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Macacos. Imagem capturada na internet, 2017. |
Ernande Valentin do Prado
Certa
vez, numa terra não muito distante, presenciei ação (supostamente) educativa.
De tudo que aconteceu, mais fortemente duas coisas ficaram martelando em minha
cabeça:
A
enfermeira, vendo que apenas duas mulheres estavam presentes, disse:
-
Veja só, duas mulheres, como o povo é interessado.
Uma,
das duas mulheres, depois que todos falaram o que queriam falar (meio que sem
notar elas por ali), disse:
-
Sempre me disseram que não podia dar água para o bebe, até os seis meses, mas
eu dava.
Todos
os profissionais presentes, inclusive o pessoal do Núcleo de Apoio a Saúde da
Família (NASF) e da gestão, os estudantes de enfermagem, de fisioterapia,
somando ao menos uns trinta, caíram na risada, como se o que a mulher falou
fosse uma piada.
Todos
falaram sobre o aleitamento materno e pensaram estar ensinando verdades
científicas inquestionáveis e que estas estavam sendo absolvidas, como água por
uma esponja. Cada grupo utilizando, com maestria e desenvoltura, suas
terminologias e vocábulos próprios.
No
mesmo dia, em outra Unidade de Saúde, constatei que os banheiros dos usuários
não eram limpados há pelo menos duas semanas, apesar de ter material de
limpeza, água e três pessoas contratadas e pagas em dia para fazer isso.
Somando a gerente da unidade, eram quatro as pessoas que não deveriam deixar
essa situação acontecer.
Uma
usuária indignada, neste dia, questionou a gerencia sobre o porquê daquela
imundice e ela, abrindo os braços em gesto de: “o que eu posso fazer?”,
simplesmente disse, parecendo já saber que os banheiros estavam daquele jeito:
“é o povo, minha filha”.
Duas
Unidades de saúde distintas, dois procedimentos idênticos: desresponsabilização
das obrigações profissionais e culpabilização dos usuários.
No
primeiro caso, da reunião em que participaram duas pessoas da comunidade,
acompanhei parte do planejamento e estranhei que deliberadamente as mulheres da
comunidade não foram convidadas, não ao menos de uma forma mobilizadora.
Optaram por restringir o acesso de quem não eram da área, de homens, de
mulheres que não fossem gestantes ou que não estivessem amamentando.
Pelo
levantamento chegaram ao número de mais ou menos doze pessoas, mesmo assim,
durante o período de mobilização optaram por não convidar algumas mulheres (a
explicação foi no mínimo estranhíssima). Várias tentativas de mobilização foram
boicotadas, como o folder feito pelas estudantes e impedidos de ser
distribuídos na comunidade, a indisposição em ir às casas das mulheres, entre
outras.
Aconteceu
o que se esperava: as mulheres não vieram ou não vieram na quantidade que os
profissionais julgavam adequado. Explicações para isso tem várias: choveu na
hora do evento, eram poucas mulheres convidadas e poucas sabiam do encontro,
nem todas puderam sair de casa na hora que os profissionais desejavam, entre
outras hipóteses. Porém a constatação foi única e objetiva, certeira e sem
possibilidade de questionamento: o povo não tem interesse na própria saúde.
O
encontro em si foi conduzido do emissor para o receptor, de quem sabe para quem
não sabe, do profissional para o usuário, sem possibilidade de diálogo. Cada
profissional ou grupo de profissionais ocupou seu espaço e falou. No encontro
estava uma pesquisadora em Educação em Saúde e outra responsável pelas ações de
educação em saúde do distrito sanitário, mesmo com todos esses conhecimentos
multiprofissionais: falaram praticamente sozinhas e para si mesmas. Um grupo
parecia competir com o outro para ver qual tinha o vocabulário mais
incompreensível: lactação, prolactina, alvéolo, ducto lactíferos, glândulas
mamárias, progesterona, retenção venosa, diafragma, lordose, escoliose, edema,
comer coisas com potássio, sucção, ocitocina, hipófise, entre outras coisas
mais cabeludas.
A
única coisa realmente interessante dita na reunião foi totalmente ignorada,
tratada como piada, ou seja, a fala da mulher da comunidade: “sempre me
disseram que não podia dar água para o bebê, até os seis meses, mas eu dava”.
Por
que ninguém quis ouvir o que a mulher disse, porque não se problematizou tal
afirmação, não discutiu, não procurou entender o que a mulher quis dizer?
A
reação dos presentes foi rir, como se aquilo fosse uma piada. Porém, passado o
susto inicial, dá para dizer que era sobre isso que Victor Valla falava nos
anos de 1990: nós não conseguimos compreender o que a população fala. Arrisco
ir mais além: não ouvimos o que o povo fala porque o consideramos inferiores e
não é possível dialogar com inferiores. Inferiores devem receber informações,
ordem, prescrições. Só se dialoga com iguais, diz Eymard Vasconcelos em um de
seus livros.
Essa
parece ser uma possível explicação do por que não conversamos com as pessoas,
mesmo quando dizemos que vamos fazer uma roda de conversa. O que fazemos é
monologar e talvez, se o humor e o tempo permitir, deixar que façam perguntas
para gente rir.
Eymard
Vasconcelos diz que existe um fosso entre o que a população sabe e o que os
profissionais sabem e que esses dois conhecimentos não dialogam. Profissionais
de saúde entendem que só o seu saber é verdadeiro e que o saber popular não tem
importância, é coisa para ser corrigida, é no máximo piada.
Talvez
por isso riram, não ouviram, não se importaram
talvez
por isso não se esforçaram, não compreenderam, não problematizaram
talvez
por isso nem se lembrem do que a mulher falou.
E a
culpabilização?
Não
será só para tentar aliviar a consciência, desresponsabilizar-se por suas
responsabilidades não cumpridas e talvez dormir tranquilos?
Parece
que na cabeça dos profissionais o povo é sempre culpado pelo que lhe acontece:
se o banheiro está sujo é porque ele sujou, portanto não precisa limpar, que
conviva com banheiro sujo.
O
mesmo raciocínio se aplica as eleições: cada povo tem o governo que merece, não
é assim que pensa quem acha que votou direito e é obrigado a conviver com as
consequências das escolhas erradas, que são sempre do povo?
O
fato de ter três profissionais contratados para fazer a limpeza, a gerencia da
UBS não se importar com o descaso dos faxineiros, os profissionais não se
preocuparem em mobilizar a população, significa que merecem os salários que
recebem?
O
fato dos profissionais, estudantes, falarem uma língua que só eles compreendem,
falarem muito e ouvirem pouco, significa que acham que sabem mais do que os
outros?
O
fato do povo não estar, aparentemente, interessado nos monólogos dos
profissionais sabidos, significa falta de interesse na própria saúde ou falta
de interesse no que os profissionais pensam que falam?
Será
que na raiz de tudo isso: não convidar, não ouvir, não limpar e culpabilizar,
não está o descaso com o outro, já que ele não é igual a mim, portanto menos
merecedor?
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]