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03 outubro 2014

ACEITAR NÃO É (NECESSARIAMENTE) CONCORDAR [Ernande Valentin do Prado]

Ernande Valentin do Prado

Marcelo era machista, metido a garanhão e tratava as mulheres como objeto. Costumava dar notas para cada uma segundo seus atributos físicos.
Beto não concordava com nenhuma de minhas propostas nas reuniões do grêmio escolar. Costumávamos quebrar o pau nas reuniões, quando lhe dizia que não adiantava puxar o saco dos professores.
Orlando era populista (além de mulherengo). Na rua mexia com todas as mulheres, o que me obrigava a andar do outro lado da calçada. Nos debates no diretório municipal do Partido dos Trabalhadores (PT), sempre concordava com os argumentos de todas as posições.
Paulo era erudito, tinha memória fotográfica, sempre sabia mais do que os professores e via na literatura um valor supremo e um fim em si mesma.
Adilson sempre via uma razão divina para os acontecimentos terrestres e orava por mim em sua igreja. No meu primeiro emprego foi me visitar. Passou mais de 18 horas no ônibus e encarou 40 graus de temperatura. Na época nem geladeira tinha na minha casa.
Altair ia para aula com camiseta rasgada do Iron Maiden. Comia mais do que todo mundo e era mais magro que todos.
Adriano sempre deixava comida no prato, nos restaurantes onde a gente dividia a mesa. Quando pegava em um microfone não parava de falar.
Ademar era o sujeito mais completo que eu conheci. Sempre apontava contradições no meu discurso. É um dos padrinhos de Alice.
Ronaldo descobriu que adora ser Policial Militar (PM). É outro padrinho de Alice.
Junior era humilde demais, generoso demais, solidário demais. E às vezes também era debochado e irônico demais. É o terceiro padrinho de Alice.
Herivelton não discutia, contava histórias e ia ao “bailão gauchesco” três vezes na semana.
Mirian usava roupas que me deixava constrangido.
Adalberto mentia de forma descarada. Apesar de diplomado em Universidade Federal, não sabia escrever um bilhete com coerência.
Helena achava Florence uma heroína que só tinha virtudes, mesmo tendo ajudado o império Inglês a legitimar a guerra.
Sirley me ligava tarde da noite em casa sem motivo nenhum, a não ser para saber onde eu estava.
Cecília queria ganhar muito dinheiro para comprar tudo que tivesse vontade. Seu maior sonho era arrumar um marido rico para lhe sustentar.
Paula achava o cúmulo do ridículo a professora não conseguir pronunciar o plural nas frases ou errar a concordância verbal. Ficava zombando, desqualificando e ignorando todas as outras qualidades que a professora tinha.
Luciana ia de carro importado para a aula. Chegava sempre atrasada. Tinha apartamento no centro de Curitiba, duas empregadas e na escola nunca entregava um trabalho dentro do prazo.
Gustavo chegava atrasado a todos os plantões.
Maria não podia ver trabalho que se escondia.
Fábio tentou me contratar para fazer uma monografia sobre saúde do trabalhador para ele.
Mário só assistia filmes de ação e achava Deus e o Diabo na terra do sol um filme idiota e mal feito.
Eduardo achava que as músicas que eu escutava eram de mau gosto ou bregas.
Soraya achava que todos os homens eram iguais e não prestavam.
Fabiola era filha da orientadora pedagógica da escola. Não notava que eu era apaixonado por ela, mas dançava comigo nos bailinhos da quarta série na escola Roberto Brezenzinsk em Campina da Lagoa. Hoje é reporter da TV globo no Paraná.
Barbara gostava de cheirar cola, mas já havia experimentado cocaína, maconha e crack.
Seiko era muito organizada e metódica.
Tamara queria sempre levar vantagem em tudo e sobre todos.
Sheila queria escolher as camisas que eu deveria usar.
Marcia era uma gênia, mas nunca soube ganhar dinheiro.
Seu José sempre defendia os capitalistas, fazendeiros e políticos de direita.
Cristiane era possessiva. Não tolerava disputar minha atenção com outras pessoas.
Guilherme batia na namorada, algumas vezes apanhava também.
Toninho vivia me dizendo para fazer faculdade e se desesperava com meu descaso intelectual.
Ednei (todo sábado) me convidava para tomar cerveja, comer batata frita com queijo e falar mal da Sirley, de Jaime ou de qualquer outra pessoa.
Marilus fumava demais e jogava fumaça na minha cara.
Gilmar dizia que só idiotas gostavam de Mamonas Assassinas, mas ouvia escondido em casa.
Rafael ficava com o cabeço em pé cada vez que eu dizia as minhas verdades.  
Jaldemir tolerou-me enquanto pôde e despediu-se sem mágoas. 
A minha convivência com todos eles foi boa e duradoura. Acredito que porque nunca tive que me anular, nunca tive que deixar de ser eu mesmo ou concordar com todas as ideias diferentes deles e eles com as minhas.

