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16 setembro 2016

SOBRE ELEIÇÕES, CORRUPTOS E CORRUPÇÃO

Fonte da foto: internet.
Ernande Valentin do Prado
A visão de um bando, com bandeiras azuis com números dentro, prontos para invadir uma comunidade, que no resto dos dias passa abandonada, achincalhada e que seus moradores viajam nos piores entre os piores ônibus públicos de João Pessoa, fez me lembrar dos versos da música de Bezerra da Silva:
“Hoje ele pede seu voto
Amanhã manda a política lhe bater”
Essa comunidade ocupa uma faixa nobre próximas da orla de João Pessoa. Todos os outros pontos, nesta mesma faixa, já foram ocupados por prédios de alto padrão, que estão no imaginário da elite Branca[1], que possivelmente sonha com uma remoção dos moradores, preferencialmente em uma ação policial violenta na madrugada.
Quase sempre tem um juiz (elite branca) disposto a dar autorização, não é mesmo?
Mas nesta época todo mundo conta. Cada pessoa um voto. E na comunidade eles devem ser bem mais baratos do que em outros locais da cidade. Isso parece ser o suficiente para explicar porque as pessoas que têm horror em adentrar nas ruas e vielas mal cheirosas daquele lugar, durante todos os dias dos anos que não têm eleições ou que não se pode fazer campanha, nesta época invadem a comunidade com bandeiras e santinhos nas mãos e sorriso nos rostos.  
Levam muitas promessas em nome de seus patrões, mas os moradores já sabem ser mentiras arrumadinhas. Fingem acreditar, mas no final das contas querem saber quanto é que vão levar para votar e apoiar o “canalhocrata” do dia, como diria mestre Bezerra da Silva.
É fato, neste sistema eleitoral que atende perfeitamente as necessidades, materiais e espirituais, das elites brancas, o voto não é dado, mas vendido. Francamente: vender o voto é, quase sempre, a única forma de garantir receber algo dos políticos (que depois vão mandar a polícia para negocias as políticas públicas). Quem acredita que não é bem assim talvez nunca tenha andado pelas ruelas das comunidades do Brasil (que antes se chamavam favela).
O fato de não saber em quem acreditar, ou (correndo o risco de uma obviedade burra) não pode acreditar em nenhum candidato, serve, entre outras coisas, para justificar porque não existe mais o jogo de convencimento, que já existiu um dia, entre candidatos e eleitores. Hoje o que acontece é uma negociação comercial na cara dura.
- Quanto me dá pelos meus votos?
- Quantos votos tem em sua casa?
Por exemplo (sempre gosto de exemplos): nas eleições municipais passada estava na Bahia. Um determinado candidato a vereador quase perdeu a esposa, porque no final das eleições só restou, em sua casa: o fogão (que a mulher se recusou a doar em troca dos votos, ameaçando abandona-lo) e parte do telhado da cozinha. O resto tudo deu pagando os poucos votos que teve.
Por outro lado, não sei se aceito tão bem o argumento de que é impossível existir políticos e governos honestos com um povo tão antiético quanto o brasileiro. Pode até ser verdade, mas também esconde a necessidade das elites brancas se justificarem, nem que seja a Deus ou a suas consciências (se é que têm), diante do sistema que aqui montaram e administram desde sempre, ora com este ora com aquele outro partido (que dá no mesmo).
No Brasil (correndo o risco de estar fazendo chover no banhado, com essa fala) as instituições são corruptas (tanto faz se púbicas ou privadas, do executivo, legislativo ou do judiciário e, pasmem: até as instituições religiosas não gozam de boa fama).
Essas instituições são dirigidas ideologicamente pelas elites financeiras (que realmente detêm o poder, não importa qual o partido à frente ou atrás da mesa presidencial). São corrompidas desde que aqui chegaram, vindas da Europa, trazendo armas, espalhando discórdia, ódio e levando ouro, açúcar, pau Brasil. Enfim, parece um obvio ululante dizer que são elites mal intencionadas e corrompidas até a pleura, como diria o bom Sargento Borba (orgulho da direita tupiniquim).
Ainda hoje os governos, o estado e suas instituições (na ânsia de centralizar o poder), são organizados para impedir que as vozes dos honestos (e do povo em geral) sejam ouvidas ou que tenham algum peso nas decisões públicas. A voz das classes populares, certas ou erradas, não contam quase nada no dia-a-dia. Quando se vê o grau de corrupção das instituições públicas e privadas deste país, dá para dizer: “se o povo fosse tão corrupto quanto, não teríamos mais nação, nem teríamos como sair à rua sem sermos esfaqueados”.
Por exemplo, as instituições brasileiras organizaram o processo eleitoral (inclusive com a participação do judiciário) de uma forma que Partidos (quase todos corrompidos) escolhem candidatos (quase todos mal intencionados) sem necessidade de participação popular.
A mesma coisa pode se dizer dos sindicatos (quase todos eles não precisam dos trabalhadores para se manter financeiramente e menos ainda para deliberações). Acho até que preferem assim, fica mais fácil negociar e tomar decisões sem tanta gente dando opiniões, fiscalizando os atos da diretoria e lhe chamando de pelegos.
Até o controle social no Sistema Único de Saúde, tão bem desenhadinha pela leio 8.142/90 e defendido com unhas e dentes por quem se diz favorável a um sistema de saúde público e de qualidade com a participação popular, é feito sem a real participação popular (não porque não queiram, mas porque é perda de tempo, sabem que quase nada que debaterem contará para a decisão final, que é do dono do mandato ou de alguém designado por ele).
A população só pode votar, no processo eleitoral, entre os candidatos escolhidos pelos partidos. E se os partidos têm processos de escolhas baseados no oportunismo, no ganho financeiro, nos esquemas múltiplos, na troca de favores, toda escolha feita pelo eleitor será errada, ou estou errado?
Isso parece muito mais uma armadilha do que uma democracia.
Em quantos candidatos o eleitor realmente pode confiar? E se o eleitor desconfiar de todos os candidatos apresentados pelos partidos e financiados pelos empresários (quase sempre tão ou mais mal intencionados do que os partidos), faz o que?
Se votar, neste sistema, vota errado. Se anular o voto é chamado de alienado. Votar em outros, que não foram escolhidos pelos partidos, não pode e mesmo que pudesse, quem saberia que são candidatos, sem o financiamento de campanha dos empresários?
Será justo a população, refém desse sistema, ainda ser chamada de corrupta, de responsável pelas escolhas das elites financeiras e culturais (corruptas, quase todas) e pelo estado (em essencial corrupto, pois é a expressão das elites)?
Pode até ser verdade que o povo é corrupto, mas parece ser um comportamento aprendido com as elites corruptas, ou seja, é um exemplo que vem de cima e não se aplica a maioria de nós.
Talvez essa seja uma “verdade” tão absurda que o melhor é ignorar ou desacreditar, do contrário, fica-se louco de tanto tentar encontrar uma saída.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]



