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10 janeiro 2018

O ÚLTIMO ACAMPAMENTO

Companheiros de farda, 2008. 
Ernande Valentin do Prado

 No dia do ataque ao morro, papel que deveria ser desempenhado pelo PELOPES, naquelas manobras do batalhão, o tenente inventou de fazer uma emboscada. Partimos de madrugada e nos posicionamos no entorno de uma estrada que dava acesso ao acampamento inimigo. Segundo o tenente, por ali, antes do sol clarear passariam dois pelotões de reforço ao inimigo e iriamos capturá-los.
Nos posicionamos num elevado e, com a noite clara, céu estrelado e lua cheia, via-se um longo trecho da estrada de chão batido. Se as tropas viessem por ali, veríamos de longe. Mas para ver, enxergar o inimigo que passariam pela estada a nossa volta, era necessário estar acordados, mas nem todos os soldados sabiam disso.
Do meu lado esquerdo estava o Sargento Borba, do direito, Marcão, logo depois dele o Jorge. Marcão, tão logo se jogou no chão já começou a dormir, apesar do orvalho gelado. Todos os soldados que eu podia ver estavam dormindo ou cochilando. Sargento Borba ia de um lado para o outro, sempre resmungando, chutando um e outro para que acordassem, até que deve ter se cansado. Jogou-se ao meu lado e disse baixinho:
- Prado, tá acordado?
- Tô, sargento, respondi, sem tirar o olho da estrada.
- Acorda o Marcão! Tá todo mundo dormindo pra todo lado, mas esse filho da puta tá até roncando, vai denunciar nossa posição. Acorda, se não vou dar um tiro nele.
Fiquei ali acordado, ouvindo o Sargento resmungar, o Marcão roncar, olhando Jorge, que também dormia e sem tirar o olho da estrada, por onde o inimigo deveria passar. Mas o dia amanheceu, o sol nasceu lindo e nenhum inimigo foi emboscado.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


03 janeiro 2018

Dor no peito

O balde e o ninho. Ruralices.
- Doutora tenho uma dor no peito. Começou no último domingo, já tem uns dias.
(Espero mas ela não continua.)
- Como é?
- É uma dor assim nessa parte que desce até a mama. - diz ela apontado para a região da axila e descendo com a mão aberta pela mama.
- E o que você acha que é?
- Acho que é da amamentação, meu filho tem um ano e sete meses e ainda mama e quando eu vou dar de mamar dói mais.
- Certo, vamos examinar.
Examino, não encontro alterações, apenas mamas cheias de leite. Explico que o exame está normal, que a dor pode ser muscular, que a pressão arterial dela está boa, parâmetros, parâmetros, parâmetros. Ela está sentada na maca me olhando. Sento do lado da maca.
- Tem mais alguma coisa acontecendo?
- Tem muitas, meu filho foi preso, aprontou no trabalho do meu marido e eu prometi que se ele fosse preso de novo eu não iria visitar ele. Vou deixá-lo de castigo - diz com os olhos úmidos mas com dignidade.
- Eu criei, amei, dei de comer, trabalhei, o pai dele nunca esteve nem aí, agora são as escolhas dele, ele disse "tá bão mãe" quando eu avisei que se ele fosse preso de novo eu não ia visitar- diz de uma vez só.
- Eu acho que essa dor no peito vem disso tudo, tudo um pouco misturado -.
- É eu forcei também para o natal, limpeza né? -
- Pois é, é bastante coisa para uma mulher só -.
- Eu também acho -.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

13 setembro 2017

Raízes

Imagem retirada da internet. 

Nas conversas no interior de Pinhalzinho meus primos e tios riram lembrando de uma história de quando era pequena, ali pelos dez anos . Minha tia me mandou dar comida para o porco, um balde cheio de soro de leite que tinha sobrado do cuidado com o leite naquela manhã depois de eu ter participado da ordenha das vacas, num daqueles chiqueiros arranjados em cima do açude, tinha uma trilha estreita de diferentes tipos de madeira (recicladas de outras  construções), algumas pintadas de azul descascado, outras sem pintura, o açude me olhava enquanto equilibrava um balde bem grande que certamente para o meu tamanho eu podia quase caber dentro. 

Eu puxando com as duas mãos consegui levar o balde até à frente da porta do chiqueiro. O porco já começou a fungar de animação e eu pensando em algo como os desenhos animados da época "Cocoricó", sem entender que aquele porco estaria no prato depois. Enfim, olhei para o porco sem maldade e como não conseguia elevar o balde acima da minha altura para jogar no cocho, decidi que seria uma boa ideia abrir a porta do chiqueiro. 

Acabamos eu, o soro de leite e o porco no açude. Minha prima, da mesma idade que eu, confessou aos risos que jogava metade do soro de leite fora antes de dar para o porco para conseguir levantar o balde e dar ao porco. 

