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18 março 2016

QUANDO DECIDI SER ENFERMEIRO

Logo do Centro Acadêmico de Enfermagem da PUCPR
Ernande Valentin do Prado
 
Na minha frente tem uma mulher de 26 anos, morena, cabeços muitos pretos. Geralmente está alegre, animada, apesar de tudo. Hoje ela está nua, como esteve nos últimos dias, deitada de costas na cama, única posição em que consegue ficar. Da virilha até a coxa, do lado esquerda, uma ferida aberta em carne viva. São 45 dias de internação no sexto andar do Hospital Cajuru em Curitiba, Paraná.
Ela começa a dar sinais de que pode não estar aguentando mais, que está perdendo a fé que voltará para casa, que ficará de pé novamente. Já estou cuidando pessoalmente dela há 15 dias, mas não vejo nenhuma melhora da ferida, cada dia mais ela queixa-se de dores por qualquer movimento.
Meu nome é Ernande Valentin do Prado, eu sou Auxiliar de Enfermagem recém-formado e recém contratado nesta instituição. Trabalhar aqui, no hospital mais complicado da cidade foi opção minha, foi onde achei que poderia devolver à população o investimento que fizeram no meu curso.
Estamos em março do ano 2000, são 11 horas e 30 minutos, bem marcado no meu relógio. Mais uns minutos e começo a distribuir as mediações.  Mas no meio do caminho tinha uma pedra, quer dizer, uma enfermeira que gostava de lembrar-me, de tempos em tempos, que era minha chefe, que eu deveria lhe obedecer. Hoje parece ser um desses dias:
- Por que demora tanto no quarto 22?
- Se fosse lá às vezes, nem precisaria perguntar. Iria ver melhor que a mulher lá dentro, a família dela, precisa muita atenção.
- E seus outros pacientes, diz a enfermeira, esperando encontrar uma falha onde se agarrar.
- Todos estão sendo atendidos conforme suas necessidades. Nenhum caso tão sério hoje, digo sem disfarça minha irritação.
- Você não pode fazer isso...
- Isso o que, pergunto irritado.
- Dar atenção especial para os pacientes, diz a Enfermeira, sentada atrás de sua mesa, sem alterar a voz.
- E por que não, pergunto de forma agressiva, indignado.
- Por que temos que dar tempo igual aos pacientes. Responde calmamente a chefe.
- Quem disse isso, pergunto mais indignado ainda com uma afirmação que me parecia completamente sem pé nem cabeça.
E acrescento:
- Nem todas as pessoas são iguais, por isso não podem ser tratadas da mesma forma. Cada um tem um caso, uma história, não têm necessidades iguais, não podem ser tratadas de forma igual. Pessoas desiguais, com necessidades desiguais precisam ser tratadas de formas desiguais para serem iguais.
- Você pensa assim, disse a Enfermeira, ainda muito calma.
- Penso, respondo ainda mais irritado com a calma dela.
- Então vá fazer o curso de Enfermagem e aí vai poder tomas suas próprias decisões. Enquanto isso, quem decide aqui sou eu e deve dar o mesmo tempo para todos os pacientes.
- Então tá, respondo calmamente e saio da sala.
Três meses depois eu estava matriculado no curso de Enfermagem da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR para os íntimos. Antes tentei fazer um cursinho pré-vestibular muito barato. As aulas eram uma zona de prostituição no Centro de Curitiba. Matriculei-me e frequentei quase três semanas, não de forma contínua, mas juro que tentei ir às aulas. Alguns professores eram muito engraçados e me distraia com eles, embora não conseguisse decorar nada do que eles me pediam.
