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22 abril 2016

AÇÃO-RELFEXÃO (OU: SEU SEBASTIÃO, AS LARANJAS E A ENFERMEIRA)

Te vejo flores em você. Ernande, 2015.
Ernande Valentin do Prado

Mais um dia com fome, pensou seu Sebastião olhando suas três crianças magras no único quarto da casa. Ele havia terminado de contar uma história sobre a cobra faladeira, que deixou as crianças alertas, apesar de já tarde. A mulher, com os olhos fundos, muito verdes, estava em silencio, resignada no colchão surrado.
- Meninos, vocês estão com fome? Disse seu Sebastião, levantando-se de forma ligeira e inesperada.
As crianças não responderam, continuaram caladas, olhando-se entre si e para o silêncio da mãe no canto.
- Vi um pé de laranja carregadinho, bem perto daqui.
Os meninos ficaram animados e não era apenas pela chance de amenizar a fome que corroía seus estômagos, mas pela aventura de procurar laranjas com o pai no meio da noite. Geralmente não conviviam muito com ele, que trabalhava cuidando de gado a semana toda em uma fazenda não muito perto da cidade, enquanto elas ficavam com a mãe na cidade, porque precisavam estudar.
- Sem estudar vão repetir nossa sina, dizia a mulher.
Ele vinha no sábado, depois do almoço, geralmente com o pagamento da semana e comprava os mantimentos, mas esta semana seu patrão, Dr.  Varela, foi com a família para praia comer pitu e se esqueceu de deixar o dinheiro.
Criança é um bicho bobo demais, pensou seu Sebastião ao ver a alegria das crianças.
- Vou sair com as crianças por aí, disse seu Sebastião para a esposa deitada, sem ânimo para reagir. Apenas soprou muito baixo dos lábios:
- Tá!
E ao ver o marido e as crianças se arrumando disse, reunindo as poucas forças que parecia ter:
- Até quando a gente vai vive assim?
O marido não respondeu, mas sentiu no fundo de sua alma uma pontada de dor, vergonha por não conseguir manter a casa como deveria. Eta sofrimento do cão, pensou sozinho sem saber o que fazer, onde enfiar a cara.
Joana D’ac morava ao lado do salão paroquial, onde tem um enorme pé de laranja. Os galhos se estendendo por cima do muro. E as laranjas já estão bem grandes, apesar de ainda verdes, pesando e puxando os galhos mais finos para baixo.
Joana é Enfermeira recém-contratada para trabalhar na Unidade de Saúde do bairro aonde mora seu Sebastião, a esposa e as suas crianças. Tem só uma semana que está na cidade. Por volta das 23 horas ela ouviu barulhos, abriu a janela para ver melhor. Na rua escura um homem em pé na calçada orientava duas crianças a pegar laranjas verdes que pendiam para fora do quintal do salão paroquial. Já havia, junto aos seus pés, um monte bem grande das frutas, outra criança menor sentada brincando com elas, e as outras duas, sob o murro, continuava colhendo novas frutas.
Que absurdo! Pensou a moça: crianças a essa hora da noite roubando laranjas no terreno da Igreja. Ela ficou incomodada, pegou o telefone:
- Qual é mesmo o número da polícia? Falou consigo mesma, talvez tentando encontrar um motivo para deixar isso pra lá.
Voltou a janela, onde as crianças continuavam animadas fazendo algazarra enquanto o homem silencioso orientava a coleta das laranjas.
- Que tipo de pai permite crianças acordadas até essa hora, e pior, em pé num muro desta altura?
Joana estava indignada com esse absurdo: estão roubando laranjas, e verdes, ainda por cima. Absurdo, absurdo, absurdo. Em que mundo vivemos, meu Deus do céu, pensou ela ainda com o telefone na não, mas não digitou no número da PM.
A enfermeira voltou para cama, tentou dormir, mas perdeu o sono pensando na imagem das crianças subindo felizes no muro e de lá jogando laranjas para o pai.
No dia seguinte, logo pela manhã, Joana foi à missa e passou em frente à casa de seu Sebastião: uma pequena construção de poucos metros quadrados, menos de dois metros de altura. Lá estava seu Sebastião descascando laranjas e em sua volta as crianças e a esposa. Joana sentiu um aperto no coração, sem entender bem porque, mas sabia que não era coisa boa. Pensou de novo: em que mundo vivemos meu Deus?
Rezou incomodada, passou todo domingo incomodada e foi trabalhar incomodada e pensando nas palavras de um antigo professor da faculdade de enfermagem: “não ensino enfermeiras para verificar pressão e fazer curativos, ensino enfermeiras para mudar o mundo.”
Joana sabia no fundo de seu coração que precisava e podia fazer alguma coisa. Mas o que, o que poderia fazer. Como é que a enfermeira pode mudar o mundo?
Chegando no trabalho, na segunda-feira, Joana chamou os Agentes Comunitários de Saúde e perguntou:
- Quem trabalha na área perto da igreja católica?
- É a Raquel, responderam.
- E cadê ela, perguntou Joana, olhando em sua volta.
- Ainda não chegou.
- Então tá meia hora atrasada. Quando chegar pede para vir falar comigo.
Ao chegar, Raquel foi até a sala de Joana. A enfermeira pediu a ficha com as informações sobre seu Sebastião e sua família. Raquel foi buscar e na volta passou a relatar:
- Casa de alvenaria de dois cômodos, três filhos, não tem diabetes, nem hipertensão e a mulher não tá grávida. Não usam nenhuma medicação.
- E o que mais?
- Mais nada. Precisa mais?
- Qual a idade deles, de onde vieram, qual o peso das crianças, que vacinas tomaram, onde seu Sebastião trabalha, quanto ganha, sabe ler e escrever, onde as crianças estudam, têm parentes na cidade, a mulher fez pré-natal aqui, teve algum problema, eles recebem bolsa família ou algum outro auxilio social?
- Não sei de nada disso.
- Quanto tempo faz que trabalha de ACS?
- Cinco anos.
- E não conhece o pessoal da sua área?
- Conheço, sei tudo que tem na ficha.
- Não acha muito pouco o que tem na ficha? 
- Mas a outra enfermeira nunca pediu isso.
- Mas agora precisa. Vamos fazer o seguinte. Vá na casa deles agora e descubra tudo. Vou ficar esperando.
- Só isso?
- Não. Por que chegou atrasada hoje, aconteceu alguma coisa?
- Mas foi só meia hora.
- Se você tivesse todas as respostas para minhas perguntas eu não ia falar nada, mas você não soube responder as perguntas que fiz.
- Nossa, já vai começar pegando no meu pé?
- Você sabia que aquela família só tem laranja verde para comer?
- Você nem vai ficar trabalhando muito tempo aqui, todo mundo vai embora.
- Talvez não, mas enquanto estiver vou tentar mudar o mundo! E você vai me ajudar.
Joana ficou um tempo em silêncio, olhando Raquel em pé em sua frente, indecisa entre dizer mais alguma coisa ou sair batendo a porte.
- Mas por que?
- Vou ficar esperando você voltar com essas informações antes do almoço. É muito urgente.
Joana ficou só em sua sala, ainda incomodada por não saber como mudar o mundo, mas esperançosa, sabendo que acabaria descobrindo.
- Posso entrar, falou Marinalva, atrás de sua barriga de oito meses.
Joana sorriu, olhou a mulher nos olhos e pensou: vou começar fazendo a melhor consulta de pré-natal que se pode fazer.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

