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08 abril 2016

DIALOGANDO COM ALICE

Desenho de Alice: buracos no planeta, 2016.
Ernande Valentin do Prado

Por volta das 21 horas fui ao quarto de Alice. Tudo escuro. Entrei, mas não acendi a luz.
Olho na cama: não tá.
Procuro no banheiro: não tá.
- Pai, chamou Alice: eu tô aqui.
Olha em direção à voz e vejo Alice sentada com as pernas dobradas, queixo no joelho direito, hipnotizada com a lua cheia.
- Alice, o que tá fazendo sentada na janela na hora de dormir?
- Pai, eu tinha que ver a lua! Disse Alice, muita calma, sem desviar os olhos da enorme lua que ilumina o céu.
Estava sentado atrás do computador, concentrado, tentando resolver uma questão. Alice chegou, cara preocupada, pensativa:
- Pai, você sabe escrever?
- Em Aramaico não, mas em português até que sei.
- Pai, disse nervosa, batendo os pezinhos no chão: não tô com tempo pra brincadeira.
Parei o que estava fazendo, encostei-me no apoio da cadeira e olhei o rosto sério de Alice:
- O que tem pra fazer que tá sem tempo?
- Eu tenho que pintar as unhas, diz Alice sem perder a seriedade.
A luz piscou pela terceira vez numa noite limpa de João Pessoa:
- Pai, por que a luz tá acabando tanto?
- Por que você acha que eu sei uma coisa dessas, Alice?
- Pai! O senhor já trabalhou no circo...
Entrei no quarto em silencio, sentei na cama e fiquei observando Alice conversando com as bonecas. Falava sobre as roupas novas e sobre como cada uma ficou bem vestida. Aí, sem motivo, que eu entenda, Alice grita:
- Pai! O que é alma?
- Sei não, minha filha, acho que sua mãe entende melhor disso.
- Tá! Vou perguntar pra ela... mãe...

Eu e Alice estamos na sala vendo um DVD de Alvin e os esquilos 3.
Cena de chuva na ilha.
Alice: pai, por que chove em um canto da ilha e no outro não?
Eu: sei não, Alice.
Alice: E por que é noite em canto da ilha e no outro não?
Eu: Sei não...
Alice: Pai, acho que esse filme é mal feito.
Aos três anos levei Alice em uma praia em Aracaju. Na água, ela lembra de uma conversa sobre peixe e pede para ir para o colo:
- Pai, aqui tem peixe espada?
- Acho que não, por que?
- Peixe espada faca a gente?
Estou em minha mesa fazendo uma moldura. Alice chega mansinha, como quem não quer nada:
- Pai, a gente pode ter um canguru?
- Para que quer um canguru?
- O canguru dá ganguruzada...
- E o que é ganguruzada?
- Sabe coice de cavalo?
- Humhum
- É igual, mas canguru dá de frente. Gangurus são muito nervosos.
Alice, na hora do almoço, na mesa, diz:
- Pai, por que as pessoas chiques usam um copo para cada coisa, um garfo para peixe, outro para carne?
- Sei não, Alice!
Ela para por um minuto, tentando entender a resposta, então diz:
- Acho que deve ser para desfacilitar as coisas.
Alice entrou correndo, vinda da rua.  Preocupada com o colega:
- Pai, o David não sabe andar de bicicleta.
- Sério?
- Sério! Diz ela exagerando ériooo. Eu tentei ensinar, expliquei pra ele que pra aprender a andar de bicicleta precisa cair, mas ele não quer.
Alice, com um regador plástico na mão, desses de brincar na praia, diz:
- Eu preciso dar água para minha uveira.
- Eu não sabia que você tinha uma uveira...
- Eu comi uma uva e plantei as sementes ontem.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