Outros só me revoltavam, como o de História. A primeira vez que ele me irritou foi quando, em uma aula sobre a segunda guerra mundial, disse que Hitler era um “Zé Mané fracassado na vida que endoidou, pirou o cabeção e fez uma guerra”.
Hitler, Zé Mané?
Achei um desrespeito muito grande à humanidade, à todas as pessoas exterminadas por ele. Como pode um Zé Mané ter praticado tanto mal, ter espalhado o terror e convencido uma nação inteira que matar Negros, Comunistas, Homossexuais e Judeus era o que melhoraria suas vidas?
Mas aguentei firme. Pensei – não preciso acreditar no que o professor fala, só responder a prova do vestibular. Porém, quando em uma aula sobre o comunismo, o professor disse que Karl Marx era um sujeito que explorava o sogro para se manter financeiramente, decidi que não frequentaria mais o cursinho. Inclusive pedi meu dinheiro de volta e tive muito trabalho para conseguir. Mesmo desconfiando que assim não conseguisse passar no vestibular.
Encarei três dias de provas sem escutar as baboseiras do professor de história, mas por conta disso não escutei mais nada, nem as aulas do engraçado professor de química.
Estava trabalhando à noite no dia da divulgação dos resultados do vestibular. As 19 horas e 30 minutos, estou na farmácia, que funcionava no subsolo. A funcionária está nervosa, ainda pouco me conhece e eu a ela. Atrás do guichê, mexe sem parar no computador e ignora minha presença. Estou ficando nervoso, mas quero evitar que minha fama de criador de caso se espalhe mais ainda.
- O que está acontecendo, pergunto com voz simpática (eu acho).
Outras pessoas estão chegando, já se forma uma fila.
- Meus filhos fizeram o vestibular, quero ver o resultado.
Fico curioso, também queria ver o resultado.
- Tem internet aí, pergunto já esquecendo o que estava esperando.
- Tem.
- Seus filhos fizeram vestibular para que?
- A menina fez para Enfermagem, respondeu ela.
- Eu também fiz, digo ansioso. Será que pode ver se meu nome está aí?
Ela olhou rápido meu nome no crachá, depois baixou os olhos e para tela do computador e disse:
- Passou.
- Tá falando sério?
- Tô. Seu nome não é Ernande Valentin do Prado?
- É...
- Passou, vai estudar com minha filha.
- Posso entrar aí e ver na tela, pergunto incrédulo e esperando ela dizer não. Na porta tinha uma placa com letras bem grande: não entre.
- Assim você quer demais, meu amigo. Você sabe que não pode entrar na farmácia. Disse isso abrindo a porta e dando a entender que eu poderia entrar.
Olho e meu nome estava na lista de aprovados.
Passei, vou ser enfermeiro.
Mesmo contente com a notícia, pensei: isso vai custar muito caro: serão quatro anos trabalhando à noite, estudando de dia sem dormir, economizando tudo que posso, juntando tudo para poder pagar as mensalidades.
Pelo menos, quando concluir, pensei iludido, vou poder organizar o trabalho como acredito que precisa ser feito.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

