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Ponto de partida - Ernande (2014) |
Ernande Valentin
do Prado
Estou deitado em um colchão jogado no
chão da sala. Larissa ao meu lado. Estou lendo Ao encontro da Sombra (para um
seminário do curso de Eymard). Ela não para de falar:
- Faz uma semana que não nos falamos,
sinto falta de lhe atrapalhar. Você não sente falta de ser atrapalhado?
- Sinto, respondo de sobrancelha (como
me ensinou Mavie Elói).
- Amor, quero lhe atrapalhar, quero lhe
atrapalhar, quero lhe atrapalhar.
- Sou mais produtivo quando você e as
crianças me atrapalham.
- Eu sei, ela responde de sobrancelha.
Sinto falta de lhe atrapalhar mais vezes.
Leio mais um pouco:
Sou
um autodidata por natureza. Valorizo o aprendizado pela experiência. Muitas
vezes, quando fixo meu pensamento e minha atenção num assunto, as
sincronicidades ocorrem. Algum evento significativo — mas não causalmente
relacionado — acontece na minha experiência exterior ou às pessoas que conheço.
Sinto-me, sempre, renovado e confortado por essa resposta tão imediata. Esses
eventos me trazem a confirmação daquilo que é real e verdadeiro.
- Tá sentido?
- Tô.
- Tava com saudade da minha comida?
- Muita.
- O cheiro tá invadindo a sala. Essa
casa é toda esquisita, mas não importa onde a gente more, o quanto façam
remendos na casa, ela acaba fincando com nossa cara.
- Verdade.
Políticos,
de esquerda e de direita, continuam a não entender as coisas. Eles acham que o
inimigo desaparecerá no instante em que mudarmos a maneira como nos servimos
das nossas armas. Os conservadores acreditam que o inimigo se assustará e
ficará manso se tivermos armas maiores e melhores.
Alguma coisa me atrai no mar: a imensidão azul, o barulho das
ondas, não sei explicar.
- Vai ver você foi um golfinho na outra vida.
- Não sei, talvez tenha sido...
- ... Um peixe espada que faca a gente (como dizia a Alice dos 3 anos).
- Preciso escrever isso. Estou sem assunto para sexta-feira (dia de
postar no Balsa das 10).
- Tinha um cara no terminal de ônibus hoje cedo com um peixe
enorme. Era tão grande que o rabo arrastava naquela água de
esgoto que corre lá. Daí a pouco ele voltou, disse que vendeu o peixe por 200
reais.
No
entanto, por mais que eu possa protestar, um olhar honesto sobre mim mesma e
meu relacionamento com o resto do mundo revela que eu também sou parte do
problema. Já percebi que, num primeiro contato, desconfio mais dos mexicanos
que dos brancos. Percebo meu apego a um padrão de vida que é mantido as custas
de pessoas mais pobres — uma situação que só pode mesmo ser perpetuada através
da força militar. E o problema da poluição parece incluir o meu consumo de
recursos e a minha produção de resíduos, A linha que me separa dos
"bandidos" é indistinta.
- As pessoas acham lindo o lago, mas
jogam lixo nele. Será que imaginam que o lixo
vai sumir, não entendem que o lixo vai voltar pra cima deles?
- Eu penso nisto todo dia.
- Alice ontem mordeu um copo e furou o
queixo. Ela ficou desesperada, enquanto não lhe mostrei que não tinha machucado
tanto, não sossegou.
- Como ela quebrou um copo no dente?
- Era um destes copos chiques, bem
fininhos.
- Eu sempre mordia copos quando era
criança, mas nunca consegui quebrar nenhum.
- Vai ver isso é do DNA.
- Vai ver é.
- Bia vestiu-se como moça e saiu com as
amigas na sexta-feira. Foi na praça brincar de esconde-esconde.
- Até ontem era uma menininha, agora já
virou moça.
- É tão interessante olhar isso: tem
hora que é moça, tem hora que vira menina de novo.
- Pra gente que é pai (e mãe) é tão
difícil isso: ontem ela estava varrendo o chão com os cabelos, agora já tem
corpo de mulher.
- As meninas crescem tão rápido hoje em
dia. No meu tempo parece que não era assim. As meninas estão crescendo rápido demais. Acho
que são esses hormônios...
- Verdade.
E o tempo vai passando...
É tão bom estar em casa.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa
das 10 às 6tas-feiras]