26 junho 2015

(NÃO FOI QUALQUER) FORMATURA

Ernande Valentin do Prado

Em junho de 2015 Heloísa Bernini do Prado recebeu seu diploma de Nutricionista. Eu estava lá e vi... e senti.
A formatura de uma filha não é qualquer coisa, não acontece tudo dia e em minha família, não aconteceu tanto assim. É emocionante, embora dê certo desespero (leve). Os planos de ir embora de casa de vez, ganhar a vida, fazer sua própria história:
- como assim, você ainda é um bebê e... (a casa já está tão vazia)
O tempo vai passando, como diria Cazuza: “o tempo não para” e, ainda (até a invenção da máquina do tempo), não volta, não se recupera, é implacável. Para tudo tem jeito, até para morte, mas para recuperar o tempo não (passou, acabou, já era, como esse tempo que está perdendo lendo esse texto). Já era, já foi, acabou...
- não seria melhor viver a vida?
Estava ela lá, linda, feliz, com um mundo todo a sua espera. O Google diz que viajei 678,1 km entre João Pessoa e Lagarto em Sergipe, onde Heloísa fez Faculdade: Universidade Federal de Sergipe, campus de Lagarto, interior do estado. Campus de saúde, método de estudo PBL/ABL. Primeira turma a se formar. Lá lecionei por 12 meses no ciclo inicial e vários e varias colegas de minha filha frequentaram minhas aulas, alguns professores foram meus colegas. O tempo e a distancia os amadureceu muito, nem pareciam as mesmas crianças. Foi difícil reconhecer alguns e tenho certeza que nem eles me reconheceram com meus novos cabelos branco e dentro de meu terno chique, que tenho desde (não lembro mais quando, mas ainda serve).
Sabe o que é mais bonito e significativo em tudo isso fora o fato de estar na formatura de minha filha (sentimento que nem sei descrever)?
Estava assistindo uma verdadeira transformação social na vida de minha família, especialmente Heloísa (fato), porém mais ainda na vida de muitas outras pessoas. Uma universidade pública, no interior do Brasil, com todas as fragilidades, vícios e virtudes que se sabe existir, não é qualquer coisa. Muitos dos estudantes que lá estavam provavelmente não chegariam a se formar sem esse campus ali naquele lugar. Heloísa disse que dos 50 estudantes que entraram com ela, há quatro anos, apenas 32 conseguiram se formar. Conheço história de estudantes que para conseguir estudar tinha que matar um leão por dia apenas usando as unhas e ainda arrastar a carcaça por quilômetros nas costas.
Tem gente dizendo que o fato das classes populares estarem frequentando a universidade tem rebaixado o valor dos diplomas, que a graduação agora já tem menos valor que antes. Mas o fato novo aqui é ter gente das camadas populares chegando e concluindo a universidade (há 20, 30 anos nem conseguiam sonhar com isso e agora alguns até realizam). Sentados do meu lado, na cerimônia de colação de grau estavam várias pessoas de aparência muito humildes (sem um terno chique como o meu) e que provavelmente não frequentariam uma colação de grau em uma universidade há 10 ou 20 anos ou (até iriam, quem sabe) na formatura da filha da patroa...
- E eu com isso?
Cara (Caramba Caraô)!  Fiquei orgulhoso demais de ver Heloísa não apenas se formando, sendo habilitada legalmente para ser Nutricionista (ou o que mais ela quiser em sua vida), mas por estar ao lado de um povo real, de verdade, que sonha com uma vida melhor e não em ir à Disneylândia (com Chaplin Colorado) e comprar muamba em Miami. Eles estavam fazendo e mudando a história nesta parte do Brasil, nesta parte da civilização. (ali, naquele momento – seus compromissos de classe não sei como serão no futuro)
O que vai ser daqui para frente não sei dizer, mas já estão num patamar melhor para começar do que estavam antes, do que estiveram seus (meus) país, seus (meus) avós.

Talvez a vitória (mesmo que pequenina) dos outros não lhe emocione, mas para mim é mais ou menos por aí...

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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