[1] Elite Branca, no Brasil todo, tem de várias cores: elite branca Japonesa, elite branca parda e de vários outros tons. Ser elite branca é quase um estado de espírito.

04 fevereiro 2015

A improvável visita a comunidade da Costa da Caparica

Água.
Escrito em 12/07/2014

 Pelo jogo das probabilidades e as chances de um dado, isso dificilmente aconteceria duas vezes. Decidi fazer couchsurfing (dormir na casa de desconhecidos sem custo algum) em Lisboa enquanto estava no Congresso de Internacional de Medicina de Família, certamente para conseguir fazer algumas economias. Fui acolhida por uma “família” de amigos todos já voltando para o Brasil nesses meses de julho e agosto, mas que ainda assim deixaram o quarto pronto e foram me buscar no aeroporto. Foram poucos dias de convivência e muita correria: eles arrumando as malas e eu no congresso.  Mas ainda assim madrugada a dentro conversávamos um pouco sobre a faculdade, outro pouco sobre a volta para o Brasil. No meio dessas conversas falaram de uma amiga que desenvolvia um trabalho na comunidade “Costa da Caparica” e começaram a descrever a comunidade. Deu saudades da comunidade da Barra no Brasil, lembrei de outros caminhos percorridos nas estradas de areia de Rio Grande. Conheci a amiga dos meus amigos no sábado em uma festa de despedida, conversamos um pouco. Ela iria visitar a Costa da Caparica no dia seguinte, domingo cedinho e ela perguntou se eu queria conhecer a comunidade. Peguei o número do celular e mandei uma mensagem para nos encontrarmos no metro no domingo.