12 fevereiro 2016

SEU JOSÉ (DE PARIPIRANGA)

A minha família, do jeito que Seu José Conheceu. Ernande, 2009.
Ernande Valentin do Prado

Desde que sai do Paraná tenho andado por muitos lugares, conhecido muitas pessoas, de alguns lugares e de algumas pessoas já escrevi, de outras ainda vou escrever. Hoje acordei pensando em Seu José, que conheci em Paripiranga, na Bahia. É dele que vou falar.
Quando sai do Mato Grosso do Sul, pouco depois de ser demitido pelo prefeito de Rio Negro por não ter feito campanha pela sua reeleição, fui para Pedro Gomes, mas as condições de trabalho na cidade eram tão ruins, ganhava tão pouco que resolvi aceitar uma proposta para lecionar na Bahia, em uma faculdade particular. Fui na frente, havia urgência de começar no trabalho, depois Larissa vendeu as nossas coisas, que eram vendáveis, doou algumas, empacotou outras (que não podiam ser vendidas) e foi com nossas crianças.
Em Paripiranga aluguei uma casa enorme, mas não tinha nada para por dentro, nem cama, nem sofá, nem cadeiras (foram tempos muito difíceis). A proprietária da casa emprestou-me a geladeira, o fogão, uma mesa e três cadeiras. Comprei uma TV usada de 14 polegadas, muito ruim, sem foco e precisei regular a antena parabólica, que já estava instalada na casa. Foi por causa da antena que conheci seu José, que veio para ver o que tinha de errado com ela.
Seu José tinha mais ou menos um metro e sessenta de altura, um rosto cansado, mas muito confiável (lembrava meu pai, não sei exatamente porque), trabalhava com paciência exasperante, falava baixinho e muito arrastado. Não entendia praticamente nada que saia de sua boca, mas nos comunicávamos bem.
Ele veio um dia no fim da tarde, ligou a fita da antena até a televisão, tentou fazer a programação, mas não deu certo. Ficamos conversando muito tempo, quer dizer, ele falava, eu não entendia o que. Depois ele disse que precisaria subir no telhado, ver a antena, como já estava escuro, voltaria no dia seguinte com uma escada.
No fim da tarde do dia seguinte ele voltou, subiu no telhado, não arrumou nada, mas disse que voltaria no outro dia, que precisaria trocar uma peça ou coisa assim. Durante toda a semana ele veio: mexeu na tv, na antena, tomava um café, falava muito, trocava uma lâmpada, puxava outras conversas, instalava o chuveiro e não arrumava a antena.
Depois de uma semana, todos formos nos acostumando com ele, com seu jeito manso, confiado, presente. Nem acreditávamos que ele sabia arrumar antenas, mas paramos de nos importar, sentíamos falta quando ele não aparecia. Como a cidade era pequena, começamos a encontra-lo na rua, no supermercado, na pizzaria, na loja de ferragens. Quando Larissa saia, voltava dizendo:
- Vi seu José, ele te mandou um abraço. Disse que passa aqui para ver a antena qualquer hora.
E esse negócio foi se arrastando por dias, semanas, meses. Do trabalho que fez, pouco recebeu, parecia não querer concluir o negócio. As vezes ele fazia contas parciais e eu pagava um pouco.  Quando havia outros serviços elétricos em casa, ou nas outras três casas em que morei, Seu José era chamado, outras vezes chamávamos por nada. Ele não concluía as arrumações de verdade, mas era agradável a sua presença.
Depois de um tempo, comecei a ver Seu José bêbado na rua, ás vezes até caído na calçada. Descobri sua história: fora casado, tinha três filhos já adultos, fora o melhor eletricista da cidade, diziam. Larissa conheceu sua ex-mulher, uma senhora forte, de cabelos grisalhos, dizia que seu José era uma pessoa maravilhosa, mas não conseguia parar de beber, as vezes passava tempo sem tomar um gole, mas sempre tinha recaídas. Por isso estavam separados, mas sempre dava um jeito de olhar por dele.
Seu José morava em uma casinha de duas ou três peças, aonde eu desviava o caminho para passar em frente indo para o trabalho. Quando a porta estava fechada, era sinal de que tinha bebido. As vezes passava dois ou três dias bebendo, não trabalhava, a barba ficava grande, a fala mais arrastada e incompreensível. Quando aparecia com a barba feita, roupa limpa, sabia que estava sem beber. De início não deixava de me cumprimentar e conversar, mesmo estando alcoolizado, mais com o tempo as bebedeiras foram ficando mais longas, mais profundas, durando mais dias. Nesta época evitava me olhar, conversar comigo, ir em casa. As vezes fazia de conta que não me via no supermercado ou na rua.
Nos últimos meses, era frequente lhe encontrar caído entre o caminho de casa e o da padaria. Muito triste, ficava sem saber o que fazer, se o cumprimentava, tentava ajudar ou ignorava. Não conseguia me decidir o que lhe magoaria menos. Uma coisa parecia certa, Seu José desperta muito carinho nas pessoas que o conhecia. Da mesma forma que era comum lhe encontrar caído nas calçadas, era comum sempre ter alguém ajudando, pessoas carregando-o para casa. Em sua rua, cada vez que eu batia na porta (quando passava muito tempo sem o ver), os vizinhos sabiam informar sua situação, justificar, explicar, tudo com muito respeito, sem ofender, sem julgar.
Pouco antes de me mudar para Dias D’Ávila, estava pensando em como iria me despedir de Seu José, queria chama-los para um almoço, falar da mudança, pedir ajuda para arrumar as coisas, mas poucos dias antes recebi a notícia de sua morte. Meu primeiro pensamento foi:
- Agora não terá mais que aguentar o peso deste mundo.
Não fiquei exatamente triste, talvez até aliviado.
Hoje, sem nenhum motivo certo, acordei querendo contar essa história e, de alguma forma, homenagear Seu José.
Obrigado por não ter arrumado a antena de minha tv.


