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26 outubro 2016

Um ensaio sobre sonhar

Sonhos doces em caldas.
Talvez um ensaio sobre sonhar poderia ser uma fase do sono, estritamente calculada com máquinas de leitura do simples ato de dormir. Mas o sonho que quero escrever aqui é o sonho que você lava o rosto pela manhã, "Devia era, logo de manhã, passar um sonho pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga." - como já escreveu Mia Couto.

O sonho queimando em atividade da Liga de Educação em Saúde, tudo de mais especial que você deseja: "carro, casa, saúde, ser médico, ver os filhos crescerem...". Escreva aqui, neste papel, juramentado que ninguém irá ler, tocar, o sonho é todo teu. Clarice iria frizar: "acredito em sonhos e não em utopias".

Guardamos tudo com carinho numa lata de pêssego em calda, sonhos doces, doçuras, conexões, amorosidades, bens materiais. Eu que tenho a tarefa de passar riscar o fósforo e deixar a lata, a lágrima, os sentidos e sentimentos queimarem. Toda a esperança pegando fogo. Reflexões com aquela chama viva da lata de pêssego.

Nos conectamos uns com os outros: "talvez nossos sonhos não se realizem" ou "talvez os sonhos daquela pessoa, sujeito, paciente queimaram, e por isso é difícil lidar com ele". Ecoa naquela lata Drummond: "Fácil é sonhar todas as noites. Difícil é lutar por um sonho".

Ontem escuto na família rural "Deus sabe melhor do que nós os nossos sonhos", então podemos "sonhar errado"? O sonho impossível de Drummond, penso nele, nos meus sonhos, no fogo queimador de sonhos e que faz nascer empatia, cuidado, reflexões. "Afinal, há é que ter paciência, dar tempo ao tempo, já devíamos ter aprendido,
e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte.", Guimarães diz ao meu ouvido.

Vejo a menina de 12 anos me perguntando: "mas tia, quantas abdominais eu preciso fazer para perder a barriga, meu sonho é perder a barriga". Conversamos sobre sonhos, mas ela é resoluta, quer perder a barriga e colocar a "gordura nas pernas". Fico um pouco sem saber o que fazer eu ajudando a realizar sonhos? Sonho de perder barriga?

Volto aos sonhos queimados, talvez queimando ainda.

"Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum." - Alvaro de Campos, Fernando Pessoa.

Sonhos cruzam a porta do consultório, notícias que se transformam em lágrimas em atestado de final de sonhos. Como costurar os sonhos perdidos, queimados, atrapalhados, mudados?

Eis que a Suzana e a Ledeni, artesãs da Barra que já tinham planejado fazer livros de tecido com os extensionistas mudam os planos e decidem que vão nos ensinar a fazer um "filtro dos sonhos". Vão costurar os nossos sonhos. E fazer um bem grandão para colocar todos os sonhos ali e pendurar na faculdade de medicina. Todos trabalham, coletamos cipó, a Leda tem um ponto diferente da Suzi, cada uma costura sonhos à sua maneira. Em Terra Sonâmbula de Mia Couto o "sonho é o olho da vida."

Desenhamos no cipó os sonhos costurados com as mãos carinhosas da Suzi e da Leda "voltando um ponto" ou "ajustando uma distância". Elas não descansam até que todos tenham sua teia de sonhos e dizem: "ninguém pode ficar sem".

Costuramos sonhos, recortamos, queimamos, renascemos, re-escrevemos, até resonhamos. Uma educação popular sonhada, costurada, emendada, de aproximação. E vivemos em terras mágicas de repensar o próximo, se aproximar do outro, aprendermos a cuidar, como diz Julio, de seres extraordinários.

