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24 novembro 2017

TODOS SURDOS

Macacos. Imagem capturada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Certa vez, numa terra não muito distante, presenciei ação (supostamente) educativa. De tudo que aconteceu, mais fortemente duas coisas ficaram martelando em minha cabeça: 
A enfermeira, vendo que apenas duas mulheres estavam presentes, disse:
- Veja só, duas mulheres, como o povo é interessado.
Uma, das duas mulheres, depois que todos falaram o que queriam falar (meio que sem notar elas por ali), disse:
- Sempre me disseram que não podia dar água para o bebe, até os seis meses, mas eu dava.
Todos os profissionais presentes, inclusive o pessoal do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) e da gestão, os estudantes de enfermagem, de fisioterapia, somando ao menos uns trinta, caíram na risada, como se o que a mulher falou fosse uma piada.
Todos falaram sobre o aleitamento materno e pensaram estar ensinando verdades científicas inquestionáveis e que estas estavam sendo absolvidas, como água por uma esponja. Cada grupo utilizando, com maestria e desenvoltura, suas terminologias e vocábulos próprios.

No mesmo dia, em outra Unidade de Saúde, constatei que os banheiros dos usuários não eram limpados há pelo menos duas semanas, apesar de ter material de limpeza, água e três pessoas contratadas e pagas em dia para fazer isso. Somando a gerente da unidade, eram quatro as pessoas que não deveriam deixar essa situação acontecer.
Uma usuária indignada, neste dia, questionou a gerencia sobre o porquê daquela imundice e ela, abrindo os braços em gesto de: “o que eu posso fazer?”, simplesmente disse, parecendo já saber que os banheiros estavam daquele jeito: “é o povo, minha filha”.
Duas Unidades de saúde distintas, dois procedimentos idênticos: desresponsabilização das obrigações profissionais e culpabilização dos usuários.

No primeiro caso, da reunião em que participaram duas pessoas da comunidade, acompanhei parte do planejamento e estranhei que deliberadamente as mulheres da comunidade não foram convidadas, não ao menos de uma forma mobilizadora. Optaram por restringir o acesso de quem não eram da área, de homens, de mulheres que não fossem gestantes ou que não estivessem amamentando.
Pelo levantamento chegaram ao número de mais ou menos doze pessoas, mesmo assim, durante o período de mobilização optaram por não convidar algumas mulheres (a explicação foi no mínimo estranhíssima). Várias tentativas de mobilização foram boicotadas, como o folder feito pelas estudantes e impedidos de ser distribuídos na comunidade, a indisposição em ir às casas das mulheres, entre outras.
Aconteceu o que se esperava: as mulheres não vieram ou não vieram na quantidade que os profissionais julgavam adequado. Explicações para isso tem várias: choveu na hora do evento, eram poucas mulheres convidadas e poucas sabiam do encontro, nem todas puderam sair de casa na hora que os profissionais desejavam, entre outras hipóteses. Porém a constatação foi única e objetiva, certeira e sem possibilidade de questionamento: o povo não tem interesse na própria saúde.

O encontro em si foi conduzido do emissor para o receptor, de quem sabe para quem não sabe, do profissional para o usuário, sem possibilidade de diálogo. Cada profissional ou grupo de profissionais ocupou seu espaço e falou. No encontro estava uma pesquisadora em Educação em Saúde e outra responsável pelas ações de educação em saúde do distrito sanitário, mesmo com todos esses conhecimentos multiprofissionais: falaram praticamente sozinhas e para si mesmas. Um grupo parecia competir com o outro para ver qual tinha o vocabulário mais incompreensível: lactação, prolactina, alvéolo, ducto lactíferos, glândulas mamárias, progesterona, retenção venosa, diafragma, lordose, escoliose, edema, comer coisas com potássio, sucção, ocitocina, hipófise, entre outras coisas mais cabeludas.
A única coisa realmente interessante dita na reunião foi totalmente ignorada, tratada como piada, ou seja, a fala da mulher da comunidade: “sempre me disseram que não podia dar água para o bebê, até os seis meses, mas eu dava”.
Por que ninguém quis ouvir o que a mulher disse, porque não se problematizou tal afirmação, não discutiu, não procurou entender o que a mulher quis dizer?
A reação dos presentes foi rir, como se aquilo fosse uma piada. Porém, passado o susto inicial, dá para dizer que era sobre isso que Victor Valla falava nos anos de 1990: nós não conseguimos compreender o que a população fala. Arrisco ir mais além: não ouvimos o que o povo fala porque o consideramos inferiores e não é possível dialogar com inferiores. Inferiores devem receber informações, ordem, prescrições. Só se dialoga com iguais, diz Eymard Vasconcelos em um de seus livros.
Essa parece ser uma possível explicação do por que não conversamos com as pessoas, mesmo quando dizemos que vamos fazer uma roda de conversa. O que fazemos é monologar e talvez, se o humor e o tempo permitir, deixar que façam perguntas para gente rir.

