Em 1996, num sábado,
por volta das 20 horas, as vésperas das eleições, entrei no comitê de campanha
do Partido do Trabalhadores (PT) no Bairro Eucaliptos, na cidade de Fazenda
Rio Grande, região metropolitana de Curitiba. Rosa e Salete faziam correntinhas
de crochê embaixo da melhor lâmpada da sala, para amarrar as credenciais que
seriam usadas no dia seguinte pelos fiscais e delegados do partido na eleição.
Alguém tomou para si a
tarefa de confeccionar e imprimir, em casa, cada uma das credenciais que os
militantes destacados para fiscalização das sessões eleitorais usariam. Ficou
muito bonito, elegante, bem feito, expressava toda a dedicação da militância àquela
campanha. Neila, Fernando e Ednei, colaram cada uma das figuras no papel
cartão, que alguém trouxe de uma gráfica aonde trabalhava, já cortado no
tamanho certo e com os furos por onde passaria o barbante.
Mas para Rosa e
Salete, barbante era inaceitável:
— Fica feio, disseram
elas.
— Vão dar conta de
fazer correntinhas para todas as credenciais? Perguntei incrédulo e achando
aquilo uma perda de tempo.
— Claro, já fizemos
tudo isso, respondeu Rosa e Salete mostrou uma caixa com as
credenciais e as correntinhas que já estavam prontas.
— Mas não têm nada mais
importante para fazer, ainda indaguei, sem me dar por vencido.
— Não! Disseram de forma categórica.
Salete, Rosa, Neila,
Fernando, Ednei, Dona Maria, Toninho, Samuel, seu Moura, Chico Bento, Abel, Santino, Bonette,
Domingos, Zé Aparecido, Zé Francisco e seus irmãos, Vilmar, Emerson, Lirani,
Dowglas, José Marcelo, Sirlei e mais duas dezenas de pessoas, que nem consigo
lembrar os nomes, passaram o dia a disposição do partido: atenderam quem procurava
o comitê atrás de informações, lembravam o local e o horário das votações, aonde
cada militante deveria se posicionar no dia seguinte para o último esforço. Cálculos
dos institutos de pesquisa diziam que 30% dos votos eram conseguidos na boca de
urna, e ninguém fazia isso tão bem quanto a militância do PT.
Rosa e Salte distribuíam
o material aos militantes, orientavam como cada um deveria agir, quem procurar
em caso de problemas, de precisar de mais material, a hora que chegaria o
lanche, o companheiro de dupla e revezamento.
— A gente passou o dia
aqui, fizemos tudo isso e tudo que falta vai ficar pronto até amanhã, não
esquenta a cabeça.
— Mas já é tarde, tem
muita coisa para fazer, ainda insisti! Os dedos de vocês devem estar doendo,
devem estar cansadas e amanhã ainda vamos trabalhar o dia inteiro.
— Quer parar de encher
o saco! Disse Salete com seu costumeiro sorriso gigante no rosto. E concluiu:
pegue aqui uma correntinha e passe por esse buraquinho...
No dia seguinte iriamos
pôr a prova toda nossa campanha. Já tinha agendada uma festa de comemoração
para as 20 horas no comitê do Partido, construído de forma coletiva no terreno do Domingos.
Depois da meia-noite, um grupo ainda sairia para posicionar material de
campanha em pontos estratégicos e retirar material dos adversários da direita.
Foram meses de preparação, de trabalho diário, de vivências intensas, muito aprendizado,
confraternizações, solidariedades, trabalho coletivo. Era a primeira eleição municipal
do recém formado diretório municipal. Não tínhamos nenhum cabo eleitoral,
nenhuma pessoa contratada para trabalhar exclusivamente nas eleições. Cada um
dos candidatos a vereador, o candidato a prefeito, a vice, os coordenadores de
campanha, foram escolhidos de forma democrática em cada um dos quatro núcleos
espalhados pela cidade. Todos os militantes filiados ao partido puderam e
votaram, de forma que o resultado lógico era se responsabilizar pela campanha,
pelo mandato de cada um dos eleitos (caso houvesse). O comitê de campanha foi emprestado
por um militante (Zé Aparecido), metalúrgico que tinha a sala para aluguel, mas
deixou para gente usar, também cuidou de toda pintura do ambiente, pagava a
água e a energia. O comitê fazia tanto sucesso, ficava cheio o dia todo com
voluntários e até com adversários que passavam para bater papo e espionar.
Depois das aulas juntavam estudantes em frente ao comité e ficavam entregando
panfletos para os passantes e para os carros que desaceleravam no
quebra-molas.
Tínhamos uma Kombi
muito velha à nossa disposição, também emprestada por um dentista, Luiz, candidato a vice prefeito e casado com a
Rosa. O combustível a gente conseguia fazendo “vaquinha” entre todos ou quem
dirigia se encarregava de encher o tanque. Com ela andávamos toda a cidade
fazendo campanha, carregando pessoas e material: panfletos, cartilhas,
cartazes, baldes com cola, que Domingos nos ensinou a fazer, e tinta, broxas e pincéis.