Costurando sonhos
Abraços que pousam,
Mayara Floss

22/10/16

04 dezembro 2015

CORRENTINHA DE CROCHÊ

Charge: ladrões de utopia[1]
Ernande Valentin do Prado

Em 1996, num sábado, por volta das 20 horas, as vésperas das eleições, entrei no comitê de campanha do Partido do Trabalhadores (PT) no Bairro Eucaliptos, na cidade de Fazenda Rio Grande, região metropolitana de Curitiba. Rosa e Salete faziam correntinhas de crochê embaixo da melhor lâmpada da sala, para amarrar as credenciais que seriam usadas no dia seguinte pelos fiscais e delegados do partido na eleição.
Alguém tomou para si a tarefa de confeccionar e imprimir, em casa, cada uma das credenciais que os militantes destacados para fiscalização das sessões eleitorais usariam. Ficou muito bonito, elegante, bem feito, expressava toda a dedicação da militância àquela campanha. Neila, Fernando e Ednei, colaram cada uma das figuras no papel cartão, que alguém trouxe de uma gráfica aonde trabalhava, já cortado no tamanho certo e com os furos por onde passaria o barbante.
Mas para Rosa e Salete, barbante era inaceitável:
— Fica feio, disseram elas.
— Vão dar conta de fazer correntinhas para todas as credenciais? Perguntei incrédulo e achando aquilo uma perda de tempo.
— Claro, já fizemos tudo isso, respondeu Rosa e Salete mostrou uma caixa com as credenciais e as correntinhas que já estavam prontas.
— Mas não têm nada mais importante para fazer, ainda indaguei, sem me dar por vencido.
— Não! Disseram de forma categórica.
Salete, Rosa, Neila, Fernando, Ednei, Dona Maria, Toninho, Samuel, seu Moura, Chico Bento, Abel, Santino, Bonette, Domingos, Zé Aparecido, Zé Francisco e seus irmãos, Vilmar, Emerson, Lirani, Dowglas, José Marcelo, Sirlei e mais duas dezenas de pessoas, que nem consigo lembrar os nomes, passaram o dia a disposição do partido: atenderam quem procurava o comitê atrás de informações, lembravam o local e o horário das votações, aonde cada militante deveria se posicionar no dia seguinte para o último esforço. Cálculos dos institutos de pesquisa diziam que 30% dos votos eram conseguidos na boca de urna, e ninguém fazia isso tão bem quanto a militância do PT. 
Rosa e Salte distribuíam o material aos militantes, orientavam como cada um deveria agir, quem procurar em caso de problemas, de precisar de mais material, a hora que chegaria o lanche, o companheiro de dupla e revezamento.
— A gente passou o dia aqui, fizemos tudo isso e tudo que falta vai ficar pronto até amanhã, não esquenta a cabeça.
— Mas já é tarde, tem muita coisa para fazer, ainda insisti! Os dedos de vocês devem estar doendo, devem estar cansadas e amanhã ainda vamos trabalhar o dia inteiro.
— Quer parar de encher o saco! Disse Salete com seu costumeiro sorriso gigante no rosto. E concluiu: pegue aqui uma correntinha e passe por esse buraquinho...
No dia seguinte iriamos pôr a prova toda nossa campanha. Já tinha agendada uma festa de comemoração para as 20 horas no comitê do Partido, construído de forma coletiva no terreno do Domingos. Depois da meia-noite, um grupo ainda sairia para posicionar material de campanha em pontos estratégicos e retirar material dos adversários da direita. Foram meses de preparação, de trabalho diário, de vivências intensas, muito aprendizado, confraternizações, solidariedades, trabalho coletivo. Era a primeira eleição municipal do recém formado diretório municipal. Não tínhamos nenhum cabo eleitoral, nenhuma pessoa contratada para trabalhar exclusivamente nas eleições. Cada um dos candidatos a vereador, o candidato a prefeito, a vice, os coordenadores de campanha, foram escolhidos de forma democrática em cada um dos quatro núcleos espalhados pela cidade. Todos os militantes filiados ao partido puderam e votaram, de forma que o resultado lógico era se responsabilizar pela campanha, pelo mandato de cada um dos eleitos (caso houvesse). O comitê de campanha foi emprestado por um militante (Zé Aparecido), metalúrgico que tinha a sala para aluguel, mas deixou para gente usar, também cuidou de toda pintura do ambiente, pagava a água e a energia. O comitê fazia tanto sucesso, ficava cheio o dia todo com voluntários e até com adversários que passavam para bater papo e espionar. Depois das aulas juntavam estudantes em frente ao comité e ficavam entregando panfletos para os passantes e para os carros que desaceleravam no quebra-molas. 
Tínhamos uma Kombi muito velha à nossa disposição, também emprestada por um dentista, Luiz, candidato a vice prefeito e casado com a Rosa. O combustível a gente conseguia fazendo “vaquinha” entre todos ou quem dirigia se encarregava de encher o tanque. Com ela andávamos toda a cidade fazendo campanha, carregando pessoas e material: panfletos, cartilhas, cartazes, baldes com cola, que Domingos nos ensinou a fazer, e tinta, broxas e pincéis. Não era difícil ela enguiçar e pessoas da comunidade empurrar para pegar no tranco. Quem dirigia a Kombi, quase sempre, era o Toninho (meu irmão), o Elvis, o Bonette, o Leslie, nosso candidato a prefeito. Todos os fins de semana, sábados e domingos, feriados, dias santos, que antecederam os sessenta dias finais das eleições. A militância se reunia bem cedo: crianças, mulheres, idosos, homens, gente das igrejas, das associações de moradores, dos sindicatos, das escolas: professores, estudantes, zeladores. Cada fim de semana visitávamos casa por casa de determinado bairro: distribuíamos material de campanha, colávamos adesivos nas janelas, nos portões, nos carros e, principalmente, conversávamos com as pessoas. Chamávamos de arrastão. Íamos em peso, com a Kombi de apoio, quem tinha carro ia com ele, quem tinha bicicleta, moto, ia com elas, que não tinha nada ia a pé ou na Kombi (uma vez apareceu uma charrete).