Domingo cedo, dia de descanso, fui me despedir dos meus amigos e colegas que vieram do Brasil para o Congresso. Um abraço apertado em cada um, um carinho, um sorriso e as lágrimas que ficaram entre descer e não descer. Decidi que ia para a comunidade: corri para pegar o metro. Corri, tropecei, cai, mas cheguei (um pouco atrasada), mas a Aline estava lá me esperando sentada na escadaria ela e o seu amigo Lúcio. Dia meio chuva, meio sol. Lágrimas do céu de Portugal pelos brasileiros que estavam partindo.

  Viemos conversando no ônibus, um tanto de conversa, um tanto de sono. Enquanto nos afastávamos um pouco do centro da cidade. A parada era logo depois da ponte Vasco da Gama, cruzei o rio Tejo. Quase tão poético quanto Fernando Pessoa. Descemos, cruzamos o asfalto e a rodovia correndo (não tinha faixa de pedestres). E entramos em uma estrada de chão. Ao longe já era possível avistar a comunidade, as casas, a fumaça, as cores e uma bandeira do Brasil (ainda na esperança da vitória na copa) hasteada de uma pequena casa ao lado de uma bandeira de Portugal. Aline começou a me contar sobre a comunidade, falou que eles não tinham acesso a água, que tinham que ir buscar andar até uma árvore onde tinha uma torneira. Isso até acabou criando uma nova profissão na comunidade os “aguadeiros” que buscam água em troca de dinheiro. Logo ao lado de uma grande horta que recebia água e fazia a fronteira com a comunidade. O contraste era desconcertante: uma horta aguada pelo encanamento e a comunidade ao lado sem um único cano, sem água tratada e potável.

Difícil de entender para o que eu via em “País de Primeiro Mundo”, pessoas já há muito tempo, mais de 40 anos, sem água. Falaram que os proprietários da horta não podiam dividir a sua água com a comunidade, porque a comunidade é ilegal, não devia estar morando lá. E se acontecesse isso os proprietários eram multados. Mas isso de deveria ou não deveria já não importa aos meus olhos, eles já estão lá. E como disseram cuidam e vivem naquela terra: acordam de manhã com o sol, o campo aberto, cumprimentando o vizinho, nas casas que eles construíram. Cada casa tem o suor das mãos, carinho, lágrimas, dor e esforço. Se aos olhos de quem vê a comunidade do lado de fora são casas simples e pobres (como andei lendo pela internet) é porque nunca encostaram a mão naquelas paredes e pararam para ver a diversidade e os sentimentos que aquelas casas levam.