Eymard Vasconcelos diz que existe um fosso entre o que a população sabe e o que os profissionais sabem e que esses dois conhecimentos não dialogam. Profissionais de saúde entendem que só o seu saber é verdadeiro e que o saber popular não tem importância, é coisa para ser corrigida, é no máximo piada.
Talvez por isso riram, não ouviram, não se importaram
talvez por isso não se esforçaram, não compreenderam, não problematizaram
talvez por isso nem se lembrem do que a mulher falou.

E a culpabilização?
Não será só para tentar aliviar a consciência, desresponsabilizar-se por suas responsabilidades não cumpridas e talvez dormir tranquilos?

Parece que na cabeça dos profissionais o povo é sempre culpado pelo que lhe acontece: se o banheiro está sujo é porque ele sujou, portanto não precisa limpar, que conviva com banheiro sujo.
O mesmo raciocínio se aplica as eleições: cada povo tem o governo que merece, não é assim que pensa quem acha que votou direito e é obrigado a conviver com as consequências das escolhas erradas, que são sempre do povo?
O fato de ter três profissionais contratados para fazer a limpeza, a gerencia da UBS não se importar com o descaso dos faxineiros, os profissionais não se preocuparem em mobilizar a população, significa que merecem os salários que recebem?
O fato dos profissionais, estudantes, falarem uma língua que só eles compreendem, falarem muito e ouvirem pouco, significa que acham que sabem mais do que os outros?
O fato do povo não estar, aparentemente, interessado nos monólogos dos profissionais sabidos, significa falta de interesse na própria saúde ou falta de interesse no que os profissionais pensam que falam?
Será que na raiz de tudo isso: não convidar, não ouvir, não limpar e culpabilizar, não está o descaso com o outro, já que ele não é igual a mim, portanto menos merecedor?