Não era difícil ela enguiçar e pessoas da comunidade empurrar para pegar no
tranco. Quem dirigia a Kombi, quase sempre, era o Toninho (meu irmão), o Elvis,
o Bonette, o Leslie, nosso candidato a prefeito. Todos os fins de semana,
sábados e domingos, feriados, dias santos, que antecederam os sessenta dias
finais das eleições. A militância se reunia bem cedo: crianças, mulheres,
idosos, homens, gente das igrejas, das associações de moradores, dos sindicatos,
das escolas: professores, estudantes, zeladores. Cada fim de semana visitávamos
casa por casa de determinado bairro: distribuíamos material de campanha,
colávamos adesivos nas janelas, nos portões, nos carros e, principalmente, conversávamos
com as pessoas. Chamávamos de arrastão. Íamos em peso, com a Kombi de apoio,
quem tinha carro ia com ele, quem tinha bicicleta, moto, ia com elas, que não
tinha nada ia a pé ou na Kombi (uma vez apareceu uma charrete).
No fim do dia, por
volta das 18 horas, nos reuníamos no comitê de campanha e avaliamos o que tínhamos conseguido. Em
todas as reuniões alguém aparecia com um bolo, uma torta, um prato de salgado. Fazíamos
um leilão estranho: calculava-se o valor do bolo, determinava-se que tínhamos
que arrecadar o valor. Cada um dava o que podia ou queria. Com o dinheiro
comprávamos refrigerantes no bar da frente. Quase sempre o dono do bar dava os
refrigerantes ou um desconto muito significativo. Era a forma dele participar.
E quase sempre sobrava dinheiro para as despesas da campanha (quase nada, mas
somava-se a outros quase nada).
Era o momento da
celebração do dia. Microempresário, pedreiro, profissional liberal, músico, professor,
dentista, metalúrgico, motorista de ônibus, sapateiro, padeiro, advogado, todos
ombro-a-ombro. Os adolescentes contavam histórias das visitas, as discussões
com pessoas que não acreditavam que o partido era uma opção, que nossos
candidatos eram honestos, que não recebíamos doações de empresários, que
iriamos mudar a cidade, o estado, o Brasil, o mundo. As mulheres vinham com
seus filhos, com o marido ou não. O bebê da Rosa passava de braço em braço
enquanto ela, sempre ocupada, dava jeito em alguma coisa. Os militantes da
igreja falavam de sua fé, do que representava aquele dia, aquele estar junto. Os
do sindicato falavam do momento histórico, da união da classe trabalhadora. Quem estivesse afim falava: as lideranças, os candidatos, os militantes,
curiosos que se juntavam por causa do barulho, da agitação, por ver rostos
conhecido, por querer comer o bolo. Era, mais do que qualquer coisa, uma festa,
um momento de confraternização, de combinar aonde seria o próximo arrastão, o
que seria feito durante a semana.
Quase sempre apareciam para trabalhar na
campanha durante a semana: estudantes, pessoas de folgas ou desempregadas. E,
mesmo quem trabalhava o dia todo, oferecia-se para distribuir panfletos na fila
de ônibus, antes de embarcar, na porta da firma, fazer visitas em casas de
conhecidos, depois do trabalho.
Nosso candidato a
prefeito tinha uma Brasília amarela muito velha, com ela andava para todo lado
fazendo campanha. Parava o carro nos lugares mais movimentados e deixava tudo
aberto.
— Não vai fechar,
perguntava eu? Ele respondia: quem vai querer roubar o carro de um PTista?
Em um certo sábado,
estava agendo a pintura de um muro, cedido em um lugar muito bom do bairro, por
onde passava a principal linha de ônibus, visibilidade gigante. O morador disse
que todos os candidatos haviam ido lá pedir o muro, queriam até
pagar pelo espaço, mas ele não cedeu. Para lá foi Vilmar, nosso pintor de muro,
de faixas, enfim, tudo que era arte, letras e cores, era com ele. Quase sempre
fazia isso nas horas de folgas e, embora fosse seu ganha pão, nada cobrava pelo
serviço e, muitas e muitas vezes, ainda dava a tinta, os pinceis, as réguas.
Quando cheguei já vi de
longe uma aglomeração de gente. Quase sempre, nos fins de semana, essas atividades viravam festa. Lá estava nosso candidato a prefeito ajudando
a pintar o muro, segurando a régua para Vilmar riscar. Até tinta no rosto já
tinha.
— Você tem mesmo que
estar aqui, disse eu, sem esconder certa irritação e impaciência. A tarefa
dele, naquele dia e horário, não era pintar muro.
— Vim ajudar, respondeu
na maior calma.
Leslie era quase sempre
muito calmo e relevava meu senso de planejamento quase sempre na fronteira
entre a objetividade e o autoritarismo. Ele foi meu professor de Literatura no
segundo grau, no Colégio Décio Dossi. Estávamos na primeira reunião de fundação
do PT em Fazenda Rio Grande, sem que um soubesse das atividades “subversivas do
outro”. E foi o primeiro candidato a prefeito de nossa história na cidade.
Depois, em outra eleição, foi o vereador mais votado, mas isso é outra
história.
— Você não deveria
estar na reunião com a associação comercial?
— Já fui, terminou
logo, não tinha quase ninguém. Por isso vim ajudar aqui.
— Tá bom, disse eu. Mas
não precisa pintar mais, deixa o Vilmar trabalhar, tem gente demais para ajudá-lo.
Vamos aproveitar para distribuir uns
santinhos, fazer visitas as lideranças da paróquia que moram aqui perto.
Leslie, sem discutir,
disse:
— Então vamos.
O que queria dizer, quando comecei essa
conversa, é o seguinte: as correntinhas de crochê, apesar de hoje não
significar absolutamente nada para o que o PT se tornou, era só uma delicadeza
coerente, bonita, significativa e representativa de um modo de fazer/ser, como
todas as outas que vivemos nessa eleição de 1996 em particular, mas também
durante mais de 10 anos de intensos sonhos e utopias, com ou sem eleições para
disputar.