Da série: Internato
- Qual é a sua graça? – o paciente pergunta com a máscara e toda a dificuldade,
não entendi. Ele disse de novo com mais força – Qual a sua graça? -.
Sempre fico meio sem graça quando perguntam isso, me lembra
de outro paciente que não entendi a pergunta da “graça”. Expressão antiga, acho
que não tenho graça. Digo, - Mayara -. Ele fecha os olhos e murmura – nome
bonito.
Na mesma manhã, várias perguntas e anamnese eu seguro a mão
dele e ele me diz – Minha filha tem o mesmo nome que você - . Olha para mim em
um suspiro e fala – Eu estou com medo Letícia, ele olha para mim, não você não
é Maria, você é a estudante - . Digo que sim, digo minha graça. Ele diz – Eu
estou com medo Mayara, minha filha vem me visitar antes do procedimento, ela
vem fazer uma oração, sou evangélico, Mayara... – silêncio e eu sorrio – Qual a
sua religião Mayara? – digo: - sou de todas um pouco – e ele: - eu poderia ser
seu pai Mayara -.
Na hora do almoço, quando todos estávamos com fome foi a
hora que os aparelhos para fazer o exame no paciente chegaram. Precisávamos
sedar. Pressa para entubar. Mas espera, a hora da visita estava por começar e o
paciente não iria ver a sua filha, não ia fazer a oração. Sai correndo pela
UTI, avisar o médico para deixar o paciente conversar com a sua filha. O
procedimento era de urgência, mas nada mais urgente do que orar. Corri até o
leito dele e disse que ia dar tempo de ver a filha, rápido, alguns minutos, e
vi do lado de fora ela chegar e abraçar o pai, beijar a testa dele, abrir a
bíblia e ler algumas frases segurando a mão dele.
Ele diz antes da sedação: - Muito obrigado Mayara e sorri.
Corre a sedação. Tubo, 5, prepara tudo.
No final, o procedimento foi bem. Paciente respirando com o
tubo em AIRE (sem ventilação mecânica).
Dormiu toda a tarde. E almocei mais tarde.
No dia seguinte. Ele me disse: - Dormi um sono bom Maria,
não vi nada - . Eu respondo: - que bom!
– Ele diz mas não é Maria, é Mayara,
né? Digo que sim. Conversamos sobre Rio Grande, sobre como está o tempo lá
fora, sobre a vontade de viver, e ele me diz: - Antes eu não valorizava um copo
de água, Mayara, agora tudo que eu quero é tomar água, até o sabor é diferente
– e levanta um copo de água que foi liberado para ele tomar. Antes de sair do
quarto ele me diz: - temos que valorizar
as coisas pequenas, Mayara, não esqueça.
No meio da tarde precisamos fazer uma paracentese
diagnóstica. Explico para ele.
Ele diz: - É a primeira vez que você vai fazer?
Eu digo:
- Sim.
Ele:
- Vou ser sua cobaia, Mayara? -
Eu:
- Não, o médico vai estar do meu lado e vou tentar ser o mais gentil possível.
Ele:
- Mayara, eu entendo, pode aprender comigo.
Eu digo timidamente:
- Muito obrigada.
Ele:
- Eu estou com medo de novo, Mayara.
Eu:
- Mas dessa vez você vai ficar acordado.
Ele:
- Eu não gosto de agulhas.
Eu:
- Mas quem gosta? – e explico da forma mais simples que
consigo sobre o procedimento (uma paracentese).
Ele:
- Então você vai colocar uma torneira para tirar água da
minha barriga?
Eu:
- Mais ou menos isso.
Voam abraços,
Mayara Floss