23 setembro 2015

O congresso que quero


1º Conferência Mundial Comunitária de Medicina de Família e Comunidade - um espaço que talvez um dia vire realidade...

Esse texto vai destoar um pouco dos outros. Mas queria de alguma forma exteriorizar um pouco desse espaço que venho sonhando. Queria que meu próximo congresso de medicina de família e comunidade fosse em família e comunidade. Melhor, se o congresso fosse de medicina rural queria que o congresso fosse na zona rural em parceria com a comunidade em um desses galpões do interior. Queria que fosse no meio com a participação popular. As palestras seriam mistas ora comunidade, ora meio acadêmico.

Esse congresso teria uma programação variada e a hospedagem seria na casa das pessoas da comunidade. Vamos discutir medicina de família e comunidade na comunidade, em comunidade. Reverter os lucros e gastos com a comunidade. A alimentação seria feita nos CTGs (Centro de Tradições Gaúcha, no sul), ou nos centros comunitários de cada cultura seria mãos juntas e não hotel chique em um mar de desigualdades. Não é sonho louco (só um pouco), mas uma boa logística, integração, segurança e liderança podem mudar a perspectiva.

O movimento disso tudo seria integrar os diferentes meios. Dividir um pouco desses conhecimento, abrir outros diálogos. Nesse meu sonho vejo as artesãs discutindo saúde com médicos e gestores. Seria vivenciar e não passar por congressos. Seria mudar perspectivas, imagina a ideia pelo mundo? Eu não conheceria a Índia eu viveria a realidade daquela comunidade, ou na China, ou qualquer lugar do mundo (claro que seria pontualmente, só um pouquinho, mas seria). Queria que no domingo quando o congresso terminasse as pessoas fossem para suas casas não só cheias de ideias, mas diferentes. Conhecimento diferentes, gente sabida (como diz o Eymard) e sabedorias. 