Antes de chegar na comunidade Dona Vitória uma senhora muito simpática estava colhendo milho no acostamento da estrada entre a horta com água e a estrada. Lugar que ela encontrou para plantar o seu milho. Carrinho de mão, sorriu ao ver Aline, olhou com olhos desconfiados para mim e para o Lúcio, mas logo puxou para um abraço. O Lúcio se ofereceu para levar o carrinho de mão cheio de milho, no meio do caminho os milhos caíram no chão e todos nós corremos para ajuntar. Ela deu risada como quem diz “Eu levando esse milho não deixaria cair”, nós rimos também. Entramos na comunidade, deixamos o milho perto de um fogareiro improvisado que a Dona Vitória fez para cozinha-los. Alguns gatos no meio do caminho, um de olhos azuis ficou certo tempo me encarando. Começamos a entrar em uma ruazinha estreita que Dona Vitória nos guiava com seus chinelos e meias, pisando em pedaços de pedra, azulejos e outros materiais para não pisar no barro. Fomos conhecer a sua casa na chegada eu já vi vários tonéis amarelos, azuis e brancos com água armazenada e ela se explicando que “aqui a gente guarda a água da chuva” e a água de beber é do mercado.  A casa da Dona Vitória era tão bonita, ela foi mostrar para nós 30 e tantos anos construindo e ainda inacabada. Com muito orgulho de cada tijolo, com um amplo banheiro todo colorido com azulejo português. Casa de material, quartos grandes, quanto esforço nessas paredes. Ela estufa o peito e diz com orgulho que ali na Costa da Caparica criou os seus filhos, trabalhou na horta que recebe água e se aposentou. Como estava chovendo mostra ao longe sua plantação de bananas, feijão, milho e outras plantas. Além das cabras, ovelhas e outros animais que cuida com carinho. Uma alegria e orgulho que só sentindo para conseguir entender. Logo deu duas ameixas para cada um e disse para eu lavar com a água da chuva que escorria do telhado, lavei e comi, duas ameixas amarelas e gostosas. O meu café da manhã, depois de tanto correr para conseguir dizer “até logo” e depois chegar na comunidade. Dona Vitória foi buscar seu caderno, passou a vida inteira sem saber ler e agora com orgulho mostrava seu caderno preenchido pela metade. Nele estava escrito seu nome repetidas vezes e outras frases como “Pintei a cozinha”. E ela falou para a Aline que tinha feito as lições de casa. A Aline estava, antes de voltar para o Brasil, ensinando os moradores da comunidade a ler e a escrever.

Meu nome.

  Estávamos conversando sobre a água e apareceu um moço jovem de boné, camiseta verde e calção – o nome dele era Daniel. Veio caminhando e falando que tinha escutado a voz da Aline e que decidiu levantar para ir cumprimenta-la. A risada inconfundível da Aline o fez levantar. Ela logo começou a chama-lo de escritor e eu comecei a perguntar sobre o que ele tinha escrito. Naqueles olhos dava para ver muita sabedoria numa voz calma e tranquila. Dona Vitória pediu para nós sairmos da chuva e voltamos na entrada da comunidade que ela estava cozinhando e preparando o milho para nós.

Decidimos ir na casa de Dorval, mais conhecido como Du, um imigrante de Cabo Verde que se tornou a liderança da comunidade. Eles cuidam de um bar. Cheguei lá e encontrei um tambor embaixo de uma mesa, um Djembe como um morador local que estava sentado no bar me falou. Fiquei curiosa com o som, um certo instinto de percussionista que me corre pelos dedos. O bar ainda estava fechado e ficamos conversando. Fugindo um pouco da chuva. Sentamos nas cadeiras do bar, com os pés no chão batido. Daniel começou a contar sobre repórteres, fotógrafos e a mídia que estava com frequência na Costa da Caparica. E falou com veemência “A comunidade não é museu” e contou das notícias de quem não vai conhecer a comunidade que em poucos minutos acreditam já ter um panorama da comunidade. As fotos distantes e mesmo as fotos de satélite não contam as histórias que correm por aqueles caminhos. São muito mais julgadoras do que informativas. Daquela conversa aprendi muito e eles contaram também da árvore de natal que tinham construído de garrafas PET no último dezembro.  Somou-se a conversa pouco tempo depois o Du.

Ele me cumprimentou com um aperto de mão, e um olhar profundo desses que alcançam nossa alma e falou que o seu nome era Du. Sentou ao lado da Aline, meio tom de despedia, meio tom de “até logo”. Logo começaram a contar sobre o governo querer mudar toda a comunidade para um bloco de apartamentos. Quatrocentas pessoas para os apartamentos. Mas alguns já se mudaram e já voltaram e falam muitos quer dizer que é bom para todos. Definitivamente apartamentos com água encanada não são bons para muitas pessoas da Costa da Caparica, assim como a comunidade da Barra. Para eles o melhor ainda é continuar com as paredes levantadas pelas próprias mãos. Onde iriamos colocar os cabritos, feijão, banana da Dona Vitória? Como seria dançar e celebrar a cultura africana com tambores em um condomínio apertado? Como seria tirar essas pessoas das casas que eles construíram com tanto esmero ao longo de anos, criaram seus filhos, cresceram? Como dizer que eles estão “a invadir” uma terra que já faz parte dos seus dias, que já acolheu os seus pais e filhos? Ora Portugal, quanto do teu sal são lágrimas?