Eu e o porco fomos socorridos por meu tio  no meio do açude.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

06 setembro 2017

O Fim da Vontade de ser mais


Caratinga-MG

Antes de partir de Caratinga onde estagiei com cuidados paliativos, Mônica a médica me entregou um livro e uma bola escrito “medicina”. “Para te acompanhar”, olhei para ela com significado, segurando o livro “O último sopro de vida” que ela disse “Achei que você ainda não tivesse lido esse, tem cara de ser bom”. O livro conta a história de um neurocirurgião que está com um câncer terminal e até o último momento tenta dar um significado a sua existência na escrita do livro. Comecei a lembrar dos pacientes que tentam dar um sentido para a sua existência até os últimos momentos também. 

Certamente esse significado não é da pessoa é meu, da família e perpassa todo o ninho de cuidado. 

Nos últimos dias de uma senhora que foi uma estilista, dona de uma loja de tecidos, empoderadíssima, ela não queria mais que fizéssemos a transfusão de sangue, escondia até os sangramentos para não preocupar os filhos, aos poucos todos fomos aceitando sua despedida. Ela me entregou sua bíblia, e advertiu “É bíblia de avó, está rabiscada por mim e pelos meus netos”. 

O fim da vontade de ser mais, também apareceu com um senhor que sempre trabalhou na roça, morava no alto do morro com sua esposa próximo ao filho, a casa era simples, com pedaços de panos pendurados para colorir, mas sempre tinha um café passado. Até que um dia não teve, percebíamos que havia dificuldades financeiras na casa até que ele explicou: “Sabe doutor, é que eu fiz uma conta muito grande na farmácia e não tem dinheiro para a comida” – fruto de internações recorrentes para tratar o edema e amenizar o câncer, além da Pressão Alta e diabetes mal controladas, pois não sabia ler e a cada nova receita ele colava o papel na porta de entrada e comprava os medicamentos (quase sempre os mesmos) novamente para desta vez melhorar, como não sabia a posologia acabava perdendo o sentido ao chegar em casa. Combinamos que aquele mês ele poderia pagar a conta que nós iríamos ajudar na casa, fizemos a feira e levamos lá, ele, sempre irreverente, falou que podia ter mais café. Mas estava feliz e repleto.

Teve um paciente que já não respondia a nada, não se movia uma dessas doenças complicadas. A esposa cuidava dele com carinho, as filhas, certo dia descobriram que eu fazia auriculoterapia, aí pediram para fazer nele. Eu fiz com carinho nele e na família, a esposa dele disse: “agora ele está mais bem cuidado”. Ele faleceu alguns dias depois, calmo e tranquilo.

Um homem jovem que morava com sua companheira e seu pequeno cachorro após resolvermos um pouco das suas dores queríamos ajudar ele a voar de paraglider, pois ele era piloto de Paraglider e adorava falar do vento, dos morros e do céu, tínhamos um plano de conseguir fazer ele ter forças para voar. Mas fomos surpreendidos com ele planejando o casamento com a esposa, apesar da vergonha por estar muito magro e parecer muito doente de terno. 

O último desejo de uma senhora, que nem era bem um desejo mas uma vontade, nem nós sabíamos que era o último era comer pudim. Bastou ela ver o pudim e sorrir. Chegamos na casa dela algumas horas depois e ela havia partido como um sopro. 

O senhor que sentou na beira da cama e que fizemos uma oração para quebrar uma maldição que ela acreditava ser a causa do seu câncer terminal, conversamos um pouco sobre como ele poderia se libertar e nos dias seguintes o estado geral declinou, aos poucos era muita energia para conseguir respirar. 

Teve uma senhora rodeada pelas irmãs que só sorria quando chegávamos. Sorria segurava nossas mãos e dava umas batidinhas. Era um sorriso feliz e repleto, até um pouco irônico sem mostrar os dentes. Quase sempre com os olhos fechados ela dava uma espiada para ver nós chegando. Não vi ela morrer, mas tenho certeza que foi sorrindo. 

Essas gentes sabidas, vivem até o último momento nos ensinando a queimar até o último lampejo a capacidade de encontrar um sentido no fim, tanto para si quanto para aqueles que os cercam. Entre viver e persistir, a vontade de ser mais vai ficando suspensa na respiração, até ela ficar lenta, ninguém morre inspirando, não que eu tenha visto, e sim com o último suspiro. 

Apesar de ser o fim, a vontade de ser mais continua nos outros, na família, amigos e equipe de cuidado. Na mãe que mesmo que perdeu o filho, segue a vida seu caminho sua arte, no neto que ainda tem muito que crescer e “é mais” desenhando personagens de Dragon Ball, no irmão que segue pescando, na filha que volta ao trabalho. A vontade de ser mais termina, mas não para. 

Abraços que pousam, 
Mayara Floss

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