No fim do dia, por volta das 18 horas, nos reuníamos no comitê de campanha e avaliamos o que tínhamos conseguido. Em todas as reuniões alguém aparecia com um bolo, uma torta, um prato de salgado. Fazíamos um leilão estranho: calculava-se o valor do bolo, determinava-se que tínhamos que arrecadar o valor. Cada um dava o que podia ou queria. Com o dinheiro comprávamos refrigerantes no bar da frente. Quase sempre o dono do bar dava os refrigerantes ou um desconto muito significativo. Era a forma dele participar. E quase sempre sobrava dinheiro para as despesas da campanha (quase nada, mas somava-se a outros quase nada).
Era o momento da celebração do dia. Microempresário, pedreiro, profissional liberal, músico, professor, dentista, metalúrgico, motorista de ônibus, sapateiro, padeiro, advogado, todos ombro-a-ombro. Os adolescentes contavam histórias das visitas, as discussões com pessoas que não acreditavam que o partido era uma opção, que nossos candidatos eram honestos, que não recebíamos doações de empresários, que iriamos mudar a cidade, o estado, o Brasil, o mundo. As mulheres vinham com seus filhos, com o marido ou não. O bebê da Rosa passava de braço em braço enquanto ela, sempre ocupada, dava jeito em alguma coisa. Os militantes da igreja falavam de sua fé, do que representava aquele dia, aquele estar junto. Os do sindicato falavam do momento histórico, da união da classe trabalhadora. Quem estivesse afim falava: as lideranças, os candidatos, os militantes, curiosos que se juntavam por causa do barulho, da agitação, por ver rostos conhecido, por querer comer o bolo. Era, mais do que qualquer coisa, uma festa, um momento de confraternização, de combinar aonde seria o próximo arrastão, o que seria feito durante a semana. 
Quase sempre apareciam para trabalhar na campanha durante a semana: estudantes, pessoas de folgas ou desempregadas. E, mesmo quem trabalhava o dia todo, oferecia-se para distribuir panfletos na fila de ônibus, antes de embarcar, na porta da firma, fazer visitas em casas de conhecidos, depois do trabalho.
Nosso candidato a prefeito tinha uma Brasília amarela muito velha, com ela andava para todo lado fazendo campanha. Parava o carro nos lugares mais movimentados e deixava tudo aberto.
— Não vai fechar, perguntava eu? Ele respondia: quem vai querer roubar o carro de um PTista?
Em um certo sábado, estava agendo a pintura de um muro, cedido em um lugar muito bom do bairro, por onde passava a principal linha de ônibus, visibilidade gigante. O morador disse que todos os candidatos haviam ido lá pedir o muro, queriam até pagar pelo espaço, mas ele não cedeu. Para lá foi Vilmar, nosso pintor de muro, de faixas, enfim, tudo que era arte, letras e cores, era com ele. Quase sempre fazia isso nas horas de folgas e, embora fosse seu ganha pão, nada cobrava pelo serviço e, muitas e muitas vezes, ainda dava a tinta, os pinceis, as réguas.
Quando cheguei já vi de longe uma aglomeração de gente. Quase sempre, nos fins de semana, essas atividades viravam festa. Lá estava nosso candidato a prefeito ajudando a pintar o muro, segurando a régua para Vilmar riscar. Até tinta no rosto já tinha.
— Você tem mesmo que estar aqui, disse eu, sem esconder certa irritação e impaciência. A tarefa dele, naquele dia e horário, não era pintar muro.
— Vim ajudar, respondeu na maior calma.
Leslie era quase sempre muito calmo e relevava meu senso de planejamento quase sempre na fronteira entre a objetividade e o autoritarismo. Ele foi meu professor de Literatura no segundo grau, no Colégio Décio Dossi. Estávamos na primeira reunião de fundação do PT em Fazenda Rio Grande, sem que um soubesse das atividades “subversivas do outro”. E foi o primeiro candidato a prefeito de nossa história na cidade. Depois, em outra eleição, foi o vereador mais votado, mas isso é outra história.
— Você não deveria estar na reunião com a associação comercial?
— Já fui, terminou logo, não tinha quase ninguém. Por isso vim ajudar aqui.
— Tá bom, disse eu. Mas não precisa pintar mais, deixa o Vilmar trabalhar, tem gente demais para ajudá-lo.  Vamos aproveitar para distribuir uns santinhos, fazer visitas as lideranças da paróquia que moram aqui perto.
Leslie, sem discutir, disse:
— Então vamos.
O que queria dizer, quando comecei essa conversa, é o seguinte: as correntinhas de crochê, apesar de hoje não significar absolutamente nada para o que o PT se tornou, era só uma delicadeza coerente, bonita, significativa e representativa de um modo de fazer/ser, como todas as outas que vivemos nessa eleição de 1996 em particular, mas também durante mais de 10 anos de intensos sonhos e utopias, com ou sem eleições para disputar.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


1. Para saber mais sobre Lor, o cartunista que fez essa charge, clique aqui 

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