Criou-se uma ideia do que é “bom para uma comunidade”, como um bloco de apartamentos com água encanada, luz e acesso a vários confortos da vida moderna. Mas nunca perguntaram para aquela comunidade o que era bom para eles, é claro que eles querem o conforto que eles querem qualidade de vida melhores. Isso está enraizado na vida deles, mas ao invés de construir um projeto junto com a comunidade de ver quais são os desejos da comunidade, de juntar as nossas mãos humanas. Não, há uma imposição de mudar eles para condições “mais humanas” mas cadê a humanidade nesse processo de construção?

Reflexões sobre a nossa conversa abrigada da chuva nas lonas do bar do Du. Antes de irmos embora ele presenteou a Aline com uma máscara africana, herança da sua terra de Cabo Verde. Pedi se ele tinha saudades e ele disse: “Tenho saudades das coisas que lá já não mais existem”. E falou da infância e da condição do país que foi colonizado pelos portugueses, da guerra depois das seis da tarde, das proibições de ficar sentado do lado de fora de casa, das mortes, do desassossego. E falou da Costa da Caparica do aconchego de levantar e manhã e ver o sol iluminando a comunidade, de poder tocar tambor no final da tarde, de conhecer os vizinhos, cuidar da terra, cuidar das crianças que correm e brincam por aquelas ruas.

Azul.

A chuva acalmou e fomos encontrar dona Vitória que estava cozinhando o milho com carinho. Dona Vitória não se contentou até ter buscado cadeiras e ter deixado todo mundo confortável em baixo de uma pequena tenda que poderia tanto proteger do sol quanto da chuva. Nessa hora, passando do meio dia o sol já estava a pino, esquentando o frio que a água havia trazido. Ficamos conversando e dando risada com o Daniel e alguns moradores que paravam para nos cumprimentar. Um antigo morador que lutou na guerra e ainda sofre entre memórias e uma nova realidade que criou a sua volta para lidar com a dor.

Dona Vitória nos deu o milho primeiro assado e comprou cervejas. Eu sem graça falei que não bebia e ela foi buscar um suco de pera - de pera portuguesa. Tomou a cerveja com nós e depois foi buscar mais uma espiga de milho para cada um, agora milho cozido. Não ficou satisfeita até todos terem comido, e as espigas que sobraram ela colocou em uma sacola plástica para levarmos para comer depois. Deu um abraço apertado e pegou o rosto da Aline entre as mãos em despedida, deu algumas batidas nas bochechas dela, num daqueles olhares alongados que falam mais do que todas as palavras juntas. Um abraço no Daniel e era hora de voltar pelas mesmas marcas que deixamos na chegada.

Cheguei em casa com o rosto queimado em meio a chuva e sol de Portugal. Não, certamente não conheci a Costa da Caparica, mas tive a chance de me aproximar de estar com os olhos abertos para perceber e encontrar essas pessoas maravilhosas que ali vivem. Conhecer vai mais longe, mais profundo, talvez conheci um pedacinho ínfimo da diversidade e beleza que vivem escondidas em Portugal. Fica a minha gratidão por terem me acolhido e recebido em suas casas e o desejo que as autoridades cuidem com mais cuidado e menos superficialidade dessa comunidade. E a sorte ou destino nas probabilidades da vida de ter ficado na casa de estranhos que se tornaram amigos, ter conhecido amigos desses amigos, feito novas amizades, traçado novos passagens inesperadas, e ido parar na comunidade da Costa da Caparica. E a vida é assim, surpreendente em cada caminho que segues.

Costa da Caparica.

Voam abraços,

Mayara Floss

16 julho 2014

(Des)encanto com o popular


Tarsila do Amaral
 A ideia deste texto não é culpabilizar nem encontrar os “vilões” ou verdades, mas questionar. Quando estávamos gravando para o próximo podcast que está por vir da Rua Balsa das 10 caímos nesse denso assunto do desencanto com o popular, com o trabalho, com a Medicina de Família. A discussão que durou cerca de duas horas me acompanhou por dias de reflexão. E aqui seguem algumas reflexões.