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

20 janeiro 2017

EDUCAÇÃO E COMUNICAÇÃO EM SAÚDE

Rádio na casa do Domingos. Ernande, 2017.
Ernande Valentin do Prado
É fácil confundir educação com comunicação e principalmente com informação. Ainda mais fácil é confundir comunicação com meios de comunicação. Aliás, parece fácil confundir comunicação com a própria vida ou com a forma como se leva a vida. Tudo passa pela comunicação: como se faz, como se olha, como se vê, o que se faz, como se relaciona com o outro, no singular e no coletivo. Uma das dificuldades em falar da comunicação diz respeito ao fato dela ser vivida tão intensamente que chega a ser natural e assim passar despercebida, como respirar e andar, como fala Prado, Santos e Cubas (2009).
A comunicação parece ser inata ao homem. Antes do bebê nascer já estão se comunicando com a mãe e está com ele. A comunicação se dá através de movimentos no útero, pequenos chutes, nas náuseas da gravidez. A mãe fala com o filho através da palavra, em diálogos infantis carinhosos, através do tato acariciando a barriga, alimentando-se de forma especial para beneficiar a futura criança. Ao nascer a comunicação entre pais e filhos complexifica-se e evolui de forma continua.
A fala, não necessariamente verbal, pode ter sido o primeiro passo do ser humano rumo à dominação do seu ambiente a da natureza. Cunha da Silva (2003) explica que o homo sapiens inventou uma linguagem para comunicar suas ideias e desejos e essa linguagem foi progressivamente enriquecendo-se. Dá para dizer que a comunicação interpessoal pode ter sido a principal mola do desenvolvimento da sociedade. Sem ela, como seria possível convencer outros a colaborar entre si para conseguir mais alimentos, mais água, andar juntos para obter maior segurança?
Carvalho e Bachion (2012) confirmam essa observação dizendo que a comunicação intrapessoal, interpessoal, e grupal são processos que habilitam ações comunicativas entre as pessoas e os grupos com a finalidade de ajustamento, integração e desenvolvimento.
Depois de iniciado o desenvolvimento da comunicação interpessoal, vieram os sinais gráficos, com os desenhos nas cavernas e nas pedras, até que surgissem as primeiras escritas. Estas parecem ter sido a base sólida do que hoje denominamos comunicação. Mas junto com a comunicação os seres humanos desenvolveram também os meios de comunicação, que de certo modo pode ter iniciado nas paredes das cavernas, depois o pergaminho, o papiro, o papel. Antes, para imprimir os sinais gráficos, utilizava-se carvão, sangue de animais, frutas coloridas, objetos corto-contuso para entalhe, pena e tinteiro, o lápis e a caneta esferográfica. Hoje se utiliza impressoras laser, caneta digital, teclados sem fio, telas sensíveis ao toque, comando de voz.
Com a escrita dominada vieram os correios, os livros, jornais, depois o telégrafo, o telefone, o teatro, o rádio, o cinema, tv e a internet. Hoje temos uma gama grande de meios de comunicação nos rodeando, o que muitas vezes dificulta a diferenciação entre comunicação e meios de comunicação, mas Bordenave (1982) diz que não são uma coisa só, que a comunicação é muito mais que seus meios.
A comunicação não se expressa apenas na fala ou na imagem, mas até no silêncio, na compreensão da hora exata de fazer barulho ou quebrar o silencio. Essa percepção do comunicar, no aspecto interpessoal é importante no fazer dos profissionais de saúde e de educação, por exemplo, pois sem essa competência o processo terapêutico e/ou o processo de ensino/aprendizagem pode não acontecer ou ser muito prejudicado.
Nesse texto, vamos nos concentrar em educação e comunicação em saúde, o que, embora diminua o escopo inicial da discussão, não deixa de ser ainda um campo vasto para abordar. Na medida do possível os dois temas serão tratados em suas intersecções, evitando prolongar a discussão para além do que seria possível no contexto.
Pensar educação e comunicação em saúde juntos, tem relação com as heranças conceituais da origem da saúde coletiva no Brasil. Nos anos 20 do século XX, ao ser criado o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), uma de suas estratégias era voltada para propaganda e educação sanitária. De lá para cá muita coisa mudou, não há dúvidas, mas, como pode ser apreendido em diversos estudos que abordam o tema, comunicação em saúde ainda é compreendida como propagação de informações para mudança de comportamento da população, que são considerados nefastos à saúde coletiva, como afirmam Araújo e Cardoso (2007).
Embora seja muito difícil distinguir educação de comunicação em saúde, quando uma e outra estão acontecendo, conforme discutido aqui, vamos dizer que a divulgação e propagação das informações e a forma como acontece, seja pela mídia e/ou mediada pelos profissionais de saúde, seja a comunicação acontecendo. Já a tentativa de modelar os comportamentos, o que acontece no uso da comunicação e também pelos meios de, vamos considerar educação, seja ela feita por profissionais de saúde, de educação e/ou feita pelos meios de comunicação. Enfim, vamos pensar educação em uma concepção bem ampla, acontecendo na vida e não apenas nas escolas. Como definido por Durkheim (2007) e Geetz  (2008), educar não deixa de ser modelar as pessoas, o que pode ser feito de forma dialogada, como na abordagem de Freire (2006) ou de forma vertical, como na educação bancária, que parece predominar nos processos educativos ainda hoje. 
Outra abordagem importante diz respeito ao conhecimento necessário a intervenção no processo saúde-doença, que inclui o domínio da comunicação, enquanto conhecimento e, principalmente, atitude comunicativa como instrumento terapêutico e/ou de prevenção de doenças e promoção de saúde.   
Montoro (2008) prefere ver a comunicação como cultura, e comunicação em saúde como troca, interação, intersubjetividade, diálogo, expressão, enfim, com múltiplas dimensões, que vão desde a condição fisiológica, que envolve audição, sensações, visão, para alcançar as dimensões afetiva, cognitiva, sociocultural e tecnológica, em sua relação com as mídias, os sistemas de informação e difusão de mensagens.  Abordagem coerente com o conceito de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS), discutido desde a Oitava Conferência Nacional de Saúde (CNS) em 1986, que já mencionava o direito à informação, a educação e comunicação como inerente ao direito à saúde, conforme fala Araújo e Cardoso (2007). Porém o mais comum, ainda hoje, como já enfatizado antes e corroborado por RANGEL-S (2008), é a comunicação em saúde ser pensada e operacionalizada de forma vertical, centralizada, unidirecional, orientadas pela visão de que informações e conhecimentos devem ser difundidos de forma prescritiva.
Outros estudos mostram que conhecer não é o suficiente para provocar mudanças de hábitos, mas a comunicação em saúde, como frisado por Rangel-S, Montoro, e Araújo e Cardoso (2007), continua sendo pensada basicamente desta forma. Os responsáveis pela comunicação em saúde ainda creem que informação é comunicação e vice-versa, que é suficiente difundir informações sobre como reconhecer e prevenir doenças, talvez por isso as comunicações do governo, quase sempre, no que diz respeito à saúde, sejam carregadas de um tom prescritivo sobre o que faze e o como fazer.
Comunicação em saúde vai além do aspecto prescritivo e informacional e constitui, um campo de saber, tendo inclusive um grupo de trabalho na Abrasco. Entre outros aspectos, a comunicação em saúde, atualmente, envolve: assessorias de comunicação das instituições, divulgação científica dos achados em pesquisas acadêmicas e ações profissionais, comunicação organizacional, que envolve a produção e circulação das informações nas instituições.
Seja qual for o aspecto enfocado, parece fundamental compreender a comunicação para além de seus usos imediatos ou como sendo de responsabilidade de setores de comunicação. Todos nós nos comunicamos e é essencial que isso aconteça cada vez melhor. Os meios, as formas e as ferramentas de comunicação estão cada vez mais acessíveis e de fácil manipulação pelos profissionais de saúde e de educação. Comunicar-se é uma preocupação cada vez maior das instituições de ensino, que têm cada vez mais preocupações em dialogar, comunicar, preparar as pessoas nas competências comunicativas para melhor interagir com a comunidade.
Outro aspecto bastante importante da comunicação e da educação, tem a ver com o poder simbólico, como discutido por Bourdieu (2010), ou seja, a capacidade de fazer ver e fazer crer, o que se consegue, se não inteiramente pela comunicação e/ou pela educação, essencialmente fazendo uso delas. Araújo e Cardoso (2007) enfatizam que a comunicação pode ser utilizada para manter as coisas como estão ou para transformar a sociedade. Neste sentido, a preocupação deveria ser comunica-se, em todos os sentidos, mas essencialmente pensando comunicação como diálogo.

