Desenho de Alice: buracos no planeta, 2016. |
Ernande
Valentin do Prado
Por
volta das 21 horas fui ao quarto de Alice. Tudo escuro. Entrei, mas não acendi
a luz.
Olho
na cama: não tá.
Procuro
no banheiro: não tá.
-
Pai, chamou Alice: eu tô aqui.
Olha
em direção à voz e vejo Alice sentada com as pernas dobradas, queixo no joelho
direito, hipnotizada com a lua cheia.
-
Alice, o que tá fazendo sentada na janela na hora de dormir?
-
Pai, eu tinha que ver a lua! Disse Alice, muita calma, sem desviar os olhos da
enorme lua que ilumina o céu.
Estava
sentado atrás do computador, concentrado, tentando resolver uma questão. Alice
chegou, cara preocupada, pensativa:
-
Pai, você sabe escrever?
-
Em Aramaico não, mas em português até que sei.
-
Pai, disse nervosa, batendo os pezinhos no chão: não tô com tempo pra
brincadeira.
Parei
o que estava fazendo, encostei-me no apoio da cadeira e olhei o rosto sério de
Alice:
-
O que tem pra fazer que tá sem tempo?
-
Eu tenho que pintar as unhas, diz Alice sem perder a seriedade.
A
luz piscou pela terceira vez numa noite limpa de João Pessoa:
-
Pai, por que a luz tá acabando tanto?
-
Por que você acha que eu sei uma coisa dessas, Alice?
-
Pai! O senhor já trabalhou no circo...
Entrei
no quarto em silencio, sentei na cama e fiquei observando Alice conversando com
as bonecas. Falava sobre as roupas novas e sobre como cada uma ficou bem
vestida. Aí, sem motivo, que eu entenda, Alice grita:
-
Pai! O que é alma?
-
Sei não, minha filha, acho que sua mãe entende melhor disso.
-
Tá! Vou perguntar pra ela... mãe...
Eu
e Alice estamos na sala vendo um DVD de Alvin e os esquilos 3.
Cena
de chuva na ilha.
Alice:
pai, por que chove em um canto da ilha e no outro não?
Eu:
sei não, Alice.
Alice:
E por que é noite em canto da ilha e no outro não?
Eu:
Sei não...
Alice:
Pai, acho que esse filme é mal feito.
Aos
três anos levei Alice em uma praia em Aracaju. Na água, ela lembra de uma
conversa sobre peixe e pede para ir para o colo:
-
Pai, aqui tem peixe espada?
-
Acho que não, por que?
-
Peixe espada faca a gente?
Estou
em minha mesa fazendo uma moldura. Alice chega mansinha, como quem não quer
nada:
-
Pai, a gente pode ter um canguru?
-
Para que quer um canguru?
-
O canguru dá ganguruzada...
-
E o que é ganguruzada?
-
Sabe coice de cavalo?
-
Humhum
-
É igual, mas canguru dá de frente. Gangurus são muito nervosos.
Alice,
na hora do almoço, na mesa, diz:
-
Pai, por que as pessoas chiques usam um copo para cada coisa, um garfo para
peixe, outro para carne?
-
Sei não, Alice!
Ela
para por um minuto, tentando entender a resposta, então diz:
-
Acho que deve ser para desfacilitar as coisas.
Alice
entrou correndo, vinda da rua.
Preocupada com o colega:
-
Pai, o David não sabe andar de bicicleta.
-
Sério?
-
Sério! Diz ela exagerando ériooo. Eu tentei ensinar, expliquei pra ele que pra
aprender a andar de bicicleta precisa cair, mas ele não quer.
Alice,
com um regador plástico na mão, desses de brincar na praia, diz:
-
Eu preciso dar água para minha uveira.
-
Eu não sabia que você tinha uma uveira...
-
Eu comi uma uva e plantei as sementes ontem.
[Ernande
Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]