[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

23 outubro 2015

A “VERDADE” IMAGINADA


Ernande Valentin do Prado

Para meu amigo Paulo,
com quem divido o gosto pela literatura.

          O primeiro livro que li foi Cem noites tapuias, da coleção vagalumes. A professora, na cidade de Arujá, São Paulo, onde cursei a quinta série, pediu que fizesse um resumo. Não foi coisa simples: primeiro, custava caro e meus pais não estava em uma situação financeira muito boa (aliás, acho que nunca tive na vida uma situação financeira boa, mas essa foi uma das piores), segundo porque não foi fácil encontrar, tive que percorrer várias livrarias. Terceiro, porque fazer resumo é muito chato.
      Depois descobri que existia uma biblioteca na cidade. Ficava longe, quase fora da cidade, no meio de uma mata ou bosque, não sei (em minha lembrança era uma mata, até um bicho preguiça eu vi no caminho). Lá descobri outros livros: menino de asas, o mistério do cinco estrelas, o escaravelho do diabo. Li todos, sem a professora pedir. Tomei gosto.
       Na adolescência, meu primeiro livro foi 2001 - Odisseia especial. Estava jogado em um canto da casa de minha avó materna. Ninguém sabia de quem era, peguei para mim. Foi muito interessante observar as diferenças entre a narrativa cinematográfica e a literatura. Por exemplo, no filme 2001, a famosa cena, de pouco segundos, em que o homem usando um osso como arma, conquista a natureza a sua volta, impondo-se sob os outros animais mais fortes, mais rápidos do que ele, e, em seguida o joga para alto e este gira até se transformar em uma espaçonave, é descrita em três páginas. Tomei gosto pela ficção científica desde então.
         O primeiro livro de literatura brasileira adulta foi Angústia, de Graciliano Ramos. Agora os autores começaram a ter importância, além das histórias. Foi com Angústia que descobri que uma história não precisava começar no começo e terminar no fim. Foi uma constatação que revolucionou meu modo de pensar.  Aliás, em literatura, as histórias não precisam necessariamente ter começo, meio e fim, não nesta ordem, mas esta é outra conversa. O engraçado é que o livro mais importante de minha vida, que é sem dúvida Angústia, não lembro onde, nem quando li pela primeira vez.
         No Pirapó, distrito de Apucarana, no Paraná, onde passei boa parte da adolescência, interessei-me por filosofia e tentei ler os clássicos, mas era muito difícil (não conseguia entender nada), então li um pouco de história e continuei na literatura, nos livros que haviam disponíveis na biblioteca da escola, depois descobri a biblioteca pública do bairro 28, em Apucarana – ia quando dava. Nesta época lia um livro de cada vez e de vez em quando.
      Depois de sair do quartel em 1989, (onde fui obrigado a ficar um ano, 28 dias e algumas horas), fui para Fazendo Rio Grande, Região Metropolitana de Curitiba. Lá fiz o segundo grau. Conheci o Paulo, o cara consumia leitura, sobretudo literatura, como consumia ar. Certa vez, olhando a capa do livro Grande Sertão Veredas, ele disse:
          - já leu?
         Não tinha lido, aliás, não tinha lido nada de Guimarães Rosa, ainda. Paulo disse: já li, é muito bom.
         Aliás, tem uma história ótima sobre livros de Guimarães Rosa:
        Chegou em minha mão o livro, Primeiras Histórias. Li, achei lindo, resolvi ficar com ele, ninguém sabia de fato quem era o dono. O livro ia sendo roubado por quem podia e achei que era hora dele achar um dono que o amaria para sempre. Certo dia, uma colega (Fátima), estava em casa, viu o livro, pegou, analisou e disse:
         - Esse livro é meu...
         - Como assim? Eu roubei do Marcelo?
         - Acho que o Marcelo Roubou de mim, disse ela, muito tranquila.