Talvez esse desencantamento não vem das amarras que construímos, do SUS que fizemos? Talvez fazendo um paralelo com Paulo Freire um SUS que se torna bancário e deposita as metas nos profissionais de saúde Um SUS que pela pressão do atendimento não permite a curiosidade. Além disso, penso se estamos focando no paciente ou na epidemiologia. Estamos sendo sujeitos do sistema ou objetos? Quando ouço e converso com colegas em geral vejo que o que incomoda o profissional de fato não é paciente, mas a papelada, os colegas desestimulados, burocracia, a “medicina que eu queria fazer mas não consigo”.

Reflito se estamos olhando para os lugares certos. Se estamos de fato avaliando a nossa qualidade e usando isso como motor para transformações, ou estamos apenas nos ajustando nos programas, fechando as estatísticas? Porque tem serviços em que os profissionais continuam com o brilho no olho e outros serviços que não? Porque não estamos aprendendo com quem consegue conciliar as coisas? Se existem os desencantados, existem os encantados e precisamos buscar a troca entre esses.

Aparentemente, chegou-se em um momento histórico em que muitos acham que a construção do SUS terminou ou está muito encaminhada. Acho que isso faz parte de perder a curiosidade, desencantar-se. Assim como é a “inconclusão do ser humano” também é a “inconclusão do sistema”. Não consigo determinar se o desencantamento é de fato com o popular ou “como as coisas funcionam”? Estamos parando para escutar nossos residentes, alunos e profissionais? Estamos avaliando o nosso dia-a-dia e avaliar sem punição apenas para melhorar ou estamos reforçando o sistema bancário de cuidado com os profissionais? Não estamos usando uma “ideologia imobilizadora”, como disse Freire, que adapta os educandos (profissionais) a uma realidade que “não pode ser mudada”?

Penso também se os pacientes deixaram de se encantar ou se desencantaram com os profissionais. Talvez a falta de encanto seja mútua. Quem sabe a busca pelo brilho no olho deva não ser apenas dos profissionais, mas também da comunidade. Quiçá buscando um consiga-se alcançar o outro e o encanto também ser conjunto. Afinal,  parafraseando o Luan Menezes, o cuidado é como um abraço, não tem sentido fazer sozinho.

Acredito que encantar-se depende da liberdade, criatividade de tempo e dedicação. Tenho a impressão que criamos tantas ferramentas que muitos não sabem usar e disso derivou uma ideia de contemplação e reclamação dos meios. Tenho minhas dúvidas quanto ao sistema bancário e condenatório não só em relação a cobrança do sistema aos profissionais mas entre profissionais e entre usuários e profissionais.  Mas antes de desencantar penso que existiu primeiro um encantamento e penso na busca para encontrá-lo.


[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

05 março 2014

Distância


Caminho entre Dublin e Galway, lembra-me o caminho para a Barra

     Sempre acreditei que a distância aguça os sentidos. Agora vivendo do outro lado do Atlântico percebo que faço parte de uma pequena cidade do interior irlandês, assim como ela faz parte de mim.

      Porém, com meu coração que é do mundo, mas também brasileiro visito a comunidade da Barra repetidamente, caminho pelo Hospital Universitário e vou as reuniões da Liga de Educação em Saúde contando as histórias que vivi para as pessoas daqui. 

     A alma pescadora vê no mar de Galway os barcos da comunidade da Barra no Brasil. E penso com carinho nas pessoas especiais que mesmo distantes também fazem parte de mim. E assim vamos virando essa misturança de experiências, sabe aquela "alma de mundo"? Em algum momento a costura das vivências se tornou mais intensa que a sutura do corpo, aprendo sobre gente, não apenas sobre corpos.

     O ar frio entra nas minhas narinas e a lua no céu não parece tão distante das pessoas queridas. Toco com palavras a comunidade e mesmo distante as artesãs continuam a me ensinar.