REFERÊNCIAS
PRADO, E. V. D.; SANTOS, A. L. D.; CUBAS, M. R. Educação em saúde utilizando rádio como estratégia.  Curitiba: CRV, 2009.
CARVALHO, E. C. D.; BACHION, M. M. Abordagem teórica da comunicação humana e sua aplicação na enfermagem. In: STEFANELLI, M. C. e CARVALHO, E. C. D. (Ed.). A comunicação nos diferentes contextos da enfermagem. 2. ed. Barueri-SP: Manole, 2012.  p.9-28. 
BORDENAVE, Juan E. D. O Que é Comunicação. São Paulo: Brasiliense, 1982.
ARAÚJO I. S. Cardoso JM. Comunicação e saúde. 1ª ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2007.
DURKHEIM, É. As regras do método sociológico. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GEERTZ, C. (Ed.). O saber local. Petrópolis-RJ: Vozes, 2008.
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
MONTORO, T. Retratos da comunicação em saúde: desafios e perspectivas. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 12, p. 445-448, 2008.
RANGEL-S, M. L. Dengue: educação, comunicação e mobilização na perspectiva do controle - propostas inovadoras. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 12, p. 433-441, 2008.
BOURDIEU P. Sobre o poder simbólico. In: Bourdieu P, editor. O pode simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2010. p. 7-16.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

