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Livro de anotações no Sint-Janshospital |
Fui visitar Brugge na Bélgica e aproveitei para ver a minha prima que não via há mais de ano. Em Brugge passei por um museu de hospital criado no século XII, o Sint-Janshospital. O Hospital foi uma iniciativa das autoridades municipais e de uma burguesia rica da época. Eu quase não entrei no hospital: “tem tanto disso no meu dia-a-dia”. Mas depois que o namorado da minha prima insistiu, adentrei as portas de pedra do antigo hospital. Logo cheguei e pensei “ainda bem que eu vim”.
Encontrei algumas pinturas famosas daquelas que você encontra recorrentemente nas aulas do primeiro ano da faculdade. Uma coisa muito legal foi ver as anotações dos médicos da época (há mais de 1000 anos atrás), os desenhos, os prontuários médicos enrolados como pergaminho. Mas não foi isso que me impressionou de fato. Foi cantinho falando da história do hospital falando no tratamento da alma.
Estava escrito: “A morte em um hospital não era incomum. Por isso, a atenção espiritual estava fortemente presente. Sint-Jan contava com o seu próprio cura. O hospital tinha o direito de enterrar os mortos. A capela do hospital era parte da sala hospitalar. A devoção dos santos e da cultura popular religiosa estavam intimamente relacionados com o funcionamento do hospital. As freiras assistiam o cura quando um paciente ia morrer.”
Em 1188 quem entrava no hospital eram as pessoas em apuros, os viajantes e peregrinos. E as principais “virtudes” do hospital era a hospitalidade e a caridade. Outra passagem que chamou atenção foi que até a metade do século XIX o hospital não era um centro médico como hoje. Como o conhecimento médico era limitado, as pessoas recorriam a remédios alternativos. E por isso era tão evidente a busca da “cura das almas”.
Fiquei a pensar. A medicina avançou tanto que praticamente tudo que não é aferível não é válido. Como disse Helman (2009, p.113): “Quando um fenômeno não pode ser observado ou medido objetivamente por exemplo, as crenças de uma pessoa sobre as causas de uma doença, tal fenômeno é, de certa forma menos ‘real’ do que algo como o nível da pressão arterial do paciente ou a sua contagem de leucócitos (...)”¹.
Dá-se mais valor a medição, a contagem, ao índice, ao órgão do que a pessoa, do que as palavras do paciente. Da história e da vida que está por trás da anamnese. Quantos séculos vamos ter que voltar para falarmos que não são só as medidas? Quanto nós “avançamos” e quanto nós “retrocedemos” nessa caminhada?
Ainda falava-se de remédios alternativos. Composição das plantas. Na parte psiquiátrica do hospital estava escrito sobre “perturbação do espírito”. Sempre quando deparo com isso penso que a visão biológica é apenas uma das maneiras de compreender e analisar a pessoa. A cura das almas não é tão aferível, assim como a visão biológica não é a maneira mais, única ou melhor de compreender um indivíduo.
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Sint-Janshospital |
¹ HELMAN, C. G. Cultura, Saúde e Doença. 5 ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. 431 p.
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