrimos que a
professora havia cursado letras e nunca tinha ouvido falar em Graciliano Ramos.
Espantado e Indignado, com a fina ironia extremamente ácida, Paulo perguntou:
- Em que faculdade a senhora se formou mesmo?
Depois disso ela não conseguia mais dar aula, ao menos em
nossa turma. Mas essa turma era mesmo difícil. Paulo, com frequência e sem
nenhum esforço, sabia mais do que quase todos os professores, em qualquer
assunto e disciplina e constantemente os auxiliava nas dificuldades (ser
professora é muito difícil).
Paulo falava de muitas coisas ao mesmo tempo, não se
perdia em nenhum assunto, conseguia dar continuidade em todos, fechava todas as
janelas que abria, não deixa pontas soltas. Sabia de literatura, inclusive da
bíblia e debatia com as testemunhas de Jeová no domingo pela manhã. De minha
casa, as vezes, observava as testemunhas entrando numa fria no portão da cada
dele. No grupo de jovens, no sábado à noite, comovia todos com apresentações
bem elaboradas.
Um dia Paulo fez as contas:
- Se eu ler x livros por semana, durante x anos, vou ler
x livros durante a vida. É muito pouco, por isso, não posso perder tempo com
Paulo Coelho.
Durante a faculdade de Enfermagem, ao menos nos três
primeiros anos, continuei lendo ao menos três livros de literatura por mês, e
ainda dava conta de ler tudo que me pediam, antes dos prazos. Depois fui me
concentrando nos livros de saúde coletiva. Faz tempo que não leio literatura.
Estes dias foi tomado por um violento desejo de ler Androides sonham com ovelhas elétricas?
(na biblioteca de Curitiba, esse livro nunca estava disponível). Gostei. Sempre
tive muito preconceito com literatura norte americana (com exceções como Edgar
Lawrence "E. L." Doctorow, de quem li várias vezes: Ragtime,
Billy Bathgate e O Livro de Daniel).
Aprendi com Paulo que Sidney Sheldon, para citar um autor da moda na
época, e seus derivados, era uma literatura de segunda ou terceira linha, que a
literatura de verdade, aquela de nível, estava na América Latina: Mario Vargas Llosa, Gabriel García
Márquez e no Brasil, é claro.
Mas ler o livro de Philip K. Dick me deu imensa alegria,
apesar da história ser angustiante e perturbadora. Ele morreu muito jovem e
possivelmente com pouca grana. Nos anos oitenta ele recursou 400 mil para
novelizar um filme de hollywood (baseado em sua própria obra) e relançou a obra
original, ganhando apenas 12 mil. Para justificar disse, não exatamente com
essas palavras:
- Não estava precisando de dinheiro, já havia pago todas
as prestações de meu aparelho de som.
Depois deste livro, lembrei-me que tenho uma dívida com os
Russos, por isso comecei a ler Guerra e Paz de Liev Tolstói. Lá pelas tantas,
na página 37 da versão digital (que é péssima – não leiam), Pedro, um entre centenas
de personagens, disse:
[...] em conclusão, dizia de si para consigo: «Todas estas palavras de honra são coisas convencionais, sem qualquer fundamento sério, sobretudo quando uma pessoa pensa que amanhã pode estar morta ou em circunstâncias tais que as palavras de honra e desonra não tenham o mais pequeno significado.» Pedro costumava.
Por causa disso, lembrei que a literatura ou a
imaginação, antecipa-se à ciência, a tecnologia, a filosofia, a sociologia. Há
diversos argumentos que tentam provam isso, e outros tantos estudos (que o povo
da ciência não vai aceitar, mas não me importo com a verdade, como diz
Maturana). Essa falta de perspectiva no amanhã, que Pedro, personagem de Tolsti,
evoca, é justamente um dos argumentos centrais no livro, A corrosão do caráter,
de Sennett e também é tratado no livro, A sociedade individualizada, de Bouman.
Eles discutem a degeneração social, a degradação das relações sociais na era da
globalização, a partir da noção de que não há amanhã, de que tudo é provisório,
portanto, não se pode (ou não é viável) manter compromissos por muito
tempo.
Enfim, a literatura antecipou em pelo menos 100 anos essa
percepção, e centenas de outras. Parece que o poder da imaginação (precedido ou
sucedido de observação da realidade) não fica devendo nada as reflexões
cientificas e/ou filosóficas.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]