Alguns nomes (mas nem todos) foram alterados para evitar identificar pessoas vivas.
           
                                     [Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]




11 abril 2014

CONVERSA CORRIQUEIRA (QUASE VERDADE)

Ponto de partida - Ernande (2014)

Ernande Valentin do Prado

Estou deitado em um colchão jogado no chão da sala. Larissa ao meu lado. Estou lendo Ao encontro da Sombra (para um seminário do curso de Eymard). Ela não para de falar:
- Faz uma semana que não nos falamos, sinto falta de lhe atrapalhar. Você não sente falta de ser atrapalhado?
- Sinto, respondo de sobrancelha (como me ensinou Mavie Elói).
- Amor, quero lhe atrapalhar, quero lhe atrapalhar, quero lhe atrapalhar.
- Sou mais produtivo quando você e as crianças me atrapalham.
- Eu sei, ela responde de sobrancelha. Sinto falta de lhe atrapalhar mais vezes.
Leio mais um pouco:

Sou um autodidata por natureza. Valorizo o aprendizado pela experiência. Muitas vezes, quando fixo meu pensamento e minha atenção num assunto, as sincronicidades ocorrem. Algum evento significativo — mas não causalmente relacionado — acontece na minha experiência exterior ou às pessoas que conheço. Sinto-me, sempre, renovado e confortado por essa resposta tão imediata. Esses eventos me trazem a confirmação daquilo que é real e verdadeiro.

- Tá sentido?
- Tô.
- Tava com saudade da minha comida?
- Muita.
- O cheiro tá invadindo a sala. Essa casa é toda esquisita, mas não importa onde a gente more, o quanto façam remendos na casa, ela acaba fincando com nossa cara.


- Verdade.

Políticos, de esquerda e de direita, continuam a não entender as coisas. Eles acham que o inimigo desaparecerá no instante em que mudarmos a maneira como nos servimos das nossas armas. Os conservadores acreditam que o inimigo se assustará e ficará manso se tivermos armas maiores e melhores.


 Alguma coisa me atrai no mar: a imensidão azul, o barulho das ondas, não sei explicar.
- Vai ver você foi um golfinho na outra vida.
- Não sei, talvez tenha sido...
- ... Um peixe espada que faca a gente (como dizia a Alice dos 3 anos).
- Preciso escrever isso. Estou sem assunto para sexta-feira (dia de postar no Balsa das 10).
- Tinha um cara no terminal de ônibus hoje cedo com um peixe enorme. Era tão grande que o rabo arrastava naquela água de esgoto que corre lá. Daí a pouco ele voltou, disse que vendeu o peixe por 200 reais.

No entanto, por mais que eu possa protestar, um olhar honesto sobre mim mesma e meu relacionamento com o resto do mundo revela que eu também sou parte do problema. Já percebi que, num primeiro contato, desconfio mais dos mexicanos que dos brancos. Percebo meu apego a um padrão de vida que é mantido as custas de pessoas mais pobres — uma situação que só pode mesmo ser perpetuada através da força militar. E o problema da poluição parece incluir o meu consumo de recursos e a minha produção de resíduos, A linha que me separa dos "bandidos" é indistinta.


- As pessoas acham lindo o lago, mas jogam lixo nele.  Será que imaginam que o lixo vai sumir, não entendem que o lixo vai voltar pra cima deles?
- Eu penso nisto todo dia.
- Alice ontem mordeu um copo e furou o queixo. Ela ficou desesperada, enquanto não lhe mostrei que não tinha machucado tanto, não sossegou.
- Como ela quebrou um copo no dente?
- Era um destes copos chiques, bem fininhos.
- Eu sempre mordia copos quando era criança, mas nunca consegui quebrar nenhum.
- Vai ver isso é do DNA.
- Vai ver é.
- Bia vestiu-se como moça e saiu com as amigas na sexta-feira. Foi na praça brincar de esconde-esconde.
- Até ontem era uma menininha, agora já virou moça.
- É tão interessante olhar isso: tem hora que é moça, tem hora que vira menina de novo.
- Pra gente que é pai (e mãe) é tão difícil isso: ontem ela estava varrendo o chão com os cabelos, agora já tem corpo de mulher.
- As meninas crescem tão rápido hoje em dia. No meu tempo parece que não era assim. As meninas estão crescendo rápido demais. Acho que são esses hormônios...
- Verdade.
E o tempo vai passando...
É tão bom estar em casa.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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