     Mas tudo bem, ladrões de livro, certamente vão para o céu.
         Outra história interessante:
       Estava na cada de um amigo, Adilson, professor de literatura. A parede do quarto tomada de livros, várias edições de um mesmo título de Machado de Assis (seu autor favorito). Segundo ele, edições diferentes tinha sua importância, nunca entendi qual, mas o Paulo também colecionada edições diferentes de uma mesma obra.
          Perguntei, como que fazendo sugestão:
        - Já ouviu falar daquele movimento de gente que abandona livro nas ruas, praças, para que outros achem?
           - Já! Disse ele, vivo procurando nas ruas, mas ainda não achei nenhum.
           Mas voltemos à nossa conversa.
         Em Curitiba havia (acho que ainda há), uma biblioteca estadual maravilhosa. Lá ia toda semana ou ao menos há cada 15 dias. Com o tempo íamos eu e Paulo. Nela vivi experiências profundas: passei 45 dias cavalgando pelo interior do Minas Gerais, com os jagunços de Grande Sertão Veredas, sempre à espreita de uma tocaia. Com Lívia, passei 15 dias morando à beira mar, esperando a inevitável tragédia com Guma. Ajudei nas buscas do corpo em alto mar, observando as águas cor de chumbo do Mar Morto de Amado Batista. No Rio Grande do Sul senti o calor me sufocar no interior da cabana de Ana Terra, pouco antes dela se entregar ao amor de sua vida e ter um filho ilegítimo que mudaria sua vida e de todo o povo gaúcho. Com Bebel, vaguei de bar em bar, de show em show, conheci artistas famosos, enchi a cara, cai na degradação em busca da fama perdida, até ser comida pela cidade de Inácio de Loyola Brandão. Com Domingos Pellegrini ajudei a desbravar as matas, as estradas lamacentas da Terra Vermelha do norte do Paraná e a fundar a cidade de Londrina.
           Paulo, certa vez disse:
           - Melhor não ler muito rápido. Literatura a gente tem que saborear aos poucos.
           Lia muito rápido porque passava tempo demais nos ônibus ou esperando os ônibus (não acredite quando dizem que em Curitiba o transporte é bom – pode ser melhor que de outros lugares, mas bom não é). Ia para metalúrgica lendo, voltava lendo. Se pegava a fila do banco (adorava) passava horas lendo. Daí lia com facilidade três livros a cada 14 dias, tempo máximo de empréstimo, número máximo de livro que se podia pegar de cada vez, naquela época. Lia um, terminava e começava outro. Mas Paulo disse:
           - Leia três de uma vez.
           - Mas não mistura as histórias? Quis saber.
           - Eu leio cinco de cada vez, disse ele.
          No início não foi muito fácil, mas com o tempo dominei a técnica de ler três livros ao mesmo tempo. Tomava o cuidado de escolher um de cada assunto: literatura, sociologia ou história, biografia, ou qualquer outra coisa.
          Nesta conta não entravam os livros obrigatórios da escola. Os que tinha que ler por obrigação. Aliás, eu e Paulo quase cursamos letras, mas a ideia de ser obrigados a ler José de Alencar nos apavorava. Juntos quase fizemos muitos outros cursos universitários, mas acabamos mesmo é trabalhando de pedreiros e fazendo o curso de Auxiliar de Enfermagem.
           Uma noite, na aula de literatura, descobrimos que a professora havia cursado letras e nunca tinha ouvido falar em Graciliano Ramos. Espantado e Indignado, com a fina ironia extremamente ácida, Paulo perguntou:
            - Em que faculdade a senhora se formou mesmo?
           Depois disso ela não conseguia mais dar aula, ao menos em nossa turma. Mas essa turma era mesmo difícil. Paulo, com frequência e sem nenhum esforço, sabia mais do que quase todos os professores, em qualquer assunto e disciplina e constantemente os auxiliava nas dificuldades (ser professora é muito difícil).