04 novembro 2016

TOCA BOIADA

Imagem da internet.
Ernande Valentin do Prado

Todos os dias (ou quase), bem cedo, passo em frente à praça do Bairro Castela Branco (aliás, já perceberam o horror dos nomes dos bairros de João Pessoa? Castelo Branco, Médici, Costa e Silva, Geisel – tudo homenagem imposta à população por ditadores que tinham a sua disposição aparatos legais, tais como: metralhadoras, morteiros, granadas, espancamentos, sequestros, torturas), mas essa é outra conversa para outro dia.
Essa praça, neste bairro que não merece o nome que tem, está sempre limpinha. Vejo moradores usando a academia da cidade (política pública muito interessante), caminhando, passeando com as crianças, os animais e também varrendo, catando as folhas caídas das arvores, juntando, embelezando, consertando equipamentos.
Lembrei disso porque dia destes, andando por uma praça pública perto de casa com Alice, vi justamente o contrário. Fiquei pensando que parece fácil fazer um projeto para construção de uma praça pública, desde os detalhes arquitetônicos até o batismo do lugar por um político que quer deixar sua marca na história.
Uma praça é local privilegiado em que a população pode desfrutar de momentos de lazer, entretenimento, confraternizar-se, socializar-se com os cidadãos da cidade, desenvolver coisas juntos. Também pode ser um local para passear com os animais de estimação, fazer exercícios, ver as folhas das arvores cair.
A praça do lado de casa não é a melhor nem a pior que já vi. A grama está seca e esturricada, os brinquedos quebrados, a infraestrutura do balanço afundando, provavelmente pelo serviço mal feito (e talvez superfaturado da engenharia), como em outros pontos da cidade. A limpeza. Bem, a limpeza, melhor nem comentar, apesar de desconfiar que na planilha de custo alguém esteja recebendo para deixa-la limpa e, talvez até conste como limpa, nesta mesma planilha fictícia, mas bem real no recebimento dos custos financeiros.
Quando se observa o valor da construção e, sobretudo da reforma de uma praça, fica-se de boca aberta com o tanto de zeros uns atrás dos outros. Valores absurdos para o que realmente é feito. Mas isso já é tão corriqueiro que ninguém mais consegue prestar atenção. Outra coisa é que fazer uma praça pode ser fácil, mas dar manutenção parece ser algo que as administrações não conseguem fazer ou não querem (ao menos na prática).
Mas essa falta de planejamento (ou estratégia de gestão), não é exclusividade dos executivos municipais, que nem sempre têm uma pessoa capacitado para planejar. Um exemplo são os equipamentos de computadores nas universidades federais: compram, não conseguem dar manutenção e ficam parados, algumas vezes até sem nunca ter sido usados. Já repararam quantas impressoras têm em cada repartição? São duas, três por salas, todas paradas, porque compram as impressoras e depois não conseguem comprar as tintas para elas e vão comprando novas impressoras que logo estarão sem tinta também. Incompetência ou má fé?
Mas essa é outra história, não é mesmo ou talvez seja a mesma história. Sei lá.
As praças, assim como as impressoras, ficam ao leu, sem limpeza, sem manutenção e jogadas, como se joga lixo às margens da única fonte de água potável. A população não se apropria, porque em nossa cultura política as coisas do estado são dos administradores, dos gerentes, dos secretários, dos prefeitos, dos vereadores, que fazem e desfazem de tudo como se fossem mesmo os proprietários. Nada é realmente do povo, a não ser nos discursos, na hora de responsabilizar por algo que não deu certo, sobretudo. É assim que somos ensinados na conduta diária. Poderia ser diferente, mas não é, talvez porque é muito perigoso estimular, deixar o povo se apropriar das praças, delas tomar conta, limpar, manter, decidir os destinos, a começar pelos nomes, que são sempre tão alheiros a população real. Vai ver, na cabeça das autoridades, pensam que o povo começaria se responsabilizando pelas praças e acabariam se dando conta que precisam se apropriar, sentir-se dono dos destinos das escolas, das Unidades de Saúde e isso seria muito ruim para os donos do poder, que parecem se sentir como o boiadeiro que toca a boiada para onde deseja que ela vá.
Hoje o executivo, com suas regras e normas, taxas e licenças, força militar que nos obriga a fazer até o que não queremos e nos prejudica, os legislativos, municipais, estaduais e nacional, com suas leis justa ou absurdas, o judiciário, com suas polícias, com seus privilégios, a jurisprudência que beneficia a si mesmos e quem tem mais dinheiro no banco, definitivamente são um obstáculo as iniciativas de autonomia popular, de autogestão. Autonomia não é coisa dada, não se presenteia com autonomia, é um exercício cotidiano, um acertar, errar, voltar atrás, refletir, fazer de novo. Como exercitar a autonomia com um estado centralizador, que impede coíbe iniciativas coletivas e individuais, administrado como se fosse uma fazenda com proprietário, capataz e boiadeiros que tangem gente e gado como se fossem uma coisa só?