1º Congresso Comunitário do Morro!
 Penso também que seria complicado porque ao mesmo tempo que todos os holofotes estariam naquela comunidade depois eles apagariam e teríamos que lidar bem com isso. Não sei qual o impacto, não sei se é muito loucura, mas vejo também a loucura dos congressos engravatados falando de tudo com muita propriedade, lugares caros fora da minha realidade e fora da realidade da comunidade. Grandes coffee breaks, grandes aberturas, grandes hotéis, aparatos tecnológicos, bolsas produzidas nas grades fábricas (e o trabalho artesanal?)... Mas não vou deixar de sonhar algo mais tangível, mais comunidade, mais realidade. 
Imagino a chamada: venha conhecer Caratinga (em homenagem ao amigo Igor), venha conhecer a pequena praça central da cidade com menos de 100.000 habitantes, no interior do Estado de Minas Gerais. Só chegar lá já seria parte do aprendizado. Nem toda a população está nas grandes cidades, nos grandes centros. Ou "Congresso de Medicina de Família e Comunidade do morro da Maria Degolada" em Porto Alegre. O coffe break poderia ser feito no bar local, seria a comida da comunidade. Quem sabe poderíamos ter uma experiência de como é o trabalho rural em uma determinada região, uma palestra fundamental dada pelo agricultor local. 
1º Conferência Mundial Comunitária de Medicina de Família e Comunidade - Caratinga/MG
 Poderia ainda ter roda de benzedeiras e curandeiros locais. E uma vasta programação discutindo saúde e vida em saúde. Essas são as ideias dos congressos que quero ainda ver. Que apesar de sonho parecem mais realidade do que os que tenho participado. 

Voam abraços,
Mayara Floss

15 janeiro 2014

Sonhar

The false mirror - Rene Magritte (1928)

    Sentada na frente do computador, devo escrever. Escolhi um tema em meio aos meus estudos de otorrinolaringologia. Decidi que iria escrever sobre sonhos.

    Ontem, estava conversando com uma fisioterapeuta e ela me disse “Meu sonho era fazer medicina”, e depois continuou falando que não tinha tempo, dinheiro, e como parar para estudar. Eu querendo remediar disse para ao menos tentar o Exame Nacional do Ensino Médio esse ano, vai que dá... O mote para chegarmos no assunto foi a vontade dela fazer mestrado e aí ela falou “Comecei a fazer meu curso, até que gostei e fui fazendo, mas se eu pudesse, hoje...”.

    Outro dia estava sentada e um colega meu falou: “Você está fazendo o que muitas pessoas não tem coragem de fazer” sobre a minha saída no Brasil para um intercâmbio de um ano e meio. Conversei para ele tentar se inscrever quem sabe ele consegue também, ele apenas assentiu com a cabeça com um sorriso para me consolar de que ele iria “pensar no assunto”. Começo a ver quantas pessoas estão ainda “pensando no assunto” e percebo esse pensar no assunto pode demorar a vida inteira. 

    Impossível não lembrar da “febre, hemoptise e suores noturnos” do Manoel Bandeira falando da sua vida de tuberculose, seguido pelo verso: “A vida inteira que podia ter sido e não foi”. Deixo-me afundar na ideia de: ir por ir, fazer por fazer, viver por viver, e sonhar por sonhar. Fico triste pelos sonhos abandonados, e começo a pensar nos meus sonhos que ficaram para trás, alguns contra a minha vontade, outros por escolhas.

    Às vezes eu sento e pego esses sonhos com carinho, olhando para trás. Não com arrependimento nem pensando na vida que poderia ter sido e não foi. Os sonhos tiveram que ser escolhidos e abriram espaços para outros, outras vivências, outros caminhos. Penso, que talvez não possa ser uma mulher de todos os sonhos, nem de todos os meus sonhos, mas isso não me impede de ser uma mulher que sonha. Abrir mão de alguns, certamente, me deu forças para abrir asas para outros voos.

    Só não consigo sonhar por sonhar. Estar sentada e dizer: “Eu queria tanto fazer isso”. Não consigo usar o pretérito imperfeito e continuar parada. Nunca foi com a arquitetura exata, nem com os melhores materiais, mas não deixei, nem deixo de construir os meus sonhos. Não é fácil, certamente, a vida mecânica com as coisas no seu lugar, com o que nos adaptamos: bom dia, banho, um beijo, café-da-manhã, trabalho, um beijo, almoço, tchau, trabalho, boa noite, janta, dormir, sonhar, acordar e repetir. O sonho fica perdido no meio da rotina do dia e da noite.

      Há pouco ouvi de um grande escritor que ele só chegou onde chegou porque tudo na sua vida deu errado. Mas mesmo dando tudo errado, ele sorri porque no meio do caminho surgiram outros sonhos, outras reinvenções de si. Para poder sonhar, e não deixar os sonhos envelhecendo na estante da vida, é preciso se reinventar, arriscar a rotina, colocar tudo a perder (menos os seus sonhos). Aliás, estou me reinventando.

     Espero nunca demorar a minha vida inteira pensando nisso. Talvez, seja a vida inteira que poderia ter sido e não foi. Mas, talvez, na arquitetura inexata da construção dos sonhos espero estar erguendo alguns pilares, e não cultivando um terreno baldio de sonhos e vazios. 

     Para embalar este texto deixo essa música do John Lennon  "Life is just what happens to you, while your busy making other plans":



Voam abraços,
Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às Quartas-feiras]

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