         Paulo falava de muitas coisas ao mesmo tempo, não se perdia em nenhum assunto, conseguia dar continuidade em todos, fechava todas as janelas que abria, não deixa pontas soltas. Sabia de literatura, inclusive da bíblia e debatia com as testemunhas de Jeová no domingo pela manhã. De minha casa, as vezes, observava as testemunhas entrando numa fria no portão da cada dele. No grupo de jovens, no sábado à noite, comovia todos com apresentações bem elaboradas.
          Um dia Paulo fez as contas:
         - Se eu ler x livros por semana, durante x anos, vou ler x livros durante a vida. É muito pouco, por isso, não posso perder tempo com Paulo Coelho.
      Durante a faculdade de Enfermagem, ao menos nos três primeiros anos, continuei lendo ao menos três livros de literatura por mês, e ainda dava conta de ler tudo que me pediam, antes dos prazos. Depois fui me concentrando nos livros de saúde coletiva. Faz tempo que não leio literatura.
        Estes dias foi tomado por um violento desejo de ler Androides sonham com ovelhas elétricas? (na biblioteca de Curitiba, esse livro nunca estava disponível). Gostei. Sempre tive muito preconceito com literatura norte americana (com exceções como Edgar Lawrence "E. L." Doctorow, de quem li várias vezes: Ragtime, Billy Bathgate e O Livro de Daniel). Aprendi com Paulo que Sidney Sheldon, para citar um autor da moda na época, e seus derivados, era uma literatura de segunda ou terceira linha, que a literatura de verdade, aquela de nível, estava na América Latina: Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e no Brasil, é claro.
         Mas ler o livro de Philip K. Dick me deu imensa alegria, apesar da história ser angustiante e perturbadora. Ele morreu muito jovem e possivelmente com pouca grana. Nos anos oitenta ele recursou 400 mil para novelizar um filme de hollywood (baseado em sua própria obra) e relançou a obra original, ganhando apenas 12 mil. Para justificar disse, não exatamente com essas palavras:
             - Não estava precisando de dinheiro, já havia pago todas as prestações de meu aparelho de som.
           Depois deste livro, lembrei-me que tenho uma dívida com os Russos, por isso comecei a ler Guerra e Paz de Liev Tolstói. Lá pelas tantas, na página 37 da versão digital (que é péssima – não leiam), Pedro, um entre centenas de personagens, disse:
              [...] em conclusão, dizia de si para consigo: «Todas estas palavras de honra são coisas convencionais, sem qualquer fundamento sério, sobretudo quando uma pessoa pensa que amanhã pode estar morta ou em circunstâncias tais que as palavras de honra e desonra não tenham o mais pequeno significado.» Pedro costumava.
            Por causa disso, lembrei que a literatura ou a imaginação, antecipa-se à ciência, a tecnologia, a filosofia, a sociologia. Há diversos argumentos que tentam provam isso, e outros tantos estudos (que o povo da ciência não vai aceitar, mas não me importo com a verdade, como diz Maturana). Essa falta de perspectiva no amanhã, que Pedro, personagem de Tolsti, evoca, é justamente um dos argumentos centrais no livro, A corrosão do caráter, de Sennett e também é tratado no livro, A sociedade individualizada, de Bouman. Eles discutem a degeneração social, a degradação das relações sociais na era da globalização, a partir da noção de que não há amanhã, de que tudo é provisório, portanto, não se pode (ou não é viável) manter compromissos por muito tempo.
            Enfim, a literatura antecipou em pelo menos 100 anos essa percepção, e centenas de outras. Parece que o poder da imaginação (precedido ou sucedido de observação da realidade) não fica devendo nada as reflexões cientificas e/ou filosóficas.

 [Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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