Voam abraços,

Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

23 novembro 2013

A colcha de retalhos


    Chega um momento da faculdade que você percebe quase todos ao seu redor infelizes, tristes com o curso, com o ser médico, abatidos porque estão internados, porque são pacientes. Gira um certo descontentamento por todos os motivos desde a dor até a carga horária. A felicidade é estar no lugar certo e poder ser sem fazer o tempo inteiro. E foi nessa felicidade original que cada um constrói para si que decidi fazer da medicina meu autoconhecimento, não que eu consiga fazer isso o tempo inteiro, mas é a minha tentativa.

    Caso contrário a vida é muito curta para ser pequena. Sempre vai faltar alguma coisa, o que importa é saber se isso, mesmo depois de suprir essa falta, irá me fazer plena ou deixar-me mais vazia. Eu preciso transbordar. Hoje, a Liga de Educação em Saúde estava lá junto com a comunidade para o anúncio da implementação da Estratégia de Saúde da Família na Comunidade da Barra.

    Estava um dia de sol, mas de vento gelado, como são a maioria dos dias da Barra. Chegamos (eu e a Clarissa) cedo e encontramos o enfermeiro Beto e sua esposa Rosane no CTG – Xirú da comunidade. Apesar de dias de cansaço e de certo desanimo, porque somos todos humanos, sempre tem aquela força e energia para encontrar pessoas especiais que tem um sentido muito mais profundo do que apenas ter, mas de fazer diferente. Sair do mundo de concreto e diretrizes médicas é revigorante. Já chegamos e começamos a organizar o espaço, varrer todo o salão central, carregar os bancos, organizar o local para a recepção da Secretaria de Saúde e dos representantes da Estratégia de Saúde da Família.
Foto: Clarissa Côrrea
     Sabe, mesmo que a ciência queira subdividir as patologias, sistematizar o corpo humano, o ser humano não nasceu com manual de instruções. A comunidade não tem manual de instruções e é esse eterno desvendar é que faz o tempo valer a pena. A parte mais marcante da reunião foi certamente a Suzi (líder dos Grupos de Artesã da Barra) perguntando e cobrando sobre a Construção do Conselho Local de Saúde e saber que essa movimentação que começamos com conversas sobre o Sistema Único de Saúde e a tentativa de construção do Conselho Local de Saúde influenciaram na decisão da implementação da Estratégia de Saúde da Família na Barra.
Foto: Clarissa Côrrea
     Essa vontade de ser mais de cada um é o que faz não sentir medo de ser feliz, de poder estar completo junto com os outros, de compreender que mesmo completamente diferentes e originais, somos muito iguais, independente de formação, faculdade, graduação, MBA, mestrado, doutorado, alfabetização. Não é essa educação de níveis que nos faz saber mais ou menos, é perceber as nossa pluralidade humana. No final da reunião me perguntaram (o pessoal da prefeitura) se eu morava na comunidade, eu disse que não, mas é absolutamente incrível perceber que eu faço parte dela, mesmo morando a 20km de distância. Afinal, todos fazemos, mas nem sempre nos damos conta.
    Fazemos parte da mesma linha que costuram os pedaços de nós em uma colcha infinita de retalhos. E devemos parar de deixar a felicidade para a próxima parada, vou ser feliz depois que o ano letivo terminar, depois que eu me formar, depois que eu comprar um carro, depois que eu tiver dinheiro, depois que meus filhos crescerem, depois que eu me aposentar. Deixamos a vida para a próxima estação, enquanto ela se desdobra, como se desdobram as ondas da lagoa na Barra, como se enrola a linha que a artesã costura para formar nossa colcha de retalhos. A felicidade está na Barra, na medicina e por onde os meus pés me levarem, sem paradas ou estações. 

Reunião para conversar sobre a tireoide depois da reunião com a secretaria, nós segurando as colchas de retalho que servirão para a capa do Livro de vivências da Liga de Educação em Saúde.
Voam abraços,

Mayara Floss

24 maio 2013

No fio

Sabe, existem algumas pessoas que você tem certeza que são amigos de infância, mas na verdade vocês se conheceram a poucos minutos e de repente parecem que se conhecem desde a tenra existência. Pessoas especiais que basta um olhar para você ficar convencido e algumas palavras para você começar a buscar memórias, porque não seria possível imaginar que você e essa pessoa não se conheciam antes. Laços de amizade profundos criados em poucos instantes.