Assim como construir uma praça é fácil, construir uma Unidade de Saúde da Família (USF) também é. Junta-se meia dúzia de pessoas interessadas no assunto, que pensam saber o que é melhor para o povo (e para os aliados políticos da região); contrata-se uma empreiteira (com ou sem licitação, mas sempre de um aliado), que constrói o prédio, sempre fora do prazo, com o dobro do valor inicialmente planejado (e ninguém vai preso por isso). A secretaria de saúde, com o projeto na mão, compra os equipamentos (de empresas amigas), contrata os servidores (com ou sem concurso e, quase sempre sem concurso para aumentar os números de cabos eleitorais), abastece com os insumos (com ou sem licitação). Um dia abre as portas e começam a atender a população como dá (com ou sem capacitação). E o mato vai crescendo, o lixo vai se acumulando sem que ninguém queira olhar, limpar, as paredes aparecendo rachaduras, mofo, goteiras, equipamentos que nunca funcionaram vão se acumulando nas salas, os boiadeiros repetindo: “isso não é comigo”.
A população não consegue se apropriar de nada, nem do prédio nem do que se faz dentro dele. Incompetência popular ou muita competência do boiadeiro, do capataz e do dono da boiada? Há divergências, mas creio que o boiadeiro, com seu laço firme e braço forte, exerce com maestria seu oficio em nome do dono da boiada.
Deixa eu dar exemplo de unidade de saúde que já vi funcionando por aqui. Durante o dia trabalha-se das sete às 16 horas com uma equipe da Estratégia Saúde da Família. Atende a população da área adstrita, que recebe visitas domiciliares dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). A equipe faz vacinas, curativos, aplicas injeções, faz consultas de enfermagem, médicas, odontológicas, desenvolve os programas de pré-natal, de prevenção de câncer de colo de útero e mama, de hipertensão e diabetes. Às 16 horas fecha e, quem está no prédio é posto para fora, mesmo com chuva. Até às 17 horas acumula-se gente na porta. Quando o segurança abre a porta novamente, entra todo mundo de uma vez. Senta nas cadeiras e esperam até que chegue a primeira funcionária (que pode ser rápido ou não). Ao chegar ela distribuiu 10 fichas para atendimento médico e 10 para atendimento da dentista. Só isso. Não tem outros serviços. A sala de vacina não abre, a sala de curativo também não, os inevitáveis exames e encaminhamentos solicitados não podem ser agendados. Programas de prevenção não são feitos, a moça da recepção diz que não faz porquê das 17 às 20 horas, horário de funcionamento, não é ESF, mas Unidade Básica de Saúde (UBS) e em UBS não se faz essas coisas.
Para justificar a distribuição de apenas 10 fichas para o atendimento médico (bem ou mal feito), mas o único serviço disponibilizado, fora o odontológico, justifica-se pelo tempo: são apenas 3 horas de atendimento, só dá para atender 10 pessoas. Mas o fato é que o médico, que só atende 10 pessoas (e ainda diz que já tá fazendo mais do que o médico do dia), chega às 18 horas e sai às 19:15 (quase sempre), termina o atendimento e vai embora, deixando a USF ou a UBS, como diz a recepcionista, que também diz ser enfermeira, às moscas.
O povo, sem se apropriar do serviço, esperneia, reclama, briga, xinga, grita, mas tudo continua como está, porque quem manda no serviço são os profissionais que lá estão e só fazem isso.
Poderia ser diferente? Poderia, mas não é, porque nossa cultura política é essa, o que é público tem dono, no caso da USF/UBS, os donos decidiram que só vão fazer isso que estão fazendo, pelo pouco que estão ganhando e já acham muito, se comparam com outros e dizem que já fazem demais. E, por mais que a população esperneie, não conseguem fugir disso. Bem ou mal (e é muito mal, diga-se de passagem), quase sempre é o único recurso que ainda lhes sobra, poderia ser pior se não tivesse nem isso.
Os ditos conselhos de saúde, que deveriam agregar os usuários, os movimentos sociais para os exercícios do controle social, foram aparelhados durante tanto tempo pela direita e pela esquerda no exercício de seus mandatos, que se desmoralizaram completamente. A população, com razão, não consegue ver legitimidade neles. As poucas iniciativas para conseguir algo no SUS, hoje, são quase sempre individuais, como no caso da judicialização, que acaba beneficiando quem já tem privilégios, quase sempre.
Assim como no caso da praça, que fica abandonada, sem que o povo se aproprie e tome conta dela, está o SUS. Vez ou outra a gente vê praças limpas, aonde o povo se apropriou e tomou conta de fato, mas são tão poucas e as experiências são tão efêmeras que acabam sendo esquecidas, viram miragens, lendas.
Conheço algumas lendas, talvez eu fale delas em outro momento.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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