Isso acontece poucas vezes. Certo dia fui visitar a Comunidade da Barra, ir conhecer lá, uma vila que dizem ter uns três mil habitantes, a economia gira basicamente em torno da pesca. Além do Porto que parece colocar suas garras, digo guindastes, quase que por cima da comunidade para impor a sua expansão. São pessoas que não podem construir casas porque a todo momento há a desconfiança de que alguém irá tirar deles aquele canto onde trabalham e vivem.

O caminho da Barra é todo cheio de contrastes, pegando o caminho que sai do Hospital Universitário do Rio Grande até a Barra . Você sai do centro da cidade de Rio Grande, andando por trechos de calçamento e asfalto hora acompanhado pela Lagoa dos Patos, pelo Porto, pelos casebres perto do Porto, pelas fábricas, pela fumaça, pelo trânsito, pela natureza... E a Barra fica assim em uma linha divisória entre o Porto do Rio Grande e a Praia do Cassino.
 
Ida para a Barra

Essa é a visão de fora da Barra. Mas de dentro é muito mais bonita e eu quis conhecer o grupo de Artesãs da Barra do qual eu já tinha comprado um chaveiro em formato de tartaruga. Quando fui conhece-las elas estavam no final de uma reunião e fiquei muito encantada com o grupo, com a força que emanava daquelas mulheres. Logo comecei a falar de um projeto que eu participava chamado “Liga de Educação em Saúde”, começamos a conversar sobre saúde logo que elas descobriram que eu era aluna do curso de medicina.

Pensei que talvez se elas quisessem poderíamos tentar visitá-las com mais frequência, tentar nos conhecer melhor e que elas conhecessem o projeto. Elas disseram que tudo bem até, após uma longa conversa, mas que elas tinha uma grande encomenda de artesanato e que iriam demorar para poder nos receber. Foram várias encomendas, mas sempre íamos lá para conhecer melhor o grupo, passagens rápidas nos intervalos de algumas atividades delas no final de semana. Sempre fomos bem recepcionados, logo sabíamos o nome da maioria das mulheres e elas sabiam o nosso nome, tinham nos apelidado e faziam brincadeiras com nós.

Nem bem percebíamos e depois de cruzar vários finais de semana a estrada da Barra já fazíamos parte de certa maneira daquele grupo de mulheres. Então um dia elas disseram que poderíamos fazer uma reunião que elas chamariam outras mulheres e nesse dia pensamos na nossa grande responsabilidade para conhecermos, é como se passasse uma energia estranha um misto entre animação e responsabilidade. Organizamos uma Kombi via universidade, foi difícil conseguir a viatura, mas insistimos – como sempre.
Dentro do centro comunitário da Barra com os artesanatos e ouvindo e aprendendo com a artesã Susana. Foto: Ernande
 Em um determinado instante nos transformamos em protagonistas juntos com as Mulheres e artesãs da Barra. Logo que conhecia líder do grupo a Susana, no primeiro dia que fui lá, percebi a força que emanava do trabalho delas. Precisou um olhar, poucas palavras e um abraço para sabermos que poderíamos confiar uma na outra. E assim tem sido, com os colegas da Liga, com os amigos de infância de pouco tempo que tenho feito ao longo desses quatro anos de medicina.
 
As reuniões tem acontecido em meio a relatos, a vivências e a intensidade que é viver. Nem sempre pude participar das reuniões, nem sempre a grade curricular e generosa com os acadêmicos. Mas nas reuniões teóricas ouvíamos o tocante viver dos relatos nas palavras dos nossos colegas. A Barra tem um quê de especial, uma teia envolvente, logo que você chega naquelas ruas de casas coloridas. E assim vamos vivendo nesse tênue fio da vida, das artesãs, da linha dos pescadores, da medicina e de nós.
Visão da casa de uma artesã, uma teia, um fio que nos envolve